quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Retratos numa exposição


Demétrio Magnoli
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Os partidos da esquerda tradicional ostentam panteões de ícones. Marx e Lenin são inevitáveis. Depois, tudo fica mais confuso. Stalin caiu no ostracismo, um destino que Mao tende a compartilhar; Trotsky sobrevive numa vertente minoritária; Fidel Castro e Che Guevara brilham nos partidos latino-americanos. A iconografia cumpre funções simbólicas delimitadoras, marcando as fronteiras de uma igreja política, e funções ideológicas norteadoras, identificando a trajetória de uma verdade que risca a história como um cometa. A inclusão de um novo ícone assinala o início de uma nova etapa, que desdobra e atualiza a verdade essencialmente imutável. Num ato público em Porto Alegre, semanas atrás, o PSOL introduziu em seu panteão implícito o retrato do delegado Protógenes Queiroz, que agora está exposto, depois de Marx, Lenin e Trotsky, ao lado do inefável Castro.

Há o óbvio, o não tão óbvio e o realmente importante. O PSOL busca empunhar a bandeira do combate à corrupção, outrora monopolizada pelo PT, num caso que envolve de formas não totalmente esclarecidas o núcleo duro do primeiro governo Lula. O banqueiro Daniel Dantas, pivô do caso, personifica há muito as relações perigosas entre dinheiro e política no Brasil. Ele entrou em cena bem antes que o ex-metalúrgico experimentasse a cadeira presidencial, mas sua influência deletéria chegou ao ápice com a disputa corporativa pelo controle do setor de telefonia, que se ramificou dentro do Palácio do Planalto e cindiu o governo nas alas dos ex-ministros José Dirceu e Luiz Gushiken.

A disputa corporativa terminou por um gesto de Lula, mudando a lei em benefício de grandes empresários que, casualmente, associaram-se a um negócio de seu filho e são seus financiadores de campanha. Dantas também se deu bem com o desenlace. Mas sobraram processos e densos mistérios. O banqueiro sabe de coisas que não sabemos - inclusive, talvez, sobre as fontes financeiras do mensalão. Há indícios de que Protógenes foi afastado a partir de uma decisão presidencial de natureza política. O óbvio: um PSOL que fracassou em se erguer como alternativa ao PT investe nessas hipóteses na tentativa de transcender o gueto em que agoniza.

O não tão óbvio é que, canonizando o delegado, o PSOL converte o combate à corrupção no refrão de um perigoso hino político. Ao mimetizar o PT de um passado que já parece tão distante, o partido dos dissidentes aposta suas fichas na repulsa generalizada à impunidade dos poderosos e fabrica um conto de fadas em que Protógenes e Dantas ocupam os lugares dos pólos dicotômicos do Bem e do Mal. Atrás da poeira dessa narrativa, a corrupção degrada-se numa entidade que flutua acima da política, como a gota de óleo na água. Pela mágica de um discurso vulgar, mas de apelo popular, oculta-se o sentido político das corrupções, no plural. Por que altos ministros petistas se envolveram numa guerra travada por empresas privadas em alianças com fundos de pensão de estatais? Qual é a ideologia que oferece legitimação para a intervenção ativa do governo na promoção de uma fusão entre grandes grupos econômicos? São perguntas cruciais que um PSOL seduzido pela doutrina do “capitalismo de Estado” não fará.

O realmente importante situa-se bem abaixo da superfície. Imbuído de um espírito de justiceiro, Protógenes atropelou as regras de conduta policial, inscreveu em seu relatório acusações sem provas contra jornalistas e, violando a lei, associou clandestinamente agentes da Abin a uma operação da Polícia Federal. Temos de escolher entre uma polícia com poderes extraordinários e a impunidade dos corruptores? Existem aqueles que, indignados com a impunidade, perguntam se a primeira alternativa não é o preço inevitável da “limpeza do Brasil”. Em outra esfera, existem os pistoleiros de aluguel, que participam da guerra suja travada por antagonistas empresariais imundos. No faroeste da internet, pautados pelos inimigos de Dantas, eles difundem a calúnia contra qualquer crítico dos métodos heterodoxos do delegado. Mas o PSOL, ainda que apenas por motivos egoístas, deveria pensar duas vezes.

Em nome da “guerra à corrupção”, a fim de erguer uma nova ditadura grão-russa, Vladimir Putin inverteu a ordem das coisas, subordinando o Estado aos órgãos de inteligência. Estamos a anos-luz de algo assim, mas as sementes do Estado policial devem ser extirpadas antes de germinarem. Precedentes pesam como uma montanha: se um policial pode agir como vigilante contra o poderoso Dantas, o que não se fará com quem só tem o poder da palavra?

Hugo Chávez, um aliado de Putin, escolheu o tema da corrupção como álibi para reprimir os opositores. O PSOL, que o aplaude com o entusiasmo dos néscios, parece interpretar as cuidadosas regras da democracia e do Estado de Direito como entulhos burgueses na estrada do futuro. Na ordem nova com que sonha, um Estado perfeito lancetará num só golpe glorioso, e de uma vez por todas, o cancro da corrupção. O seu Protógenes de hoje prefigura a perfeição estatal desse almejado amanhã. Fascinado pela polícia, o PSOL perambula como sonâmbulo à beira de um precipício.

A serviço de que governo estará um Protógenes do amanhã real? A inocência não é suficiente quando a lei se amolda à conveniência. O partido que saiu da costela do PT não tem o poder político de Lula, que induz à amnésia, nem o dinheiro farto de Dantas, que tudo compra. Bem longe do centro político, mas clamando contra os grandes, o PSOL figura como evidente vítima potencial numa futura campanha sem freios de “limpeza do Brasil”. O panteão de ícones do partido, que já não é inspirador, ficou bem pior com a canonização do delegado. Não estamos condenados, como pensa o PSOL, a uma escolha de Sofia. Temos o direito de querer os dois: a punição da corrupção e uma polícia subordinada ao império da lei.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

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