quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Memórias de um intelectual comunista

Fernando Perlatto
Fonte: Gramsci e o Brasil

Konder, Leandro. Memórias de um intelectual comunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 264p.

Nesse tempo de pragmatismo extremado, estou longe de ser um winner. De fato, sou um loser. Contudo, valeu a pena ter brigado pelas coisas nas quais eu acreditava, mesmo que o preço fosse o fracasso. A ética me consolou nas derrotas políticas. E eu sempre me lembrava de que, afinal (mal comparando), Antonio Gramsci e Walter Benjamin também foram losers. O conceito que cada loser faz de si mesmo depende da avaliação que ele faz do que pretende fazer. Se não pretende fazer nada, já está objetivamente acumpliciado com os winners.

Trata-se de um grande desafio o exercício de escrever sobre si mesmo. A dificuldade de manter uma certa distância daquilo que se passou é permanente, e o risco de se escrever um texto autovalorativo não se esvai facilmente, sobretudo quando a vida narrada foi permeada por diversos acontecimentos significativos. Visando superar estes desafios, inerentes a qualquer autobiografia, Leandro Konder foi buscar inspiração em diversos textos do gênero — produzidos sobretudo por outros militantes comunistas, como Dias Gomes, Gregório Bezerra, Octávio Brandão, entre outros — para escrever suas memórias. O autor consegue escrever uma obra clara, direta, permeada de sinceridade e afeto — como bem destacado por Ferreira Gullar na orelha do livro —, discorrendo sobre diversos acontecimentos e sentimentos que mobilizaram sua vida, no âmbito pessoal, acadêmico ou político.

A obra é composta pelas lembranças de Konder desde a infância, passando pela juventude e chegando à vida adulta, refletindo uma trajetória marcada pela proximidade dos seus familiares e amigos, pela reflexão e produção de uma considerável obra acadêmica e jornalística, assim como pela militância política. Diversos espaços de sociabilidade tiveram impacto considerável na formação de Leandro, como a casa familiar — e neste sentido a influência do seu pai, Valério Konder, importante dirigente comunista, foi considerável —, o PCB, o CPC da UNE, o Iseb, a universidade, as viagens que fez no decorrer da vida, entre outros. O trabalho jornalístico e a atuação como advogado sindical também cumpriram papel importante para sua constituição intelectual. Todas estas experiências são narradas com carinho nesta obra, que, em determinados momentos, presta uma homenagem a grandes amigos do biografado, como Carlos Nelson Coutinho e Milton Temer.

Ler esta biografia é usufruir da oportunidade de retomar o contato com toda a diversificada produção bibliográfica de Konder, desde seus primeiros artigos, publicados em diversos jornais e revistas, e seu livro inicial — Marxismo e alienação, de 1965 —, até a sua 27a. obra, dedicada ao amor. O percurso por toda esta produção reforça a idéia de Leandro como um autor interdisciplinar, dedicado às questões relacionadas à filosofia, à história, às ciências sociais, à educação e à literatura, percorrendo, para tanto, a obra de diversos autores, ainda que se mostrando mais apaixonado por alguns, que merecem capítulos de destaque em seu livro, como Lukács, Benjamin, Hegel, Brecht, além, obviamente, de Marx, considerado como seu principal interlocutor. Ao lado desta vasta produção acadêmica, Leandro publicou duas obras de ficção — Bartolomeu e A morte de Rimbaud —, consubstanciando de outra forma sua paixão pela literatura, que o acompanha desde a adolescência.

Sabedor de que a batalha das idéias desempenha papel fundamental na disputa pela hegemonia, Konder sempre buscou conciliar sua reflexão acadêmica com a intervenção em jornais e revistas de maior circulação, conferindo dimensão pública à sua atividade. Neste sentido, convém ressaltar sua enorme importância para a “filosofia da práxis” — como a denominava Gramsci, outro autor da preferência de Leandro —, configurando uma obra que, conforme destacado por Carlos Nelson Coutinho, constitui “um dos capítulos mais significativos da história do marxismo no Brasil”. Suas produções, versando sobre diversos assuntos, conseguem tocar em questões essenciais e polêmicas, tanto do debate acadêmico quanto do político, em uma linguagem transparente e simples, sem recair, contudo, na superficialidade.

Diferentes personalidades do mundo intelectual, sejam elas nacionais ou internacionais, desfilam pela biografia de Konder, evidenciando as diversas relações que este pensador construiu no mundo acadêmico. Muitos destes laços foram, conforme se constata no livro, fortalecidos em momentos difíceis, como quando de sua experiência de exilado na Alemanha. Leandro descreve as diversas sensações vivenciadas por aquele que se encontra nesta situação, que, distante do seu país, repleto de frustrações, angústias e desejos, desconhece se poderá algum dia voltar para sua pátria. Mesmo no exterior, não obstante, Konder buscou, junto com outros companheiros e companheiras, refletir e organizar alguma maneira de intervir na luta pela redemocratização do país. Quando regressou ao Brasil, buscou reintegrar-se política e intelectualmente, sobretudo através da militância e da publicação de artigos em diferentes meios.

A leitura desta obra evidencia a consideração de Leandro pela discussão política, ainda que — citando o conselheiro de Aires, de Machado de Assis — diga sofrer “de tédio à controvérsia” (p. 144). Para o autor desta biografia, o esclarecimento deve vir através de debates, não sendo necessários, contudo, “cascudos e pancadas” para se chegar ao mesmo. Com o intuito de observar esta característica de Konder, basta observar a quantidade de “adversários”, que se tornaram, se não seus amigos, como Merquior (para quem o autor dedica um capítulo de sua biografia), pelo menos grandes respeitadores da sua obra. Isto porque Leandro sempre procurou debater a política superando qualquer tipo de sectarismo, sem nunca abandonar suas convicções.

Neste sentido, Konder tece em sua obra críticas ao “socialismo diluído” característico dos dias atuais, conquanto defenda polemicamente que, hoje mais do que nunca, o revisionismo, outrora o foco a ser combatido, tornou-se a única esperança para a recuperação da radicalidade da intervenção transformadora do marxismo. A defesa teórica do marxismo fez-se no decorrer de sua vida concomitante com sua militância política ao longo de mais de 55 anos. Tendo militado no PCB de 1951 a 1982, Leandro filiou-se ao PT em 1988, com Carlos Nelson Coutinho e Milton Temer, partido do qual saiu em 2004, tornando-se um dos 101 fundadores do PSOL. Ainda que possamos discordar destas opções partidárias de Konder, fato é que ele nunca se omitiu de fazer o debate público sobre o futuro do país e os melhores meios de organização para a luta política, tendo sempre como horizonte a construção de uma sociedade socialista e democrática.

Conforme se mostra na citação inicial, Leandro não tem medo de evidenciar seus fracassos e suas derrotas, como exposto no capítulo dedicado ao que ele denomina de curriculum mortis. Este, ao contrário do curriculum vitae, evidenciaria os percalços que acontecem com todos, mas que acabam por ser omitidos por causa da ideologia “triunfalista”, ainda que sejam “fundamentais no conhecimento dos seres humanos” (p. 133). Konder não camufla os obstáculos que enfrentou e vem enfrentando em sua trajetória, como a doença de Parkinson, diagnosticada em 1995, narrada com extrema delicadeza e sensibilidade em um dos capítulos da biografia. Pesando seus fracassos e vitórias, entretanto, tendemos a discordar do biografado, considerando-o como um winner, que, a despeito dos percalços, logrou encarar de maneira vitoriosa as batalhas colocadas em seu cotidiano pessoal e político.

O maior problema desta biografia é o gosto de “quero mais”. Ler a respeito de um intelectual como Konder nos desperta o desejo de conhecer melhor sua vida. Talvez alguns aspectos de sua experiência política poderiam ter sido mais bem discutidos e explorados nesta obra, como, por exemplo, os motivos de suas mudanças partidárias. Isso, contudo, não diminui os méritos deste livro, que expõe em linguagem clara a trajetória deste lutador, que teve seus méritos reconhecidos nas diversas homenagens que vem recebendo nos últimos anos. Esta biografia descreve com esperança e humor as alegrias e agruras de uma vida permeada pelo desejo de transformação da sociedade. Afinal, é este sentimento — como podemos constatar após a leitura deste belíssimo livro e conforme evidenciam as trajetórias de tantos outros desta linhagem, como Luiz Werneck Vianna, Ferreira Gullar e Carlos Nelson Coutinho — que move um intelectual comunista.

Fernando Perlatto é mestrando do Iuperj e pesquisador do Cedes (Centro de Estudos Direito e Sociedade) desta instituição.

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