domingo, 23 de novembro de 2008

O drama civilizatório

Rubens Figueiredo
DEU NA FOLHA D S. PAULO / MAÍS!

Em tradução direta do russo, "Os Irmãos Karamázov" é cindido pela mistura de gêneros e por projetos antagônicos de modernidade

Os Irmãos Karamázov" -agora em ótima tradução de Paulo Bezerra- foi publicado em 1880, um ano antes da morte de Dostoiévski. Aos olhos do Ocidente, a Rússia ainda era uma "terra de ursos", e a expressão "literatura russa" ainda soava como algo inconcebível ou, no máximo, exótico.

Como que cientes disso, os autores russos escreviam tendo em mente apenas o seu país. Em 1900, Tchékhov não mostrou entusiasmo ao ver seus livros traduzidos na França, explicando que seus contos foram escritos para os russos.

Os escritores tinham em mira o rico debate em curso acerca do destino do país e essa pode ser a chave da vitalidade da literatura criada na época e também mais tarde.

Pois tal debate tinha canais de expressão diversos dos conhecidos nos países ocidentais, e a literatura era um dos canais mais importantes.

Se os personagens de "Os Irmãos Karamázov" nos surgem com um vigor exaltado e febril, isso se deve menos aos abusos melodramáticos do autor do que ao caráter vital, para Dostoiévski e seus leitores, da polêmica subjacente ao romance. Mas, como não raro acontece, as questões russas eram menos russas do que os próprios russos supunham.

De um lado, o confronto entre os projetos da modernidade liberal e de modernidades alternativas (como o historiador Daniel Aarão Reis define a situação) não era uma condição exclusiva da Rússia.

De outro lado, a abrangência do esforço dos intelectuais imprimiu às suas polêmicas uma força provocadora capaz de renovar o sentido das obras literárias russas em outros países, mesmo depois que tais polêmicas já estavam esquecidas.

No caso de "Os Irmãos Karamázov", Dostoiévski deu expressão a um nacionalismo intensificado até um páthos místico. Em síntese: o camponês russo era o portador da fé pura; a autocracia russa era a concretização dos sentimentos desse camponês; a religião ortodoxa era a guardiã do cristianismo genuíno; a Rússia era a potencial redentora espiritual da Europa, no papel de Terceira Roma (após as quedas de Roma e de Bizâncio).

Claro, isso supõe o repúdio do movimento revolucionário socialista.

A ênfase de Dostoiévski nesse ponto, patente mais no narrador do que nos personagens de "Os Irmãos Karamázov", deu margem a que o crítico George Steiner classificasse o autor como "democrata".

Mas esse filtro ideológico, que o crítico Joseph Frank também impõe em suas análises, é seletivo demais para dar conta do espectro das recusas de Dostoiévski.

Trata-se, a rigor, da recusa da modernidade ocidental em si. O socialismo apenas faz parte de um pacote, que inclui o capitalismo, a ciência, o catolicismo, a cidade, a razão separada da fé, a igualdade da mulher, o governo laico.

Ciência e religião

Vejamos como o monge Zozima, mentor de Aliocha Karamázov, pivô do romance, retrata o mundo moderno. "Eles têm a ciência e na ciência só aquilo que está sujeito aos sentidos. Já o mundo do espírito foi rejeitado inteiramente, expulso com certo triunfo, até com ódio. O mundo proclamou a liberdade e eis o que vemos dessa liberdade: só escravidão e suicídio! [...] Vivem apenas para invejar uns aos outros, para a luxúria, a soberba. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, posição social e criados eles já consideram uma necessidade, e para saciá-la sacrificam até a vida [...] e se matam, se não conseguem saciá-la."

Não é à toa que este seja o romance de Dostoiévski que mais se afasta dos modelos literários ocidentais. O enredo se limita à disputa entre o pai e um dos irmãos Karamázov pela afeição da mesma mulher, em meio a presságios de um parricídio.

Unem-se a isso relatos extraídos do noticiário, de autos judiciais, além de narrativas e prédicas cunhadas nos moldes dos textos bíblicos e das vidas de santos.

Essas formas pré-modernas corporificam, na estrutura do romance, a posição de resistência do autor diante da pressão modernizadora.

O teórico russo Mikhail Bakhtin apontou Dostoiévski como o expoente do romance polifônico, no qual diversas vozes se relacionam em igualdade, e não sujeitas a uma voz central.

No caso de "Os Irmãos Karamázov", a tese se mostra inviável. De fato, os personagens falam muito e com grande alarde.

Na maior parte, a estrutura do livro é antes dramática do que narrativa.

Porém todas as vozes estão subordinadas à voz do monge Zozima, às reações do seu discípulo Aliocha Karamázov e aos ecos dessa voz em diversos personagens e situações. Esse é o centro de autoridade do romance, que controla o alcance das demais vozes, em especial a do intelectual ateu Ivan Karamázov.

Face pouco visível

Contudo não é necessária a teoria de Bakhtin para rejeitarmos a redução do romance a um panfleto reacionário.

A despeito de Dostoiévski, o páthos do livro, mais do que as suas intenções, questiona a nossa aceitação de um padrão de civilização como algo natural e inevitável.

O ângulo histórico e geográfico de onde Dostoiévski fez questão de focalizar a expansão capitalista -a portadora de tal padrão, na época- põe em relevo uma face pouco visível desse processo.

RUBENS FIGUEIREDO é tradutor e escritor, autor de "Contos de Pedro" (Cia. das Letras).

OS IRMÃOS KARAMÁZOV
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Paulo Bezerra
Editora: 34
(tel. 0/xx/11/3816-6777)
Quanto: R$ 98 (1.040 págs.)

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