domingo, 28 de dezembro de 2008

Nas trilhas da revolução

Mauricio Font*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Em 1º de janeiro de 1959, Fidel Castro e seus seguidores chegavam à vitória contra a ditadura de Fulgencio Batista, numa das revoluções de maior impacto do século 20. Com a derrota de suas tropas em Yaguajay e Santa Clara, Batista decidiu deixar o país em pleno réveillon, fugindo para a República Dominicana. Fidel, que controlava Santiago de Cuba, determinou então que as colunas de Che Guevara e Camilo Cienfuegos marchassem sobre Havana, onde acabariam não encontrando resistência. El Comandante entraria em triunfo na capital somente no dia 8. Para todos os efeitos, o movimento castrista lutara apenas para derrubar um regime corrupto e antidemocrático. Mas logo Fidel anunciaria que Cuba se tornara socialista. Meio século de apego cristalizado ao comunismo leva hoje à questão de como o país, agora governado por Raúl Castro, desenhará o seu futuro

As duas grandes revoluções socialistas do século 20, a da Rússia, em 1917, e a da China, em 1949, passaram por transições que alteraram fundamentalmente, ou mesmo subverteram, suas missões originais. O que anda deixando os especialistas intrigados é o fato de a Revolução Cubana não ter seguido esse caminho. De fato, o socialismo cubano resiste notavelmente mesmo a reformas moderadas como as adotadas por Moscou e Pequim.

Cuba optou pelo retorno à ortodoxia em meados da década de 80, num momento em que a União Soviética adotava a perestroika e a glasnost e os chineses começavam a abrir a economia para investidores internacionais. Fidel Castro sentiu-se plenamente justificado quando as reformas de Gorbachev foram seguidas pelo colapso do regime e por uma transformação, por vezes caótica, da União Soviética e da Europa Oriental, que acabaria em um regime político-econômico baseado em mercados e políticas competitivos. Reformas importantes, embora limitadas e no fim bastante abrandadas, só ocorreriam em Cuba entre 1993 e 1995, em pleno “período especial”, a difícil crise que se seguiu ao colapso do socialismo na União Soviética e na Europa Oriental. Entretanto, por que não aprender com as experiências graduais, mas em geral bem-sucedidas, de Deng Xiaoping no campo do mercado no contexto de um governo de partido único?

Desde que assumiram o poder, em 1959, os líderes da Revolução Cubana resistiram às políticas que poderiam ameaçar seu governo, considerando a unidade nacional sob um governo centralizado uma questão de sobrevivência. Os reformadores chineses praticamente eliminaram as idéias e os antigos dogmas de Mao Tsé-tung - apesar de continuarem a se definir como comunistas. E apesar de Stalin não ter sido bem-sucedido no intento, a era Gorbachev começou a distanciar-se dos pais fundadores, embora durante a transição os líderes da Rússia não se afastassem totalmente de Lenin e mantivessem exposto à visitação seu corpo embalsamado, na Praça Vermelha. Ao contrário da Rússia e da China, os pais da Revolução Cubana ainda estão vivos, exercendo seus cargos, e como sempre sensíveis a possíveis ameaças à ordem estabelecida. Oficialmente, Cuba continua comprometida com as idéias e valores de Fidel Castro, cujos editoriais de primeira página definem os critérios fundamentais que pautam a organização do Estado e da sociedade cubana. A infalibilidade de Fidel permanece um dogma oficial.

IMUNIDADE À TRANSIÇÃO

Mesmo assim, pode-se indagar quanto às razões da estabilidade política. Ainda que seja difícil avaliar o grau atual de apoio interno, não há como negar a enorme popularidade de Fidel Castro nos estágios iniciais da revolução e sua constante liderança nos momentos mais cruciais. Morei em Cuba, quando jovem, nos três primeiros anos da revolução, e lembro das eletrizantes transmissões por ondas curtas dos rebeldes fidelistas na Sierra Maestra, o júbilo geral com a queda do regime de Batista, no dia 1º de janeiro de 1959, e a explosão de paixão revolucionária dos primeiros meses da revolução. Os discursos de Fidel pela televisão deixavam os cubanos de todas as idades num estado de transe. A maioria da população odiava a ditadura de Batista e sua vontade de participar ou apoiar movimentos de oposição deve ser vista mais como um movimento nacional pela democracia. Fidel e os barbudos conseguiram captar esse sentimento e apresentar-se como os líderes fundadores de uma nova era na política de Cuba que derrotaria a corrupção e outros males. Em termos weberianos, a deles era uma autoridade carismática. Baseados nela, os revolucionários cubanos trataram rapidamente de consolidar sua posição política. Somente depois, mais precisamente após o fracasso dos EUA na da Baía dos Porcos, em abril de 1961, eles se declarariam socialistas e, mais tarde, comunistas.

Isso foi naquela época. O monopólio do poder e dos meios de comunicação ajudou a moldar e manter a nova ordem emergente em Cuba. Foi criado rapidamente um formidável e eficiente aparato de segurança interna, e sem dúvida isso influiu de maneira decisiva para a estabilidade política. O regime aperfeiçoou uma capacidade surpreendente de identificar, derrotar, reprimir ou neutralizar os inimigos. Em conjunto, esses fatores imunizaram Cuba contra o avanço de toda e qualquer política que seus líderes considerassem indesejável.

Além disso, a revolução estendeu o acesso à assistência médica, educação e outros benefícios básicos da previdência a muitos cubanos aos quais no passado isso era vedado. Os rebeldes revelaram-se eficientes em serviços básicos e em áreas como defesa e Forças Armadas, esportes, mobilização em massa, serviços médicos e atendimento em emergências como furacões e outras ameaças à segurança do povo. O número relativamente reduzido de mortos nos três furacões da temporada de 2008, a pior em muitos anos, comprova sua capacidade de proteger a população cubana como um todo.

As idéias são importantes, sim. E nenhuma foi e continua mais eficaz do ponto de vista político que as acusações dos líderes cubanos aos Estados Unidos por tudo que vai mal em Cuba. Tiveram nisso um sucesso fenomenal, e, mais importante, convenceram muitos cubanos de que os EUA constituem uma ameaça permanente à soberania nacional e à própria essência da identidade cubana. Fidel Castro teve pleno êxito em mostrar os EUA como uma entidade imperialista que ameaça Cuba e a humanidade. O regime também trabalhou de todos os modos para convencer os cubanos de que seus líderes são os únicos e verdadeiros defensores do nacionalismo de Cuba. Nessa perspectiva, Fidel é o grande líder da nação cubana.

O CONTEXTO GLOBAL

A famosa entrevista com Fidel Castro na primeira página do New York Times em 1957 ensinou ao líder do exército rebelde da Sierra Maestra que ele poderia usar a mídia internacional para cultivar sua imagem. Numa época em que se pensava que estivessem mortos ou derrotados, o artigo de Herbert Mathews mostrou uma imagem mítica de Fidel e seus guerrilheiros. Por um momento, a simpatia e o apoio externos tornaram-se uma dimensão importante da Revolução Cubana. Quatro filmes feitos recentemente sobre Che Guevara como rebelde emblemático do século 20, façanha que não teve iguais entre os líderes da Revolução Russa ou da Chinesa, mostram o poder, em escala mundial, do simbolismo dos rebeldes. Retrospectivamente, os poucos anos entre a chegada do iate Granma, em novembro de 1956, e o final de 1961, mas seguramente até a época da saída de Che de Cuba, em 1965, produziram as imagens duradouras dos jovens e fotogênicos rebeldes.

Fidel, Che e os barbudos da Sierra Maestra arrebataram os corações e as mentes dos latino-americanos e de um grande número de pessoas em todo o mundo. Eles exploraram o apelo romântico da juventude que lutava por seus ideais, disposta a ações corajosas e a grandes riscos na busca de um mundo melhor. Poucos contestaram sua visão do conflito com o poderoso vizinho ao norte como uma luta entre Davi e Golias. Um mundo repleto de desigualdades os considerava o símbolo da esperança dos despossuídos e oprimidos.

Durante muitos anos os líderes cubanos souberam usar habilmente sua reputação, coragem e capacidade para conquistar o vital apoio internacional. Os soviéticos forneceram uma ajuda de cerca de US$ 65 bilhões à Revolução Cubana até 1990. As alianças militares e estratégicas com os socialistas permitiram que Cuba empreendesse importantes campanhas militares em Angola e na Etiópia. No início da década de 60, a Cuba revolucionária apoiava os guerrilheiros de esquerda na América Latina, no Congo e em outras partes do mundo. Evidentemente, os cubanos superestimavam seu poder. O próprio Che ousou considerar-se um líder revolucionário na África, e então empreendeu uma tentativa desastrada e fatal de transformar a América do Sul numa Sierra Maestra. A morte, em 1967, consolidou sua imagem de figura emblemática e mártir da rebeldia idealista.

Nos anos 80, e depois nos 90, a “solidariedade internacionalista” cubana por meio de campanhas militares não foi mais possível. Os líderes de Havana mudaram para um novo internacionalismo que se baseava no envio de organizações médicas e serviços profissionais ao exterior. Na virada do século, quando a Venezuela deu uma considerável guinada para a esquerda com Hugo Chávez, Cuba cimentou esse papel. A incansável campanha ideológica que tachava os Estados Unidos de potência imperialista serviu ao regime para obter o apoio de adversários dos EUA como a Venezuela, mas também da China e agora da Rússia. Mais uma vez, o apoio internacional foi essencial para sustentar a economia cubana. Na América Latina, Cuba conseguiu ser admitida no Grupo do Rio e no Mercosul, assim como nas estruturas alternativas criadas sob a liderança venezuelana.

CRISE E MUDANÇA

A doença que levou Fidel Castro a se afastar do poder, em julho de 2006, e a transferência temporária do poder para Raúl Castro, formalizada em fevereiro de 2008 com a eleição deste para presidente, pareceu sinalizar a possibilidade de uma mudança estrutural em Cuba. Na realidade, uma série de importantes mudanças vinha ocorrendo desde a década de 90. Embora freqüentemente menosprezadas como medidas de adaptação, de pequena escala, para preservar o sistema atual, essas medidas - a liberalização das moedas fortes e das remessas, permitindo a abertura de pequenas empresas - tiveram um efeito cumulativo. Na segunda metade dos anos 90, Fidel Castro assinalou o fim do processo de reforma. As mobilizações de massa em torno do caso Elián González e a “batalha de idéias” voltaram a direcionar a atenção nacional para a mobilização coletiva em defesa do regime centralizado controlado pelo Estado, mais uma vez justificado pela batalha da nação cubana contra os EUA imperialistas. Nesse contexto, a ascensão de Raúl Castro à presidência fez com que muitos esperassem uma aceleração do processo de reforma. Em 2007, Raúl falou da necessidade de reformas estruturais. No início de 2008, foram anunciados passos relativamente tímidos. O novo chefe de Estado implementou algumas reformas - permitindo a ampliação da atividade agrícola privada, a compra de celulares e computadores pessoais.

Mas o presidente Raúl Castro está se movendo com grande cautela. Sua eleição em fevereiro de 2008 incluiu a escolha para o cargo de vice-presidente de um linha-dura pertencente à velha-guarda, leal ao projeto revolucionário tradicional. Em julho deste ano, o novo presidente, de 75 anos, reduziu aparentemente as perspectivas de mudança, embora seu governo continue pressionando por um projeto de lei que substitua a escala salarial baseada no igualitarismo por outra baseada na produtividade e no mérito. A hesitação de Raúl provavelmente decorre em grande parte da constante pressão da linha dura.

No segundo semestre de 2008, três furacões causaram prejuízos de bilhões de dólares à agricultura, às construções e à infra-estrutura. O governo substituiu três ministros - da Educação, Investimentos Externos e Agricultura. O general Ulisses del Toro, que presidiu à consolidação do setor açucareiro, foi nomeado para a pasta da Agricultura e seu vice tornou-se o responsável pelo setor açucareiro. Essas nomeações puseram o importante setor nas mãos de um general próximo de Raúl, que foi chefe das Forças Armadas desde 1959 e continua sendo o general de mais alta patente de Cuba. Na crise dos anos 90, o Exército realizou reformas agrícolas que aumentaram a oferta de alimentos. Como Cuba importa mais da metade dos alimentos que consome e cultiva apenas 45% da terra agriculturável, a reforma do setor agrícola será prioritária.

Os economistas de fora muitas vezes definiram a discussão da transição em Cuba em termos das questões normativas que surgem nas sociedades pós-comunistas, como a continuação e o alcance da estratégia de transição. Por exemplo, os dois paradigmas da estruturação das mudanças econômicas nas sociedades pós-comunistas enfatizam uma transição acelerada para uma economia de mercado baseada na concorrência (privatizações, livre trânsito de mercadorias e a menor intervenção estatal possível), como na antiga URSS, ou uma estratégia gradual, que combine a liberalização lenta com uma significativa participação do Estado e os esforços para impedir os colapsos sistêmicos que ameaçariam empregos, aposentadorias e a estabilidade da política, como na China e no Vietnã. Na atual dinâmica, parece mais provável em Cuba algo mais próximo da última alternativa. Alguns continuam considerando exageradas as expectativas de mudança, particularmente no que se refere à estabilidade do regime no sistema de partido único. No curto prazo, pelo menos, isso parece mais provável que uma única explosão de reformas políticas e econômicas rumo a uma transição rápida.

NOVO CAPÍTULO

O ano-novo deverá assinalar muito mais que um marco histórico para a revolução cubana, e seguramente trará novos desafios e oportunidades. A posse de Barack Obama na presidência, no dia 20 de janeiro, resultará em substanciais alterações de conteúdo e tom nas relações com Cuba. O candidato Obama prometeu liberalizar as viagens e o envio de remessas de dinheiro dos cubano-americanos. No contexto de linha dura seguido pelo governo de George W. Bush, isso abrirá uma janela de oportunidades para a negociação do tipo de relações que Cuba e os EUA deverão manter. Se os EUA estão prestes a ingressar em um período de considerável flexibilidade na política em relação a Cuba, a posição de Cuba é menos certa. Afinal, o embargo foi útil para a linha dura. Caracterizando-o como um "bloqueio" que confirma a agressividade imperialista dos EUA, as autoridades cubanas o usaram para manter sob controle a influência americana e dos cubano-americanos.

Além disso, as fenomenais disparidades da renda entre os cubanos da ilha e os que vivem nos EUA deverão preocupar os estrategistas cubanos quanto à reação da sociedade cubana a uma avalanche de cubano-americanos, ao aumento das remessas, ao turismo, e à influência geral dos EUA.

A crise financeira global e a recessão iniciadas em 2008 contribuirão para deteriorar a posição internacional dos EUA. Amigos e inimigos dos EUA tentarão usar os respectivos realinhamentos globais em benefício próprio, gerando novas opções para Cuba. A Venezuela de Hugo Chávez procurará manter seu recente papel, embora a queda dos preços do petróleo devam minar sua posição internacional. China e Rússia, mas também o Brasil e outros países emergentes, melhoraram ou estão planejando melhorar as relações com Cuba. Essas mudanças poderão reforçar a resistência cubana à reforma fundamental. Entretanto, a mudança dos EUA na questão da cooperação internacional e multilateral criará novas expectativas e dinâmicas que os cubanos levarão em consideração.

A resposta cubana aos desafios e às oportunidades do momento atual será uma mudança histórica que determinará o destino da sociedade e da revolução do país nos próximos anos. A dinâmica da política interna interagindo com o complexo domínio internacional, que está em constante evolução, influirá nas escolhas fatais dos líderes cubanos. No curto prazo, os reformadores deverão ganhar espaço em relação aos defensores da linha dura. Mas as principais mudanças dificilmente serão viáveis enquanto Fidel gozar de uma saúde razoável. Neste sentido, pressupõe-se que a doença de Fidel continuará cobrando seu preço, que Raúl Castro e companhia consolidarão sua posição e que a transformação do contexto internacional ampliará o alcance das escolhas com que eles se defrontam. No médio prazo, a inevitável transição da liderança depois da morte de Fidel e dos envelhecidos rebeldes da Sierra Maestra proporcionará o contexto para a definição de uma linha política pós-castrista e de uma revisão do modelo econômico. O ponto crucial será o que os jovens cubanos escolherão fazer com o legado de Fidel, incluindo o profundo nacionalismo contido nessa herança.

O caminho russo ou o chinês parecem muito improváveis para Cuba. Mas este é seguramente um momento de inovação e transformação. A alteração da dinâmica internacional, depois do início de 2009, contribuirá para definir como a sociedade cubana responderá aos desafios e tomará as decisões mais importantes ao definir seu futuro. Uma questão cada vez mais interessante é o papel que o Brasil e outros países da região optarão por desempenhar nessa conjuntura tão crítica.

*Mauricio Font, cubano radicado nos EUA, é diretor do Bildner Center for Western Hemisphere Studies e professor de sociologia na Universidade da Cidade de Nova York. É autor de Cuban Counterpoints e Transforming Brazil: A Reform Era in Perspective (ambos pela Rowman & Littlefield)

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