segunda-feira, 28 de julho de 2008

DEU NO JORNAL DO BRASIL


PÃO E CIRCOS
Wilson Figueiredo
Jornalista


Que não foi Lula quem fez do Brasil o que se vê, não resta dúvida. Mas o resto é com ele mesmo. Já há públicos para todos os espetáculos nos quais o presidente da companhia tanto é empresário, quanto faz o papel do artista em caso de necessidade, doença ou impedimento. Depois de emocionar principalmente os que pela primeira vez foram ao circo ver os saltos presidenciais de um trapézio para outro, sem a rede de segurança embaixo, Lula entrou na jaula para se defrontar com as feras nacionais. Foi uma revelação. Partiu de chicote na mão ao encontro do mensalão, de cuja existência nem suspeitara, apresentado pela oposição com a pompa das comissões parlamentares de inquérito e as circunstâncias dos grandes golpes.

O presidente não demorou a esclarecer que eram costumes antigos de que a memória recente não podia saber. A indireta acertou o peito oposicionista. Nada de novo, como lembraria Salomão. A platéia caiu em si, mas se segurou bem na arquibancada. Enquanto por um lado o governo, inspirado na máxima da velha Roma, distribuía pão, por outro a oposição cuidou de montar o circo para o povão. O fato foi que Lula & companhia colecionaram aplausos sob a forma de pesquisas que ressaltaram a popularidade presidencial em alta e, dadas as condições, preocupante. Estávamos no fim do primeiro mandato. O Ibope, traduzido para o dialeto político, dizia que os cidadãos queriam mais espetáculos e, portanto, faziam questão de Lula por mais uma temporada. O novo contrato de prestação de serviço foi aprovado sem maiores dificuldades. Tinha precedente ilustre.

Mas a repetição já não teve, por exemplo, o globo da morte. O segundo contrato (ou mandato, com o preferem os mais exigentes) não acrescentou novidade, nem teve feras dignas de adjetivos fortes. Circo e política esgotaram seus truques e se limitam a repetir o repertório que data do tempo dos nossos avós. Quem prefere chorar é o eleitor. A novidade desta temporada ia ser o veto aos candidatos com antecedentes perfeitamente dispensáveis ao exercício dos mandatos de prefeito e vereador, mas bastou anunciar a providência elementar de limpeza urbana para se fazer ouvir o apelo em defesa do direito do candidato ficha suja a se explicar, depois de eleito (se não for, estará dispensado, e, se for, também). O coro da hipocrisia nacional saiu em defesa da moral relativa. O candidato de ficha suja ficou para a próxima eleição. A que vem por aí foi ressalvada como a última grande exibição dos que sujaram o currículo com grandes ou pequenos furtos (não é questão de tamanho).

Feliz ou infelizmente, depende do ponto de vista, era tarde quando se verificou que só depois de interessar o público se descobriu que, sem os artistas, não haveria espetáculo. Os áulicos, outrora chamados de amarra-cachorro, levantaram a lebre: já era hora de assinar o contrato para a terceira temporada, e não pode ser mediante simples aditamento. Outro mandato, o terceiro, cabe numa cláusula do contrato atual. Iam bem as sondagens aqui e ali, principalmente ali, na arquibancada onde se localiza a opinião pública.

Quem não gostou foi o próprio empresário Luiz Inácio Lula da Silva, cansado de substituir artistas que caem doente ou cuidam de seus interesses, tanto no trapézio (com rede embaixo) quanto na jaula ou no globo da morte. Declarou-se cansado de turnês e anunciou uma temporada longe do picadeiro, para voltar quatro anos depois, dependendo da situação nacional. Estava a questão circense nesse ponto, quando deu na telha de Lula convocar uma reunião dos seus para inverter a ordem dos fatores sem alterar o produto: primeiro a reforma do regulamento, depois a eleição. Ou seja, a reforma da companhia deve preceder a temporada de espetáculos, com a Polícia Federal programada para editar cenas cinematográficas de algemas cujo uso deixou de ser privilégio de quem não tem onde cair morto. Certa confusão pode ser útil à passagem da reforma política à frente da sucessão presidencial. A conferir.

DEU EM O GLOBO


TSE ABRE DEBATE SOBRE FORÇA-TAREFA PARA O RIO
Adriana Vasconcelos e Maria Lima

Jungmann apresenta hoje a Ayres Britto proposta de convocação da PF e até do Exército para conter violência e intimidação


BRASÍLIA. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Carlos Ayres Britto, discutirá hoje com o presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara, deputado Raul Jungmann (PPS-PE), a proposta de criação de uma força-tarefa - com o envolvimento da Polícia Federal e, se necessário, até do Exército - para identificar e punir os candidatos às eleições do Rio vinculados a milícias e traficantes, que estariam estimulando ou, no mínimo, sendo coniventes com as ameaças dirigidas a seus adversários e, agora, também a jornalistas neste início de campanha eleitoral.

O ministro da Justiça, Tarso Genro, antecipou ontem que a estrutura do ministério está à disposição do TSE, mas ressaltou que a PF só poderá ser acionada para integrar qualquer ação no Rio se houver um pedido formal do governo do estado.

Jungmann: cidade caminha para estado de exceção

Ayres Britto condenou a intimidação dos jornalistas por representantes do tráfico na Vila Cruzeiro, e disse que discutirá com Jungmann, hoje, a proposta de que o Tribunal lidere um movimento de reação ao crime organizado durante a campanha, no Rio.

- O Rio está caminhando para um estado de exceção, onde o poder que vai emergir das urnas é conivente ou condicionado ao crime organizado. Por isso é fundamental que o TSE comande uma ação, acione a Polícia Federal e até o Exército, se necessário, para identificar e punir os candidatos das milícias e do tráfico. Isso foi feito na Colômbia. A situação exige uma mobilização das três esferas de poder no estado e um pacto de todos os políticos que atuam lá para resguardar os direitos e liberdade dos cidadãos do Rio - propõe Jungmann.

O deputado deverá cobrar providências, não só do TSE, como também do Ministério Público Federal para que sejam tomadas medidas efetivas que assegurem a todos os candidatos a vereador e prefeito do Rio o direito de fazer campanha no município, sem sofrer pressão ou ameaças de milícias ou traficantes.

No encontro que terá hoje com o ministro Ayres Britto e o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, Jungmann pedirá garantias ainda para que não se repitam episódios como o registrado no último sábado na Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão, onde repórteres do GLOBO, "Jornal do Brasil" e "O Dia" que acompanhavam uma caminhada do senador Marcelo Crivella (PRB), candidato a prefeito, foram cercados por traficantes armados com fuzis e os fotógrafos se viram obrigados a apagar todas as fotos registradas na cobertura.

Ayres Britto preferiu ontem não antecipar sua posição sobre a proposta de Jungmann para que o TSE comande uma força-tarefa no Rio para resguardar os direitos e liberdades dos cidadãos do estado. O ministro condenou, porém, a violência sofrida pelos jornalistas no último sábado.

- Lamento profundamente o ocorrido, que outra coisa não significa que uma absurda ausência do Estado e a conseqüente ocupação do espaço por um segmento fora da lei. No caso, abatendo de morte dois excelsos valores constitucionais: primeiro, a liberdade do exercício da profissão de jornalista e, segundo, a liberdade de um candidato de fazer sua campanha eleitoral, com o que a liberdade de imprensa e a democracia representativa resultam ultrajadas - disse o ministro.

Embora também tenha considerado lamentável o episódio ocorrido com os jornalistas que acompanhavam o senador Crivella, Tarso Genro limitou-se a declarar, por intermédio de sua assessoria, que o Ministério da Justiça tem limites para atuar nesse caso.

- O Ministério da Justiça e todas as suas áreas estão à disposição do TSE e do estado, mas não podemos tomar qualquer iniciativa, porque seria inconstitucional - disse.

"É preciso ter postura rigorosa", diz Marco Aurélio

O presidente nacional da OAB, Cezar Brito, apóia a criação da força-tarefa para, como disse, dar um basta à ausência do Estado e a conivência com o crime organizado nos morros do Rio de Janeiro, e garantir que a comunidade possa exercer a soberania democrática de escolher seus representantes.

- O Estado brasileiro não pode permitir que a comunidade desses morros, que já é vitima desse tipo de organização criminosa, também fique ausente da decisão política, como se disséssemos que a democracia não pode ser exercida em determinados espaços do Brasil. É como se houvesse um pacto oculto e cruel do Estado brasileiro com o crime organizado do tipo: eu não me faço presente na sua área e em troca a população local não dá problemas ao Estado porque não participa da escolha democrática - criticou Cezar Brito.

Para Marco Aurélio Mello, ex-presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal Federal, é preciso uma ação rigorosa do Estado brasileiro para coibir esse tipo de intimidação do crime organizado no Rio de Janeiro.

- O tráfico hoje não se avexa de até mesmo intimidar a imprensa. É um alerta para as autoridades constituídas de que não dá mais para tergiversar e ficar nos paliativos. É preciso ter uma postura rigorosa e dizer que não estamos vivendo sob a lei do mais forte naquele local, mas num estado de direito. O Estado está devendo á população uma resposta - observou.

Sobre a proibição da entrada de jornalistas e candidatos nas favelas e morros, Marco Aurélio disse que é uma situação terrível, que não pode ser suportada em pleno século XXI.

- Esses currais do tráfico no Rio colocam sob suspeita os votos da comunidade, que vai votar intimidada. Se perguntarem se isso é consentâneo com o século XXI, com certeza a resposta é negativa. Todos os órgãos envolvidos têm de buscar com seriedade uma correção de rumos.

DEU EM O GLOBO


VIOLÊNCIA VIRA O TEMA PRINCIPAL DA CAMPANHA
João Pimentel


Ameaças e intimidações fazem com que a segurança pública ocupe grande parte do discurso de candidatos a prefeito

Uma semana marcada por incidentes com candidatos em campanha em favelas dominadas por traficantes fez com que a violência no Rio passasse a ser o principal assunto da disputa pela prefeitura. Após a ameaça de traficantes da Vila Cruzeiro, na Penha, sábado, a jornalistas que acompanhavam a caminhada do candidato Marcello Crivella (PRB), o candidato Fernando Gabeira (PV, PSDB e PPS), por exemplo, tirou a tarde de ontem para uma reunião com seus colaboradores, na qual pretendia avaliar os casos recentes e aprofundar seu discurso sobre o tema.
- Não podemos aceitar restrições. A violência se tornou sim o tema mais importante das eleições do Rio. Na ditadura militar, os direitos humanos eram desrespeitados pelo governo. Hoje, são desrespeitados pelo crime organizado. É necessária a saída desses grupos armados e a presença e permanência da polícia nas comunidades.
Gabeira critica declarações de Marcello Crivella
Gabeira, que no início da tarde de ontem fez campanha entre a Praia do Pepê e o Quebra-Mar, na Barra, defendeu uma reforma política urgente no Rio:
- Está difícil, mas de alguma forma essa reforma está sendo feita na porrada, como no caso de Jerominho, Natalino - disse, em referência ao vereador Jerônimo Guimarães, do PMDB, e seu irmão, o deputado estadual Natalino Guimarães, do DEM, presos sob acusação de comandar uma milícia na Zona Oeste.

Classificando de "inaceitável e escandaloso" o incidente, Eduardo Paes, candidato do PMDB, partido do governador Sérgio Cabral, disse que seguirá a campanha normalmente.

- Imagina ao que essa população não é submetida todo dia. Isso (a ameaça aos jornalistas) mostra mais uma vez que é fundamental a autonomia do Estado sobre essas áreas. Isso coloca em risco a própria democracia. Não dá para ceder. Vou continuar entrando em qualquer lugar o tempo todo. Não aviso miliciano ou traficante. Não vou me subjugar à bandidagem.
Um "pacto democrático contra os feudos eleitorais" é a proposta que Chico Alencar (PSOL) apresentará aos candidatos majoritários hoje. Sua idéia é que todos assinem um compromisso de sustar no TRE os registros dos candidatos a vereador que, comprovadamente, estejam envolvidos com criminosos.

- Denunciamos esses poderes paralelos e despóticos que "adotam" candidaturas e criam currais onde só elas podem transitar. A sociedade não deve aceitar os expedientes espúrios da aliança com a truculência e do crime de captação do sufrágio. Queremos que as polícias investiguem a promiscuidade entre banditismo e campanhas.
Já Paulo Ramos (PDT) classificou de "armação" o incidente ocorrido sábado.
- Isso é armação para justificar o modelo de segurança pública do atual governo, que massacra, exclui e criminaliza os pobres. Não vou com grandes aparatos por respeito às comunidades. São sempre os mesmos (candidatos) que criam os factóides por não ter receptividade e quererem mais repercussão.
Jandira diz que só repressão não combate violência

Para a candidata do PCdoB, Jandira Feghali, o prefeito do Rio não pode fazer de conta que não está vendo a situação de violência. Ela diz que a política de segurança é um tripé, formado por inteligência, repressão e prevenção, e que só um dos lados está funcionando, o do confronto:

- O prefeito não pode dizer simplesmente que a polícia não é sua. A prefeitura precisa ter políticas públicas inclusivas, dar oportunidades aos jovens e a suas famílias, ter uma Guarda Municipal com foco na cidadania. E a prevenção é um lado desse tripé de grande responsabilidade da prefeitura.

Criticando a falta de iluminação nas ruas do Rio, a candidata defendeu a necessidade de melhorar a ordem urbana:

- A cidade está escura e precisamos ocupar o espaço público. O carioca não tem medo de praça cheia, tem medo de praça vazia.

Dois dos incidentes envolvendo política e segurança ocorridos semana passada se passaram na Rocinha. A candidata a vereadora do PT Ingrid Geromilich precisou pedir auxílio da Secretaria de Segurança para fazer campanha na região. Depois, a polícia encontrou uma ata de reunião do chefe do tráfico da favela, Antônio Bomfim Lopes, o Nem, em que ele impõe apoio a um único candidato, embora sem citar nome. O presidente da associação de moradores, Luiz Cláudio de Oliveira, o Claudinho da Academia, concorre a uma vaga na Câmara pelo PSDC, e diz ter apoio de "cem líderes" locais.

DEU NO VALOR ECONÔMICO


NOSSO QUINHÃO DE RUINDADES
Fábio Wanderley Reis


O noticiário do período recente, em particular o relativo à operação Satiagraha da Polícia Federal, tem exibido de modo especialmente agudo várias faces sombrias da vida brasileira e os grandes desafios correspondentes. A desigualdade social e suas ramificações no plano da cultura; a penetração das instituições em geral pelas consequências negativas da desigualdade, incluídos os órgãos da aparelhagem política do Estado e mesmo os da Justiça (note-se o impacto, registrado por todos, do fato de que se prendam banqueiros ou os "homens de qualidade" de sempre); a questão das reformas político-institucionais em geral: em primeiro lugar, serão realmente necessárias ou, como querem alguns, estaremos apenas, parafraseando Drummond, provando, entre ruindades, as que nos foram legadas - vale dizer, experimentando, como todo mundo em diferentes momentos, nosso quinhão de dificuldades no processo de construção institucional? Em segundo lugar, na suposição de que reformas sejam necessárias, ou de que seja necessário agir, como obter reformas institucionais efetivas? Será possível alcançá-las com "meras" mudanças em dispositivos legais ou será preciso antes alguma mudança de sentido "estrutural" e cultural mais profundo?

Reformas, desigualdade e valores culturais

Seja como for, são nítidos os reflexos institucionais gerais da desigualdade e da cultura da desigualdade. É provavelmente irrelevante, por exemplo, a celeuma em torno das "fichas sujas" com relação a um Congresso em que, para começar, um país de educação precária se faz representar, de maneira amplamente predominante, por gente de educação universitária. Quanto à Justiça, cabe assinalar o que Beatriz Magaloni (citada em M. Taylor, "Judging Policy", 2008) apontou há pouco quanto à operação da Justiça na América Latina em geral, a saber, a tendência ao divórcio entre a (eficiente) dimensão "madisoniana" relativa ao equilíbrio e ao controle recíproco entre os poderes, por um lado, e, por outro, a (deficiente) dimensão "hobbesiana" relativa à garantia de direitos básicos na vida cotidiana dos cidadãos. No caso brasileiro, é patente que aos integrantes do "povão" (para usar a distinção a que recorri na semana passada) se abrem duas possibilidades nas relações com a Justiça: ou a de aparecerem como vítimas ou autores e réus de crimes violentos ou, quando se trata da Justiça atenta aos direitos civis do cidadão, a de surgirem como pano de fundo ou como meros figurantes, como acontece com os "nativos" em certos filmes americanos, a contrastar com a relevância e a qualidade de gente real dos protagonistas hollywoodianos - o equivalente da parcela dos brasileiros assimilável à condição de "povo" soberano. Já quanto aos meios de comunicação, por seu turno, apesar da abundância relativa do noticiário negativo que envolve todas as categorias sociais, é bem claro que a cobertura ampla e de repercussão vai também para os eventos protagonizados pelos "mais iguais". Naturalmente, o que vimos agora deixa transparecer o lado transformador disso justamente ao destacar os "mais iguais" (os homens de qualidade) como delinquentes presumíveis às voltas com a Justiça. Mas não é de estranhar que, como Maria Inês Nassif assinalava no Valor de 24 de julho e como costuma repetir-se, o foco inicial em Daniel Dantas como acusado tenha logo se deslocado para a própria Polícia Federal, o Ministério Público e o Governo, em consonância com o Judiciário como eficiente contrapeso madisoniano.

É preciso reconhecer que o aspecto cultural da realidade que vivemos não mudará sem mudança profunda no substrato de desigualdade material e intelectual, além do componente racial do legado escravista. Apesar de indícios preciosos da emergência de certa "inclusividade" que torna "incorreta" a face cultural mais odiosamente rombuda da desigualdade, a possibilidade de contemplar a superação mais efetiva do quadro geral negativo, em suas várias dimensões, certamente requer -- além de que se conte com a sorte - uma perspectiva de longo prazo.

Quanto à conexão entre as mudanças que caberia desejar e a ação no plano político, é sem dúvida necessário denunciar, como tenho às vezes salientado, a distorção da postura radical inclinada a rechaçar a ação que busca avanços tópicos em qualquer campo em nome da necessidade de fazer "tudo", ou muito mais. Mas é preciso superar também a passividade a que induziria a perspectiva de "nosso quinhão de ruindades" acima mencionada. Entre os cientistas políticos brasileiros, por exemplo, essa perspectiva tem levado, às vezes, a uma combativa disposição anti-reformas. No entanto, em alguns dos melhores trabalhos de pesquisa relevantes para o problema geral, como os de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, um ânimo que resulta simpático ao anti-reformismo se tem combinado, de modo inconsistente, com resultados em que se revelam justamente os avanços (quanto a problemas como a disciplina do comportamento partidário nas votações do Congresso, ou a dinâmica mais proveitosa no plano da política orçamentária) permitidos por alterações nos mecanismos legais pertinentes, seja ao nível dos dispositivos constitucionais ou de meras resoluções administrativas do próprio Congresso Nacional, por exemplo.

Não é preciso confundir a busca de melhorias e reformas com a torta visão negativa da política como tal. E, além da pressão direta de dispositivos legais apropriados sobre os interesses de atores supostamente guiados por interesses estreitos, cabe contar com algo de maior alcance: a possibilidade de que a alteração gradual das expectativas que tais dispositivos promovam venha talvez a ajudar no processo de amadurecimento de mudanças consistentes e duradouras no plano dos próprios valores e da cultura em sentido pleno.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


ITAMARATY TIRA PRIORIDADE DO SUL
Clóvis Rossi


AO ACEITAR a proposta de acordo apresentada pela direção da OMC, o governo brasileiro jogou fora, numa noite, a política pró-Sul que adotou com vigor nos cinco anos e meio do governo Lula.

Não se trata nem de julgar se essa política era a correta ou se seria melhor a que pregava o contrário (aproximar-se mais e mais do mundo rico). Há bons argumentos em favor de uma e outra linha. O importante, no caso, é a perseverança em uma dada direção ou, em caso de mudança de rumo, uma razão forte o suficiente para ser facilmente compreendida pelo público e os parceiros externos.

Não foi o que ocorreu. O Brasil passou os últimos cinco anos, desde a criação do G20 em 2003, defendendo a tese de que a Rodada Doha era, centralmente, uma questão de liberalizar a agricultura dos países ricos em benefício dos pobres. Nem a competente dialética dos diplomatas brasileiros em geral e, em particular, do chanceler Celso Amorim será capaz de convencer quem quer que seja que houve, na noite de quinta para sexta-feira passadas, concessões dos países ricos que ao menos se aproximassem do defendido há cinco anos.

Qual era o nó agrícola mais saliente nas negociações da semana passada? O volume de subsídios que os EUA dão a seus agricultores. O G20 passou cinco anos defendendo um teto de US$ 13 bilhões. Os EUA ofereceram inicialmente US$ 15 bilhões, rejeitados pelo G20. Aí, surgiu a proposta de Pascal Lamy, o diretor-geral da OMC, de US$ 14,5 bilhões, uma redução microscópica e, ainda assim, o dobro do que vem sendo efetivamente concedido aos agricultores dos EUA nestes tempos de elevados preços de commodities agrícolas.

O Brasil aceitou, o que leva a uma de duas suposições: ou todo o empenho por um teto menor era jogo de cena ou, agora, o rumo da diplomacia mudou para agradar os ricos em vez de solidarizar-se com o Sul. Trocar de linha por uma diferença de US$ 500 milhões não parece uma justificativa convincente.

Pior, no entanto, é a punhalada pelas costas na Argentina. Vejamos: o Brasil estava perfeitamente confortável com o nível de proteção a sua indústria previsto no documento prévio às reuniões da semana passada. Só o rejeitou para defender o Mercosul ou, mais exatamente, a Argentina, que reclamava um grau maior de proteção.

Defender o Mercosul tornou-se um dos principais cavalos de batalha da diplomacia brasileira, como disse à Folha, em Roma, no mês passado, o próprio Lamy. De repente, de novo em uma única noite, o Itamaraty dá as costas ao seu aliado mais importante na região prioritária para a diplomacia brasileira (o Mercosul e a América do Sul) sem que tenha havido qualquer contrapartida significativa dos ricos. Pior: colhe o governo de Cristina Kirchner em seu pior momento interno. A oposição certamente usará a punhalada como sinal de que o governo Kirchner está isolado externamente.

Por fim, debilita outro projeto prioritário, o Ibas (Índia/ Brasil/África do Sul), típica aliança do Sul. Os dois parceiros rejeitaram energicamente a proposta que o Brasil aceitou gostosamente.Se todos esses danos colaterais tivessem ocorrido em troca de ganhos formidáveis no comércio global -que, afinal, é o que domina o jogo diplomático de países, como o Brasil, que não têm força militar ou econômica para outros jogos-, seria fácil de entender. Mas ante resultados tão modestos, fica a impressão de que a diplomacia brasileira quis apenas mostrar-se bem comportada com os ricos. Exatamente o que vinham pedindo os setores políticos e diplomáticos que eram ironizados até então pelo governismo como subservientes ao Norte e preconceituosos com o Sul.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


A QUEM SERVE A GLOBALIZAÇÃO?
Luiz Carlos Bresser-Pereira


Países da América Latina perderam o controle de suas taxas de câmbio e ficaram para trás

NOS ANOS 1990, a globalização era a "bête noire" da esquerda e dos países em desenvolvimento -para muitos significava abertura econômica prematura. Na atual década, deixou de ser bandeira ideológica do neoliberalismo para se transformar no fantasma perseguindo os países ricos que, aos poucos, abandonam o discurso neoliberal e se preparam para levantar mais barreiras protecionistas. Nos EUA, o discurso dos dois candidatos à presidência é protecionista. Na Europa, a rejeição aos imigrantes pobres porque eles pressionam para baixo os salários médios aumenta a cada dia, ao mesmo tempo em que leis contra os imigrantes violando direitos humanos são aprovadas pelo parlamento europeu, como bem demonstraram Ricardo Seitenfus e Deisy Ventura nesta Folha (25.7.08).

Como explicar esse fato? Afinal, a quem serve a globalização? A globalização é a denominação para o estágio atual do capitalismo; é abertura comercial combinada à formação de uma sociedade global. No plano econômico, a globalização significa abertura de todos os mercados: abertura comercial, necessariamente, porque é parte da própria definição de globalização; abertura financeira -dos fluxos de capital-, perfeitamente evitável, já que aumenta a instabilidade financeira mundial ao tirar dos países em desenvolvimento o controle de suas taxas de câmbio.

Nos anos 1990, a globalização contou com o apoio dos países do Norte, que partiam do pressuposto que, na competição global, teriam vantagem. Isso, entretanto, só era verdadeiro em relação à abertura financeira, porque esta, ao impedir os países em desenvolvimento de administrar sua taxa de câmbio, deixava livre a tendência à sobreapreciação da sua taxa de câmbio.

Não era verdade em relação à abertura comercial, porque, desde que os países em desenvolvimento neutralizassem aquela tendência, sua mão-de-obra mais barata lhes garantiria êxito na competição global sem necessidade de proteção.

Para que isso ocorresse o país em desenvolvimento deveria preencher três condições: (1) ser um país de renda média (que já passou pelo estágio da indústria infante), (2) manter o equilíbrio fiscal e (3) contar com uma estratégia de desenvolvimento que implicasse a determinação nacional de neutralizar a tendência à sobreapreciação da taxa de câmbio -uma tendência existente em todos os países em desenvolvimento devido à doença holandesa e à atração que as economias desses países exercem sobre os capitais abundantes e relativamente mal-remunerados do Norte. Os países asiáticos dinâmicos hoje capitaneados pela China satisfizeram essas condições; mantiveram tanto as finanças do Estado quanto do Estado-Nação sadias graças ao estrito controle orçamentário e à administração da taxa de câmbio para mantê-la sempre competitiva -e cresceram muito mais do que os países ricos.

Outra, porém, foi a sorte dos países latino-americanos. Subordinaram-se à ortodoxia convencional; aceitaram, além da globalização comercial, a financeira; passaram a receber capitais de que não têm necessidade; perderam o controle de suas taxas de câmbio; deixaram-se se apreciar até a beira da crise de balanço de pagamentos; e ficaram para trás. A globalização, que lhes poderia ter sido tão favorável, afinal não os beneficiou, porque, embora tivessem as condições para competir mundialmente, suas elites não têm a autonomia para poder aproveitar a oportunidade.


LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 73, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".