quarta-feira, 23 de julho de 2008

DEU NO JORNAL DO BRASIL


FRENTE AMPLA:
UM FRAGMENTO IMPERDÍVEL DA HISTÓRIA RECENTE

Sergio Bruni
Economista, Presidente do Conselho Municipal de Desenvolvimento da Prefeitura do Rio de Janeiro e Surperintendente do Centro de Estudos Estratégicos da FGV
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O livro Renato Archer – diálogo com o tempo é fruto de 25 encontros que o ministro Renato Archer teve com profissionais do Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (Cpdoc/FGV), resultando em 33 horas de gravação, que foram criteriosamente organizadas pela pesquisadora Regina da Luz Moreira e senhora Leda Soares, contando com o decisivo patrocínio da prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

Renato Bayma Archer da Silva, maranhense de nascimento, cursou a Escola Naval, entre 1941 e 1945, tendo servido a bordo de navios que patrulhavam a costa brasileira durante a 2ª Guerra Mundial. Elegeu-se deputado federal, em 1954, por seu Estado, na legenda do Partido Social Democrático (PSD), licenciando-se, assim, do serviço ativo da Marinha, onde chegou ao posto de capitão-de-fragata, sendo transferido para a reserva em 1961. Foi reeleito em 3 pleitos consecutivos, permanecendo na Câmara dos Deputados de 1955 à 1968, quando foi cassado pelo AI-5. Posteriormente, já com seus direitos políticos reestabelecidos, participou da fundação do MDB, hoje PMDB, foi ministro da Ciência e Tecnologia (1985/1987) e da Previdência Social (1987/1988) no governo José Sarney, e presidente da Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel) no governo Itamar Franco.

Sua última atuação pública ocorreu em 1996, poucos meses antes de falecer, quando dirigiu o Comitê Rio 2004, que organizou a campanha pela realização da Olimpíada maranhense, nacional e internacional.

Nas quatro décadas, por ele abordadas, relata interessantes episódios, agora trazidos à tona, que tiveram como protagonistas personalidades como Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas, Vitorino Freire, senador José Sarney, almirante Álvaro Alberto, Walter Moreira Salles, Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda, Flores da Cunha, Aliomar Baleeiro, embaixador João Carlos Muniz, Leonel Brizola, João Goulart, José Maria Alckmin, Oswaldo Aranha, Gustavo Capanema, Café Filho, Carlos Luz, Generais Lott, Flores da Cunha, Fiúza de Castro e Mascarenhas de Moraes, Nereu Ramos, Celso Furtado, Amaral Peixoto, Burle Marx, Vinícius de Moraes, Rubem Braga, Pablo Neruda, Milton Campos, José Aparecido de Oliveira, Afonso Arino de Mello Franco, comandante Carlos Borba, Antônio Callado, Cid Rojas Américo de Carvalho, Lindolfo Collor, Villas-Boas Corrêa, Armando Falcão, Chagas Freitas, Lincon Gordon, Che Guevara, Ulisses Guimarães, John Kennedy, Danusa Leão, Clemente Mariani, Hélio Jaguaribe, Franco Montoro, Oscar Niemayer, Richard Nixon, Petrôneo Portela, Luis Carlos Prestes, Mário Henrique Simonsen, Miguel Arraes, Ivete Vargas, dentre outras dezenas de ecléticas personalidades com as quais conviveu.

No livro, ele relata diversos episódios que se iniciam lembrando suas fortes raízes maranhenses, passando pela Escola Naval, sua carreira militar, a política maranhense, entrando na questão nuclear, onde deu grande contribuição como discípulo do seu então professor de química, o almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva, especialista no assunto e fundador, em 1951, do CNPQ.

Também aborda com desenvoltura, elegância e desprendimento, o período JK, o governo João Goulart, durante o gabinete parlamentarista de Tancredo Neves, onde foi subsecretário das Relações Exteriores, tendo ajudado a refinar, juntamente com o ministro San Thiago Dantas, a chamada Política Externa Independente, oriunda do governo Jânio Quadros, passando pelo período do regime militar, onde aborda, com precisão e maestria, aspectos extremamente interessantes, de todos os governos dos generais-presidentes.

Exemplo são suas observações do governo Costa e Silva, nas quais, com riqueza de detalhes relata o expurgo radical dos chamados castelistas, o caso Marcio Moreira Alves, a acefalia no poder e a constituição da junta militar.

Nos brinda, também, com sua visão da formulação, caminhos e descaminhos da Frente Ampla, na qual, sem dúvida, exerceu um importante papel na busca da consolidação da mesma, que unia atores com posturas político-ideológicas distintas, e às vezes, até mesmo, antagônicas, como as de Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda, João Goulart, Leonel Brizola, Jânio Quadros, dentre outros.

No livro ele aborda inúmeras passagens por ele vivenciadas, muito interessantes e de conhecimento restrito até então, finalizando seu depoimento abordando "a dura face do regime militar", que lhe cassou os direitos políticos e o prendeu três vezes, sendo que na última passou 20 dias incomunicável, fechando sua contribuição com as observações que fez na condição de "paisano" e a nova feição do Brasil, nos quais avaliou, com precisão cirúrgica, o momento político vivenciado pelo país, merecendo o registro de que em 1978, o ministro Renato Archer concedeu sua última entrevista ao Cpdoc.

Era o momento em que o governo Geisel enfrentava, ao lado das contradições internas do regime, representadas pela forte oposição à escolha do general Figueiredo como candidato à sucessão, também o crescimento da luta pela anistia, apoiada por importantes setores da sociedade, e se verificava os primeiros sinais de reanimação do movimento operário.

Jornal do Brasil, 20 de julho de 2008.

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


QUEM MATOU A VELHINHA?
Luiz Carlos Azedo


Ninguém sabe quem é o assassino, mas Raskólnikov sabe: foi ele mesmo. O desfecho da Operação Satiagraha lembra a trama de Crime e Castigo

O delegado federal Protógenes Queiroz é um personagem digno de um romance “noir” americano. Saiu do comando da Operação Satiagraha como um herói e ainda deixou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na maior saia-justa. Sua imagem é a do “cana dura” que não faz trato com bandidos, não aceita propinas, nem se intimida com políticos. Para chegar aos objetivos, usou de subterfúgios, inclusive aquele mais comum: atropelar hierarquia, suspeitos e advogados. No rastro dos crimes que investigava, foi em frente, doesse a quem doesse. Mas talvez tenha faltado ao delegado Protógenes a paciência de um Porfíri Pietrovitch, o perseguidor implacável de Rodion Românovitch Raskólnikov, assassino de uma velhinha e da única testemunha do crime, sua sobrinha, personagens de Crime e Castigo, o clássico romance de Fiódor Dostoiévski, escrito em 1866.

A caçada

O método do policial russo era a paciência e a persistência no cerco aos suspeitos, até que perdessem o controle e acabassem se incriminando. “Assentemos em que eu passei a ter suspeitas deste, daquele ou daquele outro, por me parecer que é o autor de um crime; vejamos: por que hei de eu ir incomodá-lo antes do tempo, embora possua algumas provas contra ele?”, explica Profíri, no genial diálogo com Raskólnikov.

“E veja, se o prendo antes do tempo, embora eu esteja convencido de que é ‘ele’, sou eu próprio que acabo por privar-me do meio de desmascará-lo mais à vontade; e como? Porque dessa maneira lhe destino uma posição, por assim dizer, definida; defino-o psicologicamente e tranqüilizo-o, e ele escapa-se-me e mete-se na sua concha; compreende, finalmente, que está preso”, arremata Porfíri.

O investigador joga com os nervos de um suspeito culto e inteligente: “Já reparou numa borboleta à volta da luz? Bem; pois da mesma maneira se porá ele a dar voltas e voltas em meu redor, como em torno de uma vela; a liberdade deixará de ser-lhe agradável, começará a matutar, a viver numa inquietação, a ficar preso nas suas próprias redes e a sofrer angústias mortais... E isso ainda não é tudo: ele próprio, espontaneamente, me proporcionará alguma prova matemática, do gênero de dois e dois são quatro... assim que eu lhe consinta um intervalo mais longo (…)Não lhe parece?”

A trama

Raskólnikov não responde a Porfíri, fica pálido e imóvel. “Boa lição!”, pensava. “Ah, é absurdo, meu caro, que tu queiras assustar-me e valer-te de estratagemas para comigo! Tu não tens provas (…)” Ninguém sabe quem é o assassino, mas Raskólnikov sabe: foi ele mesmo. Por isso, com os nervos à flor da pele, acaba se entregando. O desfecho da Operação Satiagraha lembra a trama de Crime e Castigo. Por que o Palácio do Planalto, de uma hora para outra, resolveu entrar de sola no caso, quando tudo indicava que a oposição seria a mais prejudicada no episódio?

Porque o responsável pela Operação Satiagraha tentou estabelecer um vínculo entre o principal acusado na operação, o banqueiro Daniel Dantas, e o Palácio do Planalto, envolvendo a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, e o chefe de gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho. Forçou a barra demais ao levantar suspeitas de que a compra da BrasilTelecom pela Oi, que é fomentada pelo governo Lula, faria parte das operações suspeitas de Dantas.

Gato escaldado por escândalos envolvendo petistas trapalhões, o presidente Lula decidiu dar um novo rumo às investigações. Agora, o foco será nos crimes financeiros de Dantas , jamais as operações comerciais que envolviam a participação do governo e dos fundos de pensão, como era o horizonte das investigações conduzidas por Protógenes. Essa é uma tentativa de salvar a megafusão nas telecomunicações, na qual o presidente Lula sempre apostou e que agora está sob suspeitas. O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, já anda dizendo que a instituição não tem como pegar Dantas. Seria um problema para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que deveria fiscalizar melhor os fundos de investimentos. O crime da velhinha continua sem solução.

DEU EM O GLOBO


OBAMA "TEFLON"
Merval Pereira


NOVA YORK. O provável candidato democrata à Presidência, senador Barack Obama, é um sucesso de público, mas não tinha até agora conseguido transformar esse inegável apelo em um apoio consolidado, tanto assim que as pesquisas de opinião o mostram sempre à frente do senador John McCain, mas a uma distância relativamente pequena. A mais recente pesquisa Gallup mostra uma diferença de apenas três pontos percentuais. O sucesso até o momento de sua primeira viagem internacional como presuntivo candidato pode lhe dar essa musculatura que falta. Está ficando claro que o primeiro-ministro do Iraque, Al-Maliki, aproveitou-se da presença de Obama para mandar o recado de que apoiava a proposta de uma retirada de tropas americanas em 16 meses a partir de janeiro de 2009, provocando irritação na Casa Branca e deixando o senador McCain isolado em sua posição radical de não sair do Iraque "nos próximos cem anos".


De fato, há sinais claros nos últimos dias de que a campanha republicana está perdendo o controle com o sucesso do adversário, e os mais evidentes deles são os anúncios que começaram a ser veiculados, tanto na televisão quanto na internet.


Para tentar quebrar o predomínio de seu adversário na cobertura da mídia, McCain pensa até em antecipar para esta semana o anúncio de seu vice. Somente levantando essa expectativa, a partir da noite de segunda-feira, o candidato republicano conseguiu atrair a atenção para sua campanha, enquanto todos os holofotes se viravam para a viagem de Obama.


Também uma publicidade divulgada nos últimos dias na televisão, tentando culpar os votos de Obama no Senado pela alta da gasolina que tanto afeta a vida do americano médio, mostra o desequilíbrio que tomou conta da campanha de McCain.


Tudo está sendo tentado para reduzir a importância ou colocar no ridículo a viagem de Obama pelo mundo. McCain chegou a dizer que não sabia se "o pessoal do Missouri" iria gostar de ver Obama sendo ovacionado pelos europeus.


Num momento crítico da economia americana, quando o euro fica cada vez mais forte que o dólar e até a compra da fábrica da cerveja Budweiser por uma empresa européia, a AmBev (belgo-brasileira, para nós, e apenas belga para os jornais americanos) é vista como um sinal de fraqueza quase tão expressivo quanto, nos anos 90 do século passado, os japoneses comprarem o Rockefeller Center, em plena Manhattan.


Quatro anos atrás, essa carta antieuropéia foi jogada, com sucesso, contra o candidato democrata John Kerry, que passava as férias na região francesa da Bretanha. Mas Kerry era um milionário com pose de aristocrata, ao contrário de Obama.


Há também muita queixa contra a mídia por parte da campanha de McCain, e com certa razão. A viagem de Obama está sendo acompanhada por um séquito de jornalistas, inclusive os três principais âncoras da televisão americana, e uma verdadeira veneração por Obama é expressa às vezes de maneira tão explícita que permite até exageros como o de Chris Mathews, da MSNBC, que chegou a dizer certa vez que, ao ouvir Obama discursando, sentiu "um excitamento" subindo-lhe pelas pernas.


O caso foi relembrado esta semana no talk-show de Jay Leno, e a campanha de McCain colocou na internet um vídeo irônico com essas e outras demonstrações de "amor" por Obama por parte de jornalistas. Nesse ponto, e não onde Lula as vê, existem semelhanças entre as figuras de Obama e de Lula, a começar pelo apelido de "teflon", em que nada pega, nem mesmo quando muda radicalmente de posição e, tendo sido considerado o senador mais esquerdista de Washington, vota a favor da escuta telefônica sem permissão da Justiça, enquanto o "conservador" McCain pelo menos se absteve.


O governo Lula prefere, de maneira geral, um futuro presidente republicano, "menos protecionista" e, sobretudo, menos "próximo dos tucanos" do que a oligarquia Clinton. A escolha de Obama como candidato democrata afastou o pior pesadelo de Lula, o de ter novamente um Clinton na Casa Branca, o que fortaleceria seu adversário Fernando Henrique.


Mas, embora não esteja ainda afastada a hipótese de que a senadora Hillary Clinton venha a ser candidata a vice na chapa de Obama, a influência maior na candidatura Obama dentro do Partido Democrata está mais para a oligarquia Kennedy do que para os Clinton.
Mas a relação especial que existe entre Lula e Bush, selada na parceria sobre os biocombustíveis, que tanta polêmica provoca hoje no mundo por causa da alta do preço dos alimentos, pode continuar com McCain, que tem se mostrado muito mais sensível à abertura comercial do que seu adversário democrata.


Mas Lula vê na história de Barack Obama semelhanças com a sua vida, embora essa seja uma percepção equivocada, já que Obama faz parte de uma elite, ele próprio um intelectual formado pelas principais universidades americanas, filho de um professor.


O fato de ser o primeiro negro a ter chances reais de vir a ser presidente da República, porém, o tem colocado em uma redoma, longe dos ataques, e qualquer referência mais crítica é considerada "politicamente incorreta".


Ao contrário, Obama encarna o "politicamente correto", e não se dá direito nem mesmo de sorrir de uma piada sobre ele, o que vem provocando reclamações, e até situações radicalizadas como a reação à capa do "The New Yorker" em que aparece vestido de muçulmano com sua mulher fantasiada de guerrilheira no Salão Oval. Mesmo com todas as explicações, que até podem ser insuficientes, a revista foi "punida" e seu repórter, barrado na viagem que Obama está fazendo.


Um detalhe mostra bem até aonde vai a preocupação com detalhes de sua campanha. Para a convenção democrata, foi contratada a ativista ambiental Andrea Robinson, que vai medir as emissões de carbono de cada viagem, de cada placar, até cada xícara de café. E a maior parte da comida será orgânica ou produzida localmente, para reduzir as emissões durante o transporte.

DEU EM O GLOBO


NA HORA DA MORTE
Zuenir Ventura


Acho que nenhum dos viajantes estrangeiros que ao longo dos séculos se deslumbraram com o hedonismo dessa terra solar de Dionísio, afável e bela, jamais previu que o Rio pudesse vir a ser uma cidade identificada com a morte, onde se mata e morre sistematicamente. Uma necrópole povoada de vítimas fatais. Dói constatar que a Cidade Maravilhosa virou um lugar lindo para se morrer. Não falo da morte por doença, mas da morte súbita, estúpida, provocada, violenta; em uma palavra, o extermínio. Mata-se por encomenda e por vingança, de uma só vez ou em série, no varejo ou em forma de chacina, com pistola, metralhadora ou fuzil. Executam-se com tiros certeiros e com balas perdidas - crianças, velhos, mulheres, civis e militares, culpados e inocentes, a qualquer hora do dia ou da noite, nas ruas e dentro de casa, nos carros e nos ônibus. O que deveria ser escândalo banalizou-se e tornou-se uma rotina.

Houve um tempo em que havia jornais popularescos especializados em crimes, e deles se dizia que, espremidos, saía sangue. Hoje, o sangue invadiu todas as primeiras páginas e os horários nobres, transformando esses espaços em obituários. Mais do que uma imprensa "especializada" em crime, a cidade é que se especializou no tema. A PM do Rio não apenas é a que mais mata no Brasil, como faz isso quatro vezes mais do que nos EUA. Sua fama é a de que atira primeiro e pergunta depois.

Gostaria de saber por que o narcotráfico existe em NY, Londres e Paris, mas só aqui se mata e se morre tanto. Talvez porque se adota uma absurda "ideologia de guerra" em que o combate às drogas causa mais mortes do que elas mesmas. O governador e seu secretário José Mariano Beltrame dizem que é uma necessidade, a conseqüência inevitável da política de confronto com os bandidos. Será? Seu colega, o secretário nacional de Segurança Pública, Ricardo Balestreri, acha que não. Em entrevista ao repórter Vasconcelos Quadros, afirma: "Em hipótese nenhuma o enfrentamento pode ferir inocentes." Ele é contrário à prática de "trocar a vida de um inocente pela do bandido".

Por que o governo de Cabral, em geral tão sintonizado com o de Lula, não ouve esse eco de sensatez que vem de Brasília? Podia fazer isso em nome da vida e da paz. O Rio não deve ser governado pelas pulsões de morte, por Tânatos; não é da sua natureza. O Rio tem que ser Eros.
Nessa hora de morte, nada melhor do que visitar a retrospectiva de Thereza Miranda no MAM, como fizeram 1.980 pessoas na memorável noite de abertura. Faz bem sentir a vida que palpita nos 140 quadros ali expostos. As paisagens de Thereza são, além da beleza, gestos vitais em defesa da Natureza ameaçada de extinção. Sua obra salva pela recriação artística o que periga perecer. De cada uma de suas gravuras "brota um mundo", como disse Carlos Drummond de Andrade.

DEU NO JORNAL DO BRASIL


A PRIORIDADE DA FAXINA NO CENTRO DO RIO
Villas-Bôas Corrêa


A ampla cobertura da chocha campanha para a eleição de prefeitos e vereadores no primeiro domingo de outubro alterna alguns exemplos de áspera rivalidade municipal, que se dissolvem na pasmaceira que lembra as velhas preliminares dos antigos campeonatos de futebol. O mandato de prefeito baixou à categoria de escada para o pódio do governador do Estado.E daí, o vôo para o infinito.

No Rio, o exemplo calça como uma luva na maioria dos municípios. Com algumas curiosas extravagâncias a denunciar que, da penca de candidatos, muitos não conhecem a ex-Cidade Maravilhosa. Não é necessário identificar os pilotos que voam acima nas nuvens das mazelas que infernizam o cotidiano do morador do Rio, pois todos parecem empenhados em salvar a cidade com obras fantásticas na periferia, sem sequer olhar para o antigo centro político, ad- ministrativo, cultural, econômico e artístico condenado à decadência do desmazelo, do abandono na longa penitência que começa com a mudança da capital para Brasília em obras, em 21 de abril de 1960.

Iludiu-se com o engodo do Estado da Guanabara e mergulhou de cabeça no declínio com a calamitosa fusão com o Estado do Rio de Janeiro. De lá para cá, nem o governador do Estado cuida da cidade e muito menos prefeitos dispõem de recursos e prestígio político para falar grosso com os hóspedes com mandato de donos do mundo do Palácio do Planalto, do Palácio Alvorada e da Granja do Torto. Mas se a consolidação de Brasília não sustentou o prestígio do Congresso, ora engolfado na crise ética que respinga nos três poderes, também não justifica o abandono da área mais nobre da cidade fundada por Estácio de Sá em 1º março de 1565.

O Centro do Rio, que se percorria a pé a qualquer hora do dia e da noite sem qualquer risco é uma vasta área sem limites precisos para a serventia dos que nele moram, trabalham ou freqüentam. Mas da Praça Mauá ao Monroe ligados pela Avenida Rio Branco e da Praça 15 de Novembro ao Campo de Sant"Ana, na Praça da República ainda é o Centro do Rio. E que, em poucos anos, virou uma imensa lixeira, com detritos amontoados nas praças, ruas, calçadas. A catinga é insuportável.

Neste cenário de miséria comparável aos piores flagrantes do calvário de infelizes dizimados pela fome e a violência nas manchas da África e da Ásia, uma população errante pede esmolas ou um prato de comida, cata papéis, enquanto gangues de marmanjos e menores maltrapilhos furtam os incautos que ousam passar pelas áreas de risco. Durante o dia, a limpeza urbana garante condições de higiene razoáveis no miolo da cidade. E a presença da polícia reduz o numero de roubo dos trombadinhas que arrancam as bolsas das senhoras, os relógios e celulares dos distraídos.

O candidato a prefeito do Rio logicamente deve procurar solução para todos os problemas da cidade. E aproveitar as facilidades da campanha para o debate das mazelas de cada bairro, até de cada rua. Com o salvo-conduto dos líderes do tráfico da favela, subir o morro para ouvir as queixas dos moradores e buscar o alívio possível. Promessas o vento leva. Duplicação de avenidas, alargamento de ruas, policiamento em cada esquina, redução da carga de impostos, o fim da novela da roubalheira da recuperação da baía de Guanabara não enganam nem as crianças de colo. O eleitor quer ser tratado com respeito. E quem quiser entrar na corrente para usar o voto como protesto, deve usar a arma para a renovação moralizadora.


Quem não sabe escolher o seu candidato, não merece ser eleitor.

DEU NO VALOR ECONÔMICO


INFORMAÇÃO E FICHA SUJA
Cláudio Gonçalves Couto


A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) deu início ontem à divulgação em seu site ( www.amb.com.br ) dos nomes dos candidatos que respondem a processos na Justiça. Já há algum tempo a organização não governamental Transparência Brasil também iniciou a divulgação de uma relação de parlamentares de casas legislativas dos três níveis de governo que respondem a processos . Em ambos os casos nota-se uma cautela na utilização dos termos para designar aqueles cujos nomes serão listados. A AMB fala em "candidatos que respondem a processo na Justiça, de origem criminal ou eleitoral", enquanto a Transparência fala em "citados na Justiça e tribunais de contas", ressaltando que se trata apenas de ocorrências já em segunda instância e excluindo litígios de natureza privada e crimes contra a honra - no primeiro caso porque são irrelevantes para o desempenho da função pública, no segundo porque políticos são muito comumente processados por este tipo de coisa.

Comentando a iniciativa da AMB, o deputado Paulo Maluf, por meio de sua assessoria, afirmou que "juízes não devem se meter em política" - informou ontem o UOL. O deputado quase tem razão. De fato, juízes não devem - no exercício do cargo - atuar politicamente, seja mediante decisões, seja por manifestações públicas que ensejem uma interferência do Judiciário no processo de competição política. O mesmo não se pode dizer, contudo, de uma associação de classe - como é o caso da AMB. Neste caso, a atuação do órgão não expressa a posição individual deste ou daquele juiz e, portanto, não enseja o entendimento de que seu posicionamento vá influenciar decisões institucionais de entes estatais, como são os tribunais. Portanto, se os juízes gostariam de manifestarem-se politicamente como cidadãos, contudo sem violar o resguardo funcional que o cargo lhes impõe, encontraram na AMB um instrumento adequado. Por isto, o queixume do deputado Maluf parte de um princípio correto, mas é inadequado para o caso específico agora em voga.

Ficha suja é diferente de direito de informação

O que podemos perguntar é porque esse tipo de iniciativa parte de uma associação de juízes. Ironicamente, pode-se dizer que as razões para isto não são muito diferentes daquelas que podem nos auxiliar a compreender o porquê da intromissão do Judiciário em assuntos tipicamente políticos. Esta intromissão (analisada por Vitor Emanuel Marchetti Ferraz Jr. em tese de doutoramento em ciência política, recentemente defendida na PUC-SP) pode ser compreendida, dentre outras razões, pelo amplo espaço deixado vazio pela classe política na regulamentação do processo de competição entre partidos e lideranças. A omissão de nossa classe política para combater os descalabros morais e mesmo legais cometidos por alguns de seus membros ensejou a insatisfação de amplos setores da sociedade com a condução dos negócios públicos. Essa insatisfação assumiu a forma de uma demanda insatisfeita - e uma vez que não surgiu a possibilidade de que fosse satisfeita pela classe política, abriu-se o espaço para que outros atores entrassem em cena - dentre eles, os juízes. Como diz o adágio popular: o cachorro entrou na igreja porque a porta estava aberta.

Uma parcela dessa abertura de porta se dá diretamente pelos partidos políticos. Seriam eles os primeiros a ter a possibilidade de filtrar as candidaturas - oferecendo aos eleitores apenas postulantes de indubitável conduta. Neste caso, o veto ao candidato não teria de ter qualquer tipo de motivação judicial, bastando uma avaliação política da conveniência ou não de aceitar que cidadãos sob suspeição postulem um cargo público. Mas é difícil esperar dos partidos esse tipo de ação se alguns deles, em vez de reduzir o poder de lideranças sob suspeição, preferem guindá-las a postos tão elevados como a presidência da agremiação - é esse o caso do PTB, que reconduziu Roberto Jefferson à presidência do partido mesmo depois deste confessar ter cometido ilícitos por ocasião do imbróglio do "mensalão". Outro caso emblemático é o dos irmãos, deputado estadual e vereador, presos ontem no Rio de Janeiro. Ambos foram expulsos da polícia civil por vínculos conhecidos com milícias armadas. Pode-se questionar porque então seus partidos, DEM e PMDB, optaram por ceder-lhes a legenda.

Mas não são apenas os partidos que deixam de fechar as portas, impedindo que estranhos "se metam em política", nos termos do deputado Maluf. Também os parlamentares deixam de tomar providências. Deixaram de tomá-las repetidamente por ocasião dos últimos escândalos que afetaram o Congresso - não só ao deixar impunes seus pares, mas também ao não aprimorar as instituições. Com isto abrem espaço para que atores normalmente estranhos à política nela interfiram - e pior, façam-no gozando de legitimidade, ainda que não se trate de uma legitimação propriamente democrática. Noutros termos, se a percepção que o corpo de cidadãos tem é de que os políticos nada fazem para disciplinar seu meio, passa a não apenas aceitar, mas exigir, que outros tomem providências, mesmo que essas providências se dêem ao arrepio da lei e do respeito aos direitos de cidadania. Num cenário de impunidade e ausência de instrumentos de resguardo do respeito à coisa pública, linchamentos (ainda que não propriamente físicos, mas morais) começam a se mostrar atraentes para muitos.

Um exemplo deste tipo de linchamento é o uso que boa parte da imprensa vem fazendo da expressão "lista suja" ou "ficha suja" para se referir àqueles que constam das relações divulgadas por órgãos como a AMB e a Transparência Brasil. Ora, como os ali relacionados respondem a processos que ainda não transitaram em julgado, permanecem - até sentença em contrário - apenas como "supostos culpados", ou "suspeitos". O problema é que a pecha da "ficha suja" pode provocar danos irreparáveis a muitos que ainda têm o direito de defender-se e provar sua inocência. Portanto, embora a divulgação de informações sobre a situação judicial dos candidatos seja algo desejável numa democracia (quanto mais transparência melhor), é preciso ter cautela na qualificação que se dá a essas pessoas. Falar em "ficha suja" é, certamente, impróprio.

Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP. A titular da coluna, às quartas-feiras, Rosângela Bittar, está em férias