sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Feliz ano-novo. Para alguns

Alberto Carlos Almeida
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Alguns temas exigem muitos dados para que sejam tratados. Outros exigem pouquíssimos. É o caso do tema de hoje, o 13º salário. Fim de ano, momento de comemoração para o mundo cristão e de felicidade adicional para os trabalhadores brasileiros empregados no setor formal. Estimativas do Ministério do Trabalho consideram que 40% da população são assim beneficiados. Mais importante que isso, esses 40% ganham mais durante todo o ano do que os aproximadamente 60% que não recebem o 13º. Quem não recebe o 13º teria renda média familiar em torno de R$ 850,00 e quem o recebe, na casa dos R$ 1.300,00.

A cada ano isso varia, mas o que importa é que a minoria dos trabalhadores ganha o 13º e essa minoria tem renda mais elevada do que quem não o recebe, obviamente porque está empregada no setor formal da economia, aquele que gera maior valor agregado e por isso pode assinar a carteira de trabalho.

Eis o xis da questão: o caráter elitista de nossa legislação trabalhista e, mais do que isso, a natureza elitista dos argumentos daqueles que a defendem. Em qualquer lugar do mundo as pessoas naturalizam aquilo que é muito presente. Diz-se que quanto maior é a presença de algum atributo social, menos nós o notamos. Como o racismo é muito presente, não o vemos. Como o elitismo está em todos os lugares, não o percebemos. Os exemplos podem ser multiplicados.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi gestada e aprovada em 1943, época na qual o Brasil era um país fundamentalmente rural; o 13º veio décadas depois, em 1962, mas o Brasil ainda era rural. Getúlio Vargas a fez para atender - e domesticar - às demandas urbanas de uma minoria de trabalhadores empregados ou no setor público ou em poucas grandes empresas fortemente dependentes do Estado para sobreviver.

O país mudou muito no período e a legislação não acompanhou as mudanças. Precisamos explicar hoje para os nossos filhos por que alguns trabalhadores recebem 13º salário e outros não. No passado tratava-se de uma explicação mais simples, uma vez que a desigualdade era mais facilmente aceita do que hoje. A ética da igualdade se disseminou muito no Brasil, quando se compara a era Vargas com a era FHC ou Lula.

O argumento básico em defesa da CLT e conseqüentemente do 13º salário é o seguinte: a nossa legislação trabalhista é muito boa e protege os trabalhadores. O problema é que a economia brasileira não é desenvolvida o suficiente para incorporar toda a População Economicamente Ativa (PEA) na CLT. Portanto, à medida que nossa economia se tornar maior, mais pujante, todos serão beneficiados pela proteção da CLT. Basta uma frase de Keynes, que voltou ao debate econômico mundial, para derrubar esse argumento pseudodemocrático: no futuro todos estaremos mortos.

O que acontece hoje com aqueles que não recebem o 13º? Terão de esperar pelo sucesso futuro do Brasil. E se vier uma crise que interrompa a trajetória de crescimento? Paciência, isso acontece, terão de esperar um pouco mais. É interessante que o argumento em defesa da CLT anule a existência da sociedade e consagre o saber do legislador (elitista e socializado na década de 30). Não é a lei que se ajusta à sociedade, mas, ao contrário, a sociedade precisa ficar mais rica para se encaixar em uma lei justa e boa, que dá muitos direitos aos trabalhadores.

Há dois argumentos contrários à nossa legislação trabalhista. O mais disseminado é o econômico e empresarial: essa lei aumenta os custos da produção e assim encarece o preço final dos produtos e reduz a capacidade de geração de empregos. O outro, muito pouco falado, é o argumento democrático e universalista: o 13º consagra tratamento desigual aos desiguais - quem está em uma posição melhor no mercado de trabalho recebe um prêmio, quem está pior continua onde está.

Ao elaborar e aprovar a CLT, os legisladores decidiram favorecer um grupo pequeno de trabalhadores em detrimento da maioria do povo brasileiro. Ao manter o instituto do 13º salário, os legisladores aprovam essa realidade dos fatos.

O 13º salário e outros benefícios da legislação trabalhista brasileira configuram, na verdade, uma peça jurídica elitista travestida de uma capa protetora, democrática e inclusiva. Os efeitos da exclusão estão aí: pobreza, violência, falta de confiança entre as pessoas etc. São muitas as causas desses fenômenos, mas certamente o tratamento desigual submetido às pessoas é parte desse processo.

É possível fazer um exercício imaginando que não tivéssemos lei trabalhista alguma, que todos os contratos fossem negociados diretamente entre patrão e empregado e houvesse um tribunal para decidir acerca de eventuais conflitos, além, é claro, dos respectivos sindicatos de cada categoria. Nesse caso, todos seriam tratados igualmente: não haveria nenhum benefício, não haveria FGTS, 13º salário ou o que fosse para ninguém; todos seriam igualmente sujeitos ao fato de não ter nenhum benefício trabalhista. Algo revolucionário para o Brasil, não a ausência de direitos, mas o tratamento igualitário.

Isso é em tudo oposto ao que ocorre hoje com a CLT: muitos direitos para alguns e nenhum direito para a maioria, imperando o "salve-se quem puder".

Quem toma táxi no Rio e em Curitiba neste mês, a qualquer hora, tem de pagar a tarifa correspondente à bandeira 2. Já em São Paulo isso não ocorre. Eis um exemplo cruel do "salve-se quem puder". Há outros, o mais disseminado são as caixinhas de fim de ano para carteiros, lixeiros, entregadores de jornais, porteiros e zeladores. É a mentalidade do 13º salário. No Brasil de hoje, passados em torno de 40 anos do instituto do 13º, todos se sentem no direito de recebê-lo, mas poucos têm o poder de barganha para tal. Qual de nós recusa sem culpa a oferta para a caixinha de fim de ano? Eu mesmo, no condomínio onde fica meu escritório, dei de livre e espontânea vontade R$ 200,00 para o pessoal que trabalha no prédio. Soube que muitos condôminos não o fizeram. O que, então, motiva a oferta?

No meu caso, não foi o direito quase adquirido (para alguns) do 13º, mas a velha e boa patronagem brasileira ou, ao menos, a crença de que ela ainda funcione no coração econômico e financeiro do país. Acreditamos que os serviços no prédio e a boa-vontade do seu pessoal será maior para os que deram a caixinha de fim de ano do que para os que não o fizeram. Além disso, quem fez essa doação tem "um coração bom" e quem se recusou a fazê-la é "mal-agradecido", "frio" e não reconhece o empenho daqueles que cuidam do condomínio.

Tudo se encaixa: elitismo, CLT, 13º salário, patronagem, bom coração, desigualdade etc. São todos elementos de uma sociedade que se moderniza de maneira muito lenta e tem grandes dificuldades em lidar com o seu passado (e presente) elitista e hierárquico. Todos nós, sem exceção, somos parte desse fenômeno. Voltando ao parágrafo que deu início ao artigo: seríamos capazes, se fosse parte da agenda da realpolitik, de apoiar a abolição pura e simples do 13º salário, uma vez que ele não beneficia a maioria das famílias e é recebido justamente pelos que já têm uma renda mais elevada? É bem possível que não.

Para viabilizar essa reforma (ou revolução) na legislação é preciso que a sociedade brasileira aceite o caráter elitista do 13º e busque saídas legais igualitárias para a desigualdade social que nos acorrenta ao passado. Na medida em que isso não é feito ou é adiado, a sociedade busca alternativas ao engessamento legal. O que não é o pagamento por meio de pessoa jurídica senão a fuga a esse engessamento? Se o governo não faz, a sociedade age.

Feliz Natal e bom ano-novo para todos, especialmente para os que não vão receber o 13º salário.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).

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