terça-feira, 16 de dezembro de 2008

As diferenças dos iguais


Janio de Freitas
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Costa e Silva assinava o AI-5 ou caía; e a direita udenista-militar não errou, até que o regime se desmilingüisse

UM MOMENTO , a meu ver, entre os de importância crucial para o que resultaria do golpe de 64, e para sua eternidade de 21 anos, merece ao menos um registro retardatário e breve, à falta de melhor nas rememorações motivadas pelos 40 anos do ato institucional (como, aliás, também na historiografia da ditadura que seja de meu conhecimento).

Entre o levante militar induzido em Minas pelo governador Magalhães Pinto e o terceiro ou quarto dia seguinte, a balbúrdia dominou os políticos, os jornalistas e a maior parte dos militares, surpresos e desorientados. Só por essa altura começaram, entre políticos e militares, e por iniciativa dos dois lados, os contatos com intenções mais definidas. Desde os primeiros momentos os chefes militares reproduziam a velha disputa entre suas principais correntes, agora em relação ao controle da situação imediata e aos desdobramentos que ninguém planejara. Da parte dos políticos, tudo era pensado e dito conforme as conveniências de cada uma das três candidaturas em marcha para a eleição em 1965 à Presidência -Juscelino, senador, e governadores Magalhães Pinto e Carlos Lacerda.

Ministro da Guerra por decisão própria e súbita, Costa e Silva, ao ver avançarem as articulações para uma Presidência provisória entregue ao general Castello Branco, convocou os principais governadores para uma reunião. A simpatia distante ao PSD de Juscelino, mais por aversão ao udenismo, levara-o a sair do anonimato bonachão por um atrito grave com Jânio Quadros, quando soldados do 4º Exército, de que era comandante, agiram com violência a um movimento estudantil em Recife.

Costa e Silva fez aos governadores uma exposição sem cerimônia, sobre a situação militar e política. Para concluir com a advertência de que, se entregassem a Presidência a Castello, estariam levando afinal ao poder a corrente militar que sempre pretendera conquistá-lo -como já mostrara contra Getúlio, no golpe armado para impedir a posse de Juscelino, nos dois levantes também contra Juscelino já presidente e contra a posse de Jango na renúncia de Jânio. O grupo udenista no poder significaria regime militar e mergulho no escuro. E, portanto, o fim da eleição presidencial no ano seguinte, pretendida por dois dos presentes, senão mais.

Lacerda interpretou a advertência como manobra contra candidatos da UDN, logo, contra ele, e em favor de Juscelino. Com seu ímpeto habitual, contestou a análise de Costa e Silva e fez a apologia do caráter, da autoridade de comando e das convicções democráticas de Castello Branco. Por certo, não esperava a rebordosa: Costa e Silva, velho apreciador de pôquer, pagou para ver e redobrou o tom da descompostura.

A articulação por Castello intensificou-se. Dela participavam o PSD e Juscelino, confiantes na propalada solidez democrática de Castello. Disseram, uns, que por intermediário de Costa e Silva, outros citando o coronel Andreazza, Juscelino recebeu a mesma advertência, para que revertesse a posição das fortes bancadas do PSD no Senado e na Câmara. Os pessedistas em geral votaram contra Castello, como Juscelino recomendava. Juscelino votou por Castello.

A presença dominante de tendências udenistas no jornalismo político propagou, com justificativas que os fatos não admitiriam, a fé democrática do general Castello, sua alegada obra de contenção das pressões extremadas, o Ato Institucional nº 1, o Ato Institucional nº 2, as cassações, prisões, o fim das eleições presidenciais previstas, idem das eleições de governadores, e por aí até além do que se sabe. Magalhães, Lacerda e Juscelino morreram em tempo de confrontar a oportunidade que tiveram, dada pela reunião com Costa e Silva, e o que a partir dali se deu por seu apoio em contrário.

Costa e Silva, estigmatizado pelo udenismo como o chefe da linha mais dura, contrapôs-se a Castello sempre, e apesar disso não foi possível derrubá-lo nem, em 1967, impedi-lo de fazer-se sucessor na Presidência. A corrente udenista atemorizou-se e não o enfrentou. Mas quis cercá-lo por antecipação, com novas "leis" e até uma "Constituição" adequada ao regime. A extinção de toda e qualquer modalidade de censura à imprensa, logo após a posse, simboliza bem as mudanças que se iniciavam.

Com o AI-5, ano e meio depois de sua posse, Costa e Silva recebeu o lugar que lhe ocupa nas referências e narrativas sobre a ditadura. Mas talvez esteja esquecido demais o ensino de Orwell, de que "todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros". Costa e Silva adotou como vice-presidente um udenista, Pedro Aleixo, mas não um homem de direita, nem ligado ao lacerdismo ou a militares, ficando para sempre como aquele que levantou a voz contra o AI-5, na mesa e hora mesmas em que outros o assinavam desprezando escrúpulos há muito duvidosos.

Quando emitiu o AI-5, Costa e Silva estava prestes a extinguir a Constituição deixada por Castello e lançar uma semelhante à democrática de 1946. A crescente agitação de 68, só possível porque o próprio Costa e Silva deteve a reação do governo por bom tempo, deu à extrema direita -militar e civil- a ocasião de rearticular-se aproveitar a má percepção política dos novos oposicionistas para voltar ao golpismo.

Ronaldo Costa Couto lembrou na Folha uma frase de Geisel: "Costa e Silva só tinha duas soluções. Ou fazia o AI-5 ou renunciava". Não. Ou assinava o AI-5 imposto ou caía, derrubado.

Cedeu. E a direita udenista-militar não errou, até que Figueiredo levasse o regime a se desmilingüir.

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