domingo, 28 de dezembro de 2008

Por falar em 1968

Ferreira Gullar
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / ILUSTRADA

Quando ocorreu o golpe militar de 1964, em matéria de política, eu era um energúmeno

SEM PRETENDER passar por dono da verdade, aproveito para contar coisas de que fui testemunha e até mesmo coadjuvante nos idos de 1968, de que tanto se fala agora.

Quando ocorreu o golpe militar de 1964, eu, em matéria de política, era um energúmeno, embora fosse presidente do CPC da UNE. Antes disso, integrara o Conselho Nacional das Ligas Camponesas, que não aconselhava nada e, quando tentou fazê-lo, foi desautorizado e dissolveu-se. Desapontado, fui procurado por Giocondo Dias, então secretário geral do PCB, para uma conversa que me fez ver as coisas políticas de uma nova maneira. Não entrei para o partido, mas entendi que, na revolução como na vida, apressado come cru.

O CPC contava com a assistência política do PCB, mas nem por isso deixou de cometer erros, como o de baixar a qualidade artística do que fazia, achando que assim atingiria o povão para "conscientizá-lo". Ao fazer arte ruim para poucos, errava duas vezes, na estética e na política. Quando nos demos conta disso, já era tarde: o golpe militar desabou sobre nossa cabeça.

O CPC virou Grupo Opinião e esse tipo de erro não se cometeu mais. Num contexto adverso, procuramos fazer o melhor teatro político que podíamos e, ao mesmo tempo, mobilizar a intelectualidade na luta contra a ditadura.

Ao contrário dos mais sôfregos, que escolheram o caminho da luta armada, nós acreditávamos que só o povo unido derrotaria o regime totalitário. E isso explica nossa participação em alguns episódios que marcaram aqueles anos difíceis.

Um exemplo: quando surgiu a idéia de protestar contra o regime militar em frente ao hotel Glória, onde se realizava um encontro de governantes latino-americanos, preferimos não participar. Não obstante, colaboramos na manifestação, fornecendo as faixas que foram exibidas na ocasião. Como organizadores da resistência intelectual, evitávamos aparecer.

Essa mesma cautela adotamos por ocasião da morte do estudante Edson Luiz.

Seu corpo foi levado para a Câmara de Vereadores e, enquanto as pessoas compareciam ali para solidarizar-se, líderes estudantis e intelectuais discutiam que vantagem política tirar daquela tragédia. Os líderes estudantis propunham irmos para a rua denunciar a polícia e a ditadura. Discordamos.O certo seria convocar o povo do Rio para o enterro do estudante, já que ninguém pode proibir um enterro. Argumentamos que, assim, muita gente teria coragem de aderir, já que a maioria não estava disposta a enfrentar cassetete e gás lacrimogênio. Foi a opinião que prevaleceu e o enterro se transformou numa denúncia massiva contra o regime militar.

Não foi outra nossa atitude, quando se discutia de que modo reagir aos abusos policiais, quando o comando da PM lançara uma nota ameaçando a população.

Disso resultaria a Passeata dos 100 Mil.

As lideranças antiditadura estavam reunidas no apartamento do advogado Sinval Palmeira e as propostas eram as mesmas de sempre: desafiar a polícia nas ruas.

Mais uma vez, nosso grupo ponderou que o caminho certo era tentar arregimentar as pessoas e organizações sociais que se opunham ao governo militar.

Propusemos convocar a intelectualidade para cobrar do governador Negrão de Lima os compromissos que assumira quando candidato. Em seguida, deveríamos nos reunir em um teatro e armar ali "uma barraca de protesto". A proposta foi aceita pela maioria e, no dia seguinte, o salão do palácio Guanabara estava ocupado por intelectuais e artistas de grande prestígio, que até então não haviam se manifestado contra o regime. O governador teve de prometer que conteria a violência policial. De lá fomos para o teatro Gláucio Gil, em Copacabana, para mobilizar a opinião pública e ganhar o apoio dos setores organizados da sociedade.

Enquanto discutíamos ali, o partido articulava o apoio da Associação de Mães, de sindicatos e da Igreja Católica. Conseguido isso, foi-se ao governador, que concordou em não reprimir a passeata que se pretendia realizar. Quando o resultado dessas articulações foi anunciado aos que ocupavam o teatro, a liderança estudantil negou-se a obedecer o acordo feito com o governador.

Mas conseguimos dobrá-la e a passeata se realizou com o êxito que se conhece.

Não obstante, durante a manifestação, eles insistiam gritando que "só o povo armado derruba a ditadura" e nós respondíamos afirmando: "O povo unido jamais será vencido". E, assim, depois que a luta armada foi derrotada e o povo deixou de votar nulo, a ditadura começou a fazer água e afundou.

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