quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Ditadura consentida


Josias de Souza
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

A CÂMARA retomou ontem a análise do projeto que altera o rito de tramitação das medidas provisórias. Diz-se que o objetivo é pôr fim a um processo que desmoraliza o Congresso.Processo que faculta ao Planalto impor ao Legislativo uma ditadura companheira, governando por meio de MPs. Quem quiser acreditar que acredite. Mas se arrisca a fazer papel de bobo.

O primeiro Parlamento brasileiro, a Assembléia Constituinte convocada por dom Pedro 1º à época da Independência, durou seis meses. O imperador fechou-o em novembro de 1823. Alegou que os parlamentares negligenciaram o juramento de "salvar o Brasil".

O Congresso seria fechado outras seis vezes: em novembro de 1891, sob Deodoro; em novembro de 1930, sob Getúlio; em novembro de 1937, de novo sob Getúlio; em outubro de 1966, sob Castelo; em dezembro de 1968, sob Costa e Silva; e em abril de 1977, sob Geisel.Inaugurada em 1985, a redemocratização trouxe a perspectiva de que o Congresso emergiria do jejum para um banquete de poderes. Ilusão. O Congresso de hoje ora se vende ora se rende. Na maioria das vezes, se rende depois de se vender.

A medida provisória é ferramenta criada pelo próprio Congresso, na Constituinte de 88. Substituiu o decreto-lei da ditadura. Serve para acudir o presidente em situações emergenciais.O argumento de que é preciso modificar o rito de tramitação das MPs é falso como nota de três reais. A sistemática atual é ótima. O que não presta é a subserviência do Legislativo, auto-acocorado. Quem edita MPs é o presidente.

Mas quem decide se elas devem prevalecer são os congressistas. A primeira escala da tramitação das MPs é uma comissão mista, integrada por deputados e senadores. Cabe a essa comissão decidir se as MPs são "urgentes" e "relevantes", como pede a Constituição. Não há notícia de medida provisória que tenha sido detida no nascedouro. Pior: as tais comissões mistas nem sequer se reúnem.

As MPs vão ao plenário automaticamente. Nomeia-se um relator amistoso. Ele redige o seu parecer em cima do joelho. Lê o texto em plenário. E os colegas votam, por vezes, sem saber o que aprovam.

Ou seja: a gritaria dos congressistas contra as MPs é oportunista. Esconde a inapetência de deputados e senadores para exercício do poder delegado pelo povo. O Brasil oferece ao mundo mais uma jabuticaba: a ditadura consentida.

Ontem, o presidente do Congresso, Garibaldi Alves, tomou uma decisão maiúscula: devolveu a Lula a MP 446, que anistia 2.000 filantrópicas de fancaria. Romero Jucá recorreu. A encrenca vai à Comissão de Justiça e, depois, ao Plenário. Que pode levantar a cabeça ou continuar agachado.

JOSIAS DE SOUZA , jornalista, é autor do blog Nos Bastidores do Poder.

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