segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Folhas mortas


Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Fatos são em geral classificados na categoria de historicamente consumados quando deixam de produzir conseqüências políticas e caem como folhas mortas. Na passagem do quadragésimo aniversário da sua tenebrosa edição em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5 traz de volta a velha observação de Marx sobre a recusa da História a se repetir como fato. O veto, no caso do AI-5, inclui a própria farsa como recurso alternativo. Pode- se considerá-lo o produto inevitável da contradição de governar, em nome da democracia, com recursos autoritários incompatíveis com o exercício da liberdade política. A diferença entre o legalismo aparente e o exercício dos meios democráticos fora do contexto ocorreu, desde as primeiras horas, na convivência entre o governo como fato consumado em abril de 1964 e os pressupostos legais que não se sustentariam. O conflito interno não se fez esperar entre os vencedores e só seria contido, quatro anos depois, sob o AI-5. Não se compunham em torno da utilização do poder sem mandato eletivo.

Nos quatro anos que se seguiram à deposição do presidente João Goulart, sob a alegação de abandono do poder (que é também a forma de culpar a vítima), quando ainda sobrevoava território nacional, o novo governo equilibrou-se com dificuldade na insustentável ambivalência: tinha de atender ao radicalismo que emanava dos quartéis e tranqüilizar a representação política (que o atendia) e a sociedade com as dubiedades decorrentes da falta de clareza.

Na eleição parcial de governadores em 1965, um ano depois do golpe, instalou-se a primeira crise, para valer, em torno da posse dos eleitos pela oposição em Minas e na Guanabara, ao arrepio das expectativas radicais já desinteressadas de salvar aparências. Prevaleceu a corrente militar ostensiva, que se fixou no nome do general Costa e Silva. O governo Castelo Branco pagou o preço adiantado da crise para não cair: o novo acordo se fez com o sacrifício, dali por diante, do voto direto na sucessão presidencial e dos governadores. Chamou-se AI-2 o contrato. O sucessor seria o ministro da Guerra. Para salvar a face, Castelo Branco garantiu a posse dos governadores de Minas e da Guanabara, eleitos pela oposição. Era o primeiro golpe no golpe anterior, e tornou inevitável o segundo, e definitivo. E não se encerrou aí. O passo seguinte foi a edição espetaculosa do AI-5 para restabelecer a unidade aparente.

Já estavam suficientemente claras àquela altura as divergências em relação à liberdade de imprensa. Ao governo Castelo Branco não interessava que a sociedade se fechasse em desconfiança política e os empresários se sentissem vulneráveis. Optou pelas relações triangulares entre governo, sociedade e imprensa. Embora não resolvesse impasses, adiava dificuldades. O AI-5 permitiu ao governo Costa e Silva dar o tom, compactar a dualidade de tendências e se programar antes de afastar-se por motivo de saúde. Mas também mostrou efeito direto no deslocamento da classe média para a oposição. Era com ela que o governo queria contar, mas a opinião pública descobriu na leitura direta dos fatos o sentido oculto. A classe média assumiu seu papel na história que, antes de ser escrita, é vivida.

Em vão, o AI-5 bloqueou todas as janelas democráticas para blindar o governo. Não foi por acaso, mas como conseqüência direta, que o governo Ernesto Geisel só encontrou a saída à sombra do mesmo AI-5. A solução estava na raiz do problema que havia levado à edição do sombrio documento. Na evolução lenta, gradual e segura se processou a volta a uma legalidade relativa, até que a Constituinte de 86/88 preenchesse os claros. Perdura como uma sombra, por deficiência visual da política, a ausência de percepção das diferenças entre o colapso de 64 e a saída às apalpadelas, duas décadas depois. Umas e outras – diferenças e semelhanças – se equilibraram na divisão da responsabilidade política por tudo que levou ao AI-5 e, para sair, se passou também dentro do processo histórico. O regime caiu por dentro, abalado pelas contradições de disfarçar traços fortes de ditadura com aparência de liberdades. Dia virá em que se dará o reconhecimento do peso da classe média na sedimentação da resistência da qual foi fator social decisivo. Não foi casual a participação eminentemente universitária dela, já no nível da cidadania, a partir do desmoronamento do universo comunista no leste europeu. Mas essa história ainda não começou a ser escrita.

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