terça-feira, 11 de novembro de 2008

O passado interditado


Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO

É provável que a Advocacia Geral da União (AGU) recue em parte do parecer que emitiu sobre a extensão da lei da anistia, no qual considera perdoados os agentes do Estado acusados de torturar e matar, nos anos de chumbo do regime militar. O que falta estabelecer é ate onde recuar, a ponto de não deixar mal o advogado-geral José Antonio Dias Toffoli. Uma hipótese é a elaboração de um novo parecer decompondo a questão em seus aspectos penal e cível.

É uma situação difícil para Toffoli, no entendimento de seus superiores, que, no entanto, consideram ainda mais difícil um governo integrado por pessoas que foram torturadas aceitar um juízo nos termos formulados no parecer da AGU. E não se trata apenas da opinião do ministro Tarso Genro (Justiça) ou do secretário de Direitos Humanos Paulo Vannuchi. Mas no governo há uma banda que pensa de maneira oposta e está levando a melhor.

É majoritário no Palácio do Planalto o entendimento de que Toffoli errou duplamente.

Errou, em primeiro lugar, ao assinar um parecer que avança no mérito daquilo que ainda não está em questão - se o crime de tortura está ou não coberto pela lei ou leis de anistia aprovadas desde 1979, ainda sob o tacão da ditadura militar.

Em segundo lugar, errou porque não deveria assumir essa tese, de acordo com o entendimento da maioria palaciana, sem antes consultar a coordenação de governo, ampliada com a presença do ministro Nelson Jobim (Defesa), que tomou o partido da área militar na discussão.

A ação judicial movida pelo Ministério Público Federal tenta que a Justiça condene o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante da repressão militar em São Paulo, a indenizar a União pelas reparações feitas aos familiares dos mortos e aos que foram perseguidos ou torturados pelo regime de 1964.

É uma ação cível. Evidentemente que ela tem a intenção de tentar responsabilizar Ustra criminalmente, mais adiante, caso o Judiciário conceda o pedido de indenização. Mas a AGU poderia ter se limitado a tratar da questão em seu aspecto cível, deixando para tratar mais tarde, se fosse o caso, do aspecto penal - se a tortura está ou não coberta pela lei de anistia. Leia-se ganhar tempo.

O fato é que a AGU lavrou o parecer e dividiu em dois o governo. De um lado, aqueles que consideram a tortura um crime imprescritível. Do outro aqueles que, como o ex-presidente do Supremo Nelson Jobim, empenham o prestígio jurídico adquirido na tese segundo a qual os agentes do Estado foram anistiados na lei aprovada em 1979.

A queda das ditaduras na América Latina teve processos diferentes. No Chile, a troca de bastão dos militares para os civis esteve sob o controle dos generais até que um juiz espanhol expediu um mandado de prisão contra o general Augusto Pinochet, responsável por uma das ditaduras mais sanguinárias da região.

Na Argentina os militares saíram pela porta dos fundos. Já desgastada, a ditadura meteu-se numa guerra com a Inglaterra e foi humilhada no campo de batalha. Os generais rosnaram só até a esquadra inglesa bloquear as ilhas Malvinas. Na saída do regime, os movimentos de direitos humanos argentinos não aceitaram discutir primeiro a reparação pecuniária, antes exigiram a reparação moral.

No Brasil, a anistia votada em 1979 no Congresso foi aprovada no regime militar, nos limites da correlação das forças políticas à época, quando o partido do governo era majoritário e ainda governaria por cerca de mais seis anos, até 1985. A rigor, anistiava só os agentes do Estado. Punidos por "crimes" de consciência como Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes e Antônio Cândido só mediante mandado de segurança retomaram o direito a suas cátedras na universidade.

A própria Justiça Militar se encarregou de ampliar os limites da anistia de 1979 e firmar jurisprudência ao estendê-la também aos insurgentes que aderiram à luta armada. Em 1985 a lei foi abrandada. Em 1988 a constituinte declarou a tortura crime "insuscetível de graça ou anistia", mas misturou o que era golpe de 64 com o que era o fim do Estado Novo, ao estender os benefícios da anistia até 1946, então a última Constituição democrática.

Com o pedido de reconsideração do parecer feito por Vannuchi à AGU, é provável que Toffoli apresente novo texto, mas improvável uma virada radical de opinião. A decisão será do Judiciário.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

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