segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Reinventar o governo?


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Em meados de 2002, enquanto se desenrolava a campanha pela sucessão do presidente Fernando Henrique Cardoso, tivemos George Soros a decretar a irrelevância do eleitorado brasileiro e de suas preferências. A opção seria "Serra ou o caos", e se as preferências dos eleitores não correspondessem às dos mercados financeiros sobreviria o que alguns andaram chamando de "golpe de mercado", que dispensaria o velho golpe de Estado.

Há um sentido bem claro em que Soros tinha razão. Embora tenhamos tido a eleição de Lula, eram evidentes a ameaça de crise de grandes proporções e as restrições impostas ao governo que começaria pouco depois. Tais restrições já haviam marcado anteriormente o acesso de partidos ou lideranças de esquerda ao governo em vários países europeus, submetidos à necessidade de haver-se com a "economia da oferta". O consagrado estado de bem-estar era ele próprio submetido a "pressões irresistíveis" rumo à "austeridade permanente" (P. Pierson): apesar da resiliência do apoio popular que obtém e de variações não destituídas de importância no jogo político-partidário a respeito, a consideração decisiva estaria na necessidade de contenção fiscal e de governos austeros, cujo retraimento incentivasse o dinamismo dos negócios.

Naturalmente, os Estados Unidos eram, e continuam a ser, a grande referência de um liberalismo (ou um capitalismo "desorganizado") levado ao campo da proteção social, com impostos e gastos sociais do governo baixos por padrões internacionais, programas de transferência de renda de cobertura reduzida e vinculados a condições restritivas (em especial "income-tested", com o empenho, de acordo com o velho tema conservador, de não premiar os "undeserving poor", ou a vagabundagem dos pobres), etc. De todo modo, anos antes da declaração de Soros, em "O Futuro do Capitalismo" (1996), Lester Thurow, entre outros, atento em particular à financeirização como correlato crucial do sistema econômico de hegemonia estadunidense, sustentava que a indagação decisiva quanto à ocorrência de uma crise ("mexicana") de devastador impacto mundial não seria a de se viria a acontecer, mas apenas a de quando aconteceria.

Não sabemos ainda se a crise que agora abala a economia dos Estados Unidos e se esparrama pelo mundo chegará a ser realmente devastadora. Mal acaba de ser divulgada, no momento em que escrevo, a corroboração pela Câmara dos Deputados da decisão a respeito do pacote de medidas de resgate aprovado há dias pelo Senado do país. As incertezas que subsistem, porém, não fazem senão aumentar o interesse de vários aspectos do complexo experimento que lá se desenvolve, alguns dos quais podem ser relacionados, com significado positivo ou negativo, às evocações acima.

Assim, destaque-se primeiro a ironia envolvida na idéia da austeridade exigida do Estado quando se observa, na raiz da crise, a perfídia do comportamento dos agentes privados no jogo em que entra o Estado "austero". Fica evidente o caráter de ideologia barata do liberalismo extremado que se tornou afirmativamente dominante no país, erigindo pedestais a um Ronald Reagan e assemelhados.

Há, de outro lado, o contraste das relações entre o processo eleitoral e os mercados nos EUA de agora com as que levaram, no Brasil de 2002, à manifestação de Soros. Se aqui vimos os mercados constrangerem o processo político-eleitoral, lá, onde se trata da sede por excelência dos mercados que deveríamos aplacar, segundo Soros, podemos ver agora, em medida não desprezível, o inverso. Não obstante, naturalmente, o peso decisivo de Wall Street e o fato de que o resgate se imponha em nome do próprio interesse público, o jogo eleitoral está longe de ser irrelevante, como se mostra de forma preliminar nas vicissitudes por que passou no Congresso o plano de Paulson e Bernanke. Mas há algo de muito mais importante aí, a saber, que a crise leve a que a discussão do tema da necessidade de regulação dos mercados ganhe saliência na disputa da Presidência do país. E que, igualmente em decorrência de tratar-se do centro hegemônico do capitalismo mundial e de um Estado de peso correspondente, a resposta que se venha a ter para as questões envolvidas certamente acarrete consequências para a dinâmica transnacional - e quem sabe para passos significativos rumo à verdadeira "reinvenção do governo", a regulação e a governança efetivas no plano transnacional em que passaram crescentemente a operar os mercados.

Finalmente, cabe registrar o fato de que as políticas de George W. Bush, extremando o ideário que se afirmava há tempos com o predomínio Republicano, tenham permitido ao Partido Democrata, através de lideranças como Hillary Clinton e Barack Obama, denunciar com força as precariedades do "welfare state" estadunidense. E que a isso se tenha somado um aspecto que, mesmo se surge como fortuito do ponto de vista da face mais dramática da crise de agora e de suas causas, seguramente se liga ao que tem havido de mais positivo na dinâmica da democracia do país, isto é, o gradual avanço do vigoroso componente pluralista de sua tradição perante traços como a herança racista e o etos de fundamentalismo religioso e militarista. Refiro-me ao aparecimento da figura singular de Barack Obama para vocalizar e personificar a mensagem de mudança. Oxalá não haja razões para acreditar que as concessões acarretadas por certo realismo eleitoral possam levar a que se comprometam, no caso da vitória que parece anunciar-se, as esperanças em torno da neutralização dos desdobramentos nefastos do ingrediente assimétrico e "imperalista" da globalização e do renovado papel mundial dos Estados Unidos de rosto moreno com que nos vamos acostumando.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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