domingo, 14 de dezembro de 2008

Memória felizmente inútil

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Depois de fecharmos a edição do "Estado de S. Paulo", na noite de 13 de dezembro de 1968 (na verdade, já madrugada do dia 14), fomos a um boteco na rua da Consolação, em frente à antiga sede do jornal na rua Major Quedinho, para uma "unhappy hour" (foi a noite em que se editou o AI-5, o mais violento instrumento de arbítrio já adotado no país).Minha sensação era a de que o futuro havia sido interditado. E é muito dizer: tinha, então, 25 para 26 anos e, portanto, o futuro pela frente, como se dizia antigamente.

Um peso bárbaro.

Estava equivocado, a julgar pela pesquisa que esta Folha publicou ontem, mostrando que 82% dos brasileiros nem ouviram falar do AI-5. Como já disseram historiadores e sociólogos, o desconhecimento revela, sim, a conhecida falta de memória, a igualmente conhecida precariedade do ensino, a também manjada despolitização etc.

Mas revela também a derrota do arbítrio. Se quase ninguém se lembra do AI-5, é razoável supor que a grande maioria imagina que instrumento semelhante é irrepetível.

Não é preciso, pois, arquivá-lo na memória para evitar cometer erros que levem à sua repetição (atenção, não estou dizendo que seja uma atitude saudável; só estou tentando achar uma lógica além da que é mais evidente).

O futuro não foi interditado.

Tanto que vítimas do regime que editou o AI-5 acabaram na Presidência da República (Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva) ou no governo do Estado mais importante (José Serra).

O mundo mudou tanto que golpes de Estado, pelo menos na América Latina, caíram de moda. A mais recente tentativa (contra Hugo Chávez, em 2002) durou menos de dois dias. O de 1964 no Brasil durou 21 anos.

Se o boteco da Consolação não fechou, acho que agora valeria uma "happy hour".

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