segunda-feira, 4 de agosto de 2008


TRADIÇÃO

Ascenço Ferreira

(1895-1965)


Terraço da Casa-Grande de manhãzinha,

fartura espetaculosa dos Coronéis:


- Ó Zé-estribeiro! Zé-estribeiro!

- Inhôôr!

- Quantos litros de leite deu a vaca Cumbuca?

- 25, seu Curuné!

- E a vaca Malhada?

- 27, seu Curuné!

- E a vaca Pedrês?

- 35 seu Curuné!

- Sóó? Diabo! os meninos hoje não têm o qui mamar!

DEU NO JORNAL DO BRASIL


SOBRE TRANSFERÊNCIA DE VOTOS
Wilson Figueiredo
Jornalista


O presidente Lula foi à Bahia e, antes de saber o quê que a baiana realmente tem, recomendou aos demais convidados ao almoço no Palácio de Ondina tratarem "muito bem a minha candidatada". Nem a própria Dilma Rousseff, de corpo presente, disfarçou a surpresa por trás do sorriso. O tratamento de choque aplicado por Lula revitalizou a sucessão presidencial e lhe deu a medida da volatilidade do poder, embora já resolvida pelos cálculos para 2014. Se é que pesquisas lhe dizem a verdade. O resto é lisonja.

Estava lançada a candidatura da ministra Dilma Rousseff, até então implícita e sem decolar, por ser mais pesada que o ar irrespirável, pelo menos até o próprio presidente apontar a porta da rua aos queremistas do terceiro mandato. Criou com o lançamento de Dilma o que faltava à sucessão presidencial para desencalhar. E mais tempo para o ocupar em responsabilidades superiores ao seu patrimônio de intenções de votos intransferíveis.

Na condição de magnata da produção de votos, o presidente se aventurou no caminho da sucessão, para a qual tem votos para dar, vender não. Falta-lhe apenas a eleição. Tal desperdício não deixa de ser contradição da democracia instalada no terreno histórico onde já se ergueram duas ditaduras e desabaram algumas tentativas mal conduzidas. O terceiro mandato cogitado pelo clube de falidos (em matéria de votos), sob a batuta do vice-presidente que se elegeu duas vezes sem votos, deixou os dois na mão. Entre uma pesquisa e outra, Lula viu que ia ficar sem saída, logo ele que não se sente bem na "escolha de Sofia", na qual o vencedor é também perdedor. Deixou correr o tempo e, na Bahia, onde foi desfilar o estilo de governar em trânsito, declarou seu voto e deixou o resto para trás. Contornou as tensões da escolha ao personalizar a indicação antes atribuída aos partidos. Fez bem. O PT é mais enrolado do que penteado rastafari e o PMDB não perde o jeito de penetra de classe média em festa de família rica. Já o PSDB evitou até agora as tensões, pré e pós, de decidir entre duas candidaturas plantadas há anos também em termos de opção de Sofia, que beneficiaria os adversários. A social-democracia, desta vez, ou vai ou racha no Brasil. Também de Sofia.

Depois de pouco falar e muito calar, que é a arte mineira de desconversar, Lula entrou em cena como diretor da peça republicana atualizada e resolveu a questão com, mais ou menos, dois anos de antecedência: cuidem da Dilma e não se preocupem com o vice, cuja escolha recairá mesmo sobre quem não tiver votos. À saída do almoço, Lula não fez mas podia, se a soubesse, ter repetido a frase que imortalizou o mineiro mais cosmopolita da política brasileira, Francisco Negrão de Lima, modesto de votos e rico de elegância, governador da Guanabara (era o Rio de Janeiro mesmo, com menos estatística). Numa dessas situações das quais parecia não haver saída normal, e depois de muito conversar, Negrão declarou aos repórteres que o cercaram: "A situação é grave e, sem hipérbole, terrível". Era, mas deu tudo certo. Lula perdeu a oportunidade.

A candidatura de Dilma Rousseff estava implícita, mas sem garantia de sobrevivência por conta própria. Ela se sentia constrangida de falar a respeito de hipótese. O presidente, com sua inexplicável propensão hamletiana de ser e não ser ao mesmo tempo, criou o fato na Bahia mas, se não o complementar com outros do mesmo calibre, vai conhecer dificuldades.

Dilma era apenas presidenciável como qualquer brasileiro, com mais de 35 anos. Agora passou a candidata da preferência de Lula, como Emilinha Borba era a favorita da banda dos Fuzileiros Navais. Por direito natural.

Se a política é mesmo a arte do possível, Lula atua dentro do parâmetro nacional onde, de certa forma, tudo é possível, dependendo do imponderável. Apenas convém não ser surpreendido pela confirmação de que eleger o sucessor é exceção, da Presidência da República às prefeituras municipais. Votos só se transferem mediante telegrama ou carta por via postal. Ou por e-mail, na internet.

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

POSIÇÃO DE MINISTRO PREOCUPA O PLANALTO
Christiane Samarco, Brasília


Avaliação é de que Tarso constrange e cria problemas para o presidente

A defesa pública da punição dos torturadores do regime militar, feita pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, na semana passada, não desagradou apenas às Forças Armadas. Setores do Palácio do Planalto e do governo também se irritaram com as declarações e reprovaram a conduta do ministro.

A avaliação predominante na Esplanada dos Ministérios é de que o discurso da “responsabilização dos agentes públicos que praticaram violações dos direitos humanos” só está servindo para “constranger e criar problemas” para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

No governo, quem mais se incomodou com a manifestação “inconveniente” de Tarso foi o ministro da Defesa, Nelson Jobim. Ele comentou no fim de semana com um interlocutor que já teve “de apagar incêndio dele (de Tarso) com o Judiciário” e agora surge a “provocação aos militares, sem avisar ninguém”. Frisou que se via obrigado a contestar o colega de público, para contornar a crise.

O embate com o Judiciário se deu por causa das críticas de Tarso ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, em razão dos seguidos habeas corpus concedidos pela Justiça a presos em operações da Polícia Federal.

Depois do seminário promovido pelo ministro da Justiça, Jobim apressou-se em afirmar que “a análise dos fatos que estão sendo levantados por Tarso cabe exclusivamente ao Judiciário” e nada tem a ver com o Executivo.

Jobim também atuou nos bastidores, procurando acalmar pessoalmente os comandantes das três Forças e agradou. Oficiais do Exército estão sendo convencidos de que há um “núcleo do governo que barra o revanchismo propalado pelo ministro da Justiça”, mas nem assim está sendo fácil conter a revolta dos militares diante das declarações de Tarso.

IMAGEM

Generais em postos de comando têm defendido a tese de que o presidente Lula precisa dar um “cala-boca” no ministro. Argumentam nos bastidores que os constantes embates, seja com o Judiciário ou com as Forças Armadas, prejudicam a imagem do governo e comprometem o ambiente interno.

Um general da ativa que acompanha os desdobramentos do seminário do ministério e participa dos debates suscitados no Exército afirma que isso demonstra “desunião interna e nos prejudica a todos”.

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

MILITARES REAGEM A TARSO E CRITICAM 'PASSADO TERRORISTA' DO GOVERNO LULA
Christiane Samarco, BRASÍLIA


Oficiais vão patrocinar seminário na quinta para discutir o que consideram ‘conduta revanchista’ do ministro


Os militares decidiram dar o troco ao ministro da Justiça, Tarso Genro, por causa da audiência pública convocada por ele na semana passada para debater a punição de “agentes do Estado” que tenham praticado tortura, assassinatos e violações dos direitos humanos durante o regime militar. Revoltados com o que consideram “conduta revanchista” do ministro, oficiais da reserva, com o apoio de comandantes da ativa, patrocinarão uma espécie de anti-seminário no Clube Militar do Rio de Janeiro, na próxima quinta.

Em recente conversa com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, disse que é preciso “pôr uma pedra sobre este assunto”, até porque o tema está saturado e o objetivo da Lei da Anistia foi encerrar um debate que “abre feridas e provoca indignação”. Um general da ativa que acompanha a movimentação dos colegas reformados disse ao Estado que os militares vão se manter calados, mas avisa que a reserva se manifestar.

Segundo este general, o objetivo do seminário de 7 de agosto é debater o que consideram “passado terrorista” de autoridades do governo Lula e de personalidades do PT, discutindo, inclusive, se não seria o caso de puni-los pelos excessos cometidos na luta armada. O que mais irrita oficiais das três Forças é o fato de a maioria deles ter recebido indenizações. A queixa geral é de que eles também mataram e seqüestraram e agora querem provocar os militares.

No seminário, uma das idéias é aproveitar a estrutura do Clube Militar, como agremiação que desde a República Velha vem funcionando como uma espécie de porta-voz do setor, para exibir uma série de slides com fotos e uma biografia resumida de ministros de Estado e petistas ilustres. A lista começa pelo ex-ministro José Dirceu e tem o próprio Tarso Genro em quinto lugar. O segundo posto é dado à ministra da Casa Civil, Dilma Roussef.

O ministro da Comunicação, Franklin Martins, aparece em quarto, logo atrás do deputado José Genoino (PT-SP). Mais atrás, estão os ministros do Meio Ambiente, Carlos Minc, e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi.

“Será que quem seqüestrou o embaixador norte-americano e o prendeu, dizendo todo dia que ia matá-lo, não cometeu ato de tortura igualmente condenável?”, questionou o presidente do Clube Militar, general da reserva Gilberto Barbosa de Figueiredo, em recente entrevista ao Estado. Ele não mencionou Franklin como um dos idealizadores do seqüestro, mas antecipou o tom do seminário.

LULA ‘CERCADO’

O general defende a tese de que, se for para julgar quem torturou, como sugeriu Tarso, o julgamento deve ser estendido a todos, incluindo os que estão na cúpula do governo. A lista já circula entre oficiais da ativa e da reserva por meio de mensagens pela internet. Nela, os militares se queixam de que o presidente Lula governa “cercado por remanescentes da luta armada”.

Um dos mais criticados é o secretário de Direitos Humanos, acusado no texto de “agir com muita liberdade e desenvoltura na defesa de posições revanchistas” no desempenho de suas funções. A mensagem conclui que a Secretaria dos Direitos Humanos “foi criada para promover o revanchismo político, afrontar as instituições militares e defender organizações de esquerda”.

Na biografia de Dilma, a mensagem diz que ela “participou da organização de assaltos a bancos e quartéis, foi condenada em três processos e ficou presa no presídio Tiradentes”. Em tom irônico, lembra o depoimento dela ao Tortura Nunca Mais, em que ela relatou ter sido torturada por 22 dias. “Um caso raro que não se sabe por que não foi incluído até hoje no Guinness, pois conseguiu sobreviver durante 528 horas aos diferentes tipos de tortura a que alega ter sido submetida.”

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O ALIENISTA
Fernando de Barros e Silva


SÃO PAULO - Em baixa na PF, Protógenes Queiroz está em alta na opinião pública. Seu afastamento do caso Daniel Dantas & Naji Nahas, cujas circunstâncias e motivações não foram bem esclarecidas, teve o efeito de redimir os erros do inquérito obtuso que produziu. Fora da investigação -não talvez pelos bons motivos-, o delegado ficou à vontade para assumir, com e sem razão, o papel de vítima dos poderosos e paladino da moralidade.

Feito celebridade, Protógenes encontrou um palanque para seu discurso cívico-messiânico, no qual o jargão de delegacia vem embolado com clichês da esquerda e rudimentos mal assimilados de sociologia. Não deixa de sugerir um personagem de Glauber Rocha, sempre entre a política e o delírio, numa luta encarniçada do bem contra o mal.

Em entrevista ao repórter Rubens Valente, nesta Folha, Protógenes se põe como "porta-voz do grande grito contra a corrupção no país", um "instrumento" do povo que se sentia "oprimido" pelos corruptos. Não é difícil imaginá-lo deputado em 2010 ou na lista dos mais vendidos do próximo Natal.

Assim como Daniel Dantas se tornou um vilão de novela, o delegado também é uma caricatura de herói. A questão de fundo vai além dos personagens da hora.

A Constituição de 88 e duas décadas de regime democrático produziram novas gerações de juízes, promotores, delegados e agentes da PF empenhados e em condições de enfrentar a impunidade dos poderosos. Isso é novo e é muito bom.

A boa nova, porém, produz monstros quando se fica sabendo que a Justiça concedeu à PF acesso a todo o cadastro telefônico do país a pretexto de investigar a turma de Dantas. Isso também é novo e não é apenas muito ruim. É assustador.

Se não se agir logo para conciliar a sede de justiça com as garantias constitucionais, corremos o risco de caminhar para uma República de Bacamarte, o famoso personagem de Machado de Assis que trancou a cidade inteira num hospício. Que tal prender toda a população e depois ir soltando os inocentes?

DEU NO VALOR ECONÔMICO


INSTITUIÇÕES E POLÍTICAS PÚBLICAS
Fábio Wanderley Reis


Tivemos na semana passada, em Campinas, o 6º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política. No que me diz respeito, a reunião ensejou participar em discussão relativa aos resultados alcançados e desafios suscitados por estudos recentes no campo que se costuma designar como política comparada.

Afora questões metodológicas áridas (e cercadas de bobagens eternas: não comparar alhos com bugalhos, maçãs com laranjas...), os aspectos substantivos do tema permitem destacar, especialmente na óptica dos desafios a serem enfrentados, a questão das relações entre instituições políticas e substrato social, que tenho considerado aqui com alguma frequência. Ela remete a um problema conceitual básico, para o qual os estudiosos nem sempre são atentos, com custos altos do ponto de vista do interesse real das análises: há um plano institucional a ser contraposto cortantemente ao plano da base social das interações e conflitos de todo tipo, ou a visão apropriada das instituições políticas deve salientar antes o enraizamento sociopsicológico dos mecanismos e entidades "formais" da política, de modo a permitir a articulação dos dois níveis e a consequente eficácia na "domesticação" formal (legal, "institucional") das relações e dos conflitos da base?

Objeto e contexto da ação política

A primeira perspectiva leva ao "institucionalismo" estreito e empobrecedor que às vezes tenho mencionado. A segunda é sensível ao drama social envolvido no desafio da construção de instituições democráticas, e o aspecto de uma psicologia coletiva propícia surge nela como produto, em medida importante, justamente de que se torne possível acomodar os conflitos - em particular o conflito distributivo, apesar de que este possa combinar-se com focos diversos de agregação e enfrentamento dos interesses. Tenho proposto uma distinção que se dirige sobretudo à dimensão de psicologia coletiva, mas que é sem dúvida relevante para as relações dos "formalismos" institucionais com o substrato social mesmo em seu componente estratégico ou conflituoso: por um lado, o institucional como "objeto", em que se trata da ação deliberada do legislador ou da "engenharia" político-institucional, fatalmente condicionada por um horizonte conjuntural e contendo inevitável elemento de artificialismo, em contraste com a opacidade "estrutural" da base ou substrato (donde se falar às vezes do "meramente" institucional); e, por outro lado, o institucional como "contexto", em que os dispositivos e normas institucionais, com o passar do tempo, eventualmente se "sacralizam" e se transformam em parte efetiva e relevante do contexto em que se desenvolvem as ações e interações cotidianas.

Além da recentíssima atenção, com boas razões, ao Judiciário, os estudos e discussões institucionais no país têm dado ênfase igualmente merecida ao Legislativo. Contudo, o caráter estreito do foco "institucionalista" tem levado seja a pressupostos convergentes com certo foco "realista" da literatura internacional, em que a suposição básica é a de que a ação dos parlamentares não visa senão a assegurar a reeleição e a preservação do cargo (desaguando na pura barganha clientelista), seja a destacar a operação de mecanismos (em especial os instrumentos de poder de que dispõe o Governo) capazes de assegurar a disciplina partidária nas votações no Congresso Nacional. Naturalmente, maior sensibilidade à ligação entre instituições e substrato exigiria aqui que se examinasse com cuidado a conexão eleitoral dos parlamentares e os partidos e sua consistência como instrumentos de articulação com a base social. Em volume de 2006 sobre presidencialismo, parlamentarismo e democracia, José Antônio Cheibub se interroga a certa altura sobre as relações entre "disciplina" partidária e "coesão" partidária: é claro que o desiderato é que se venha a ter a disciplina como resultado natural da coesão e, assim, da consistência real de partidos que supostamente estariam representando algo maior do que os interesses miúdos de determinadas clientelas. A concessão ao realismo envolvida no reconhecimento de que boas regras disciplinadoras (e as reformas correspondentes) podem provavelmente ajudar a que se avance rumo ao desiderato não deveria redundar em justificar que se confunda ou perca de vista o desiderato, nem permitir esquecer que a possibilidade de realizá-lo depende em grau significativo de condições do próprio substrato - e do eleitorado como parte dele.

Mas cabe ressaltar algo mais, que tem preocupado analistas atentos: a relativa escassez, entre nós, dos estudos tradicionais de "políticas públicas", em que se tende a realçar o papel do Executivo, além do dos outros poderes. Um belo trabalho de Marta Arretche, apresentado na própria reunião da ABCP, examina a política social que vem sendo executada no Brasil, especialmente o programa Bolsa-Família, com referência à estrutura federativa do Estado brasileiro e aos diferentes papéis cumpridos pelo governo central e pelos municípios. Mas um volume que mencionei há algumas semanas, publicado em 2007 nos Estados Unidos (P. Pierson e T. Skocpol, "The Transformation of American Politics"), adverte com grande força para a relevância do que aqui se pode apreender, ao mostrar a afirmação do ativismo do governo federal estadunidense a partir de meados do século XX, sua articulação com a dinâmica social e, particularmente, seu impacto sobre ela, com a "revolução dos direitos civis", bem como a profunda mudança do mapa político do país trazida pelo efeito do ativismo estatal sobre a vida partidária e a reação notavelmente bem-sucedida do Partido Republicano, incluindo, entre várias outras coisas, o êxito da mobilização por um populismo conservador que penetra e corrói as bases tradicionais dos Democratas.

Naturalmente, há agora a novidade de Barack Obama, que o diagnóstico de Pierson e Skocpol torna ainda mais interessante. A conferir.


Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

DEU NO JORNAL DO BRASIL

NOVOS CURRAIS O PREÇO DOS VOTOS NAS COMUNIDADES
Paula Máiran

Candidatos podem pagar até R$ 35 mil para fazer campanha em áreas do tráfico ou milícia. Há líderes comunitários com salários de R$ 2 mil

Políticos do asfalto perdem cada vez mais espaço no Rio para candidatos nascidos em comunidades pobres e sob domínio de poderes paralelos. O presidente da Federação das Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj), Rossino Castro Diniz, estima haver mais de 120 áreas de risco na cidade com candidatos próprios. O equivalente ao dobro do que se verificou no último pleito municipal. Em 2004, favelas elegeram três parlamentares ­ de duas regiões de milícias e outra de tráfico. O fenômeno dos candidatos de comunidade progride, no entanto, em um cenário onde predomina a política tradicional, com os chamados candidatos "de fora" ou "chapas brancas", dados à prática do clientelismo e dispostos ou obrigados a pagar pelo direito de realizar suas campanhas em currais eleitorais controlados pelo crime. ­ A autorização para candidatos de fora fazerem suas campanhas nas favelas é negociada de várias formas. Pode ser assistência social ou obras, mas há quem cobre em dinheiro, entre R$ 350 e R$ 35 mil ­ afirma Rossino Diniz. No mercado eleitoral clandestino, segundo denúncias investigadas pela Polícia Federal, pagam-se valores de até R$ 100 mil. Há o salário-campanha, que faz de líderes comunitários cabos eleitorais por valores de mais de R$ 2 mil mensais, mais a promessa de cargos públicos em caso de vitória. E houve até o caso em que um fuzil serviu como moeda em troca de autorização de traficantes para a campanha de um candidato da Zona Norte.

Plebliscitos em comunidades

A PF já tem 29 denúncias re- passadas pelo Tribunal Regional Eleitoral. O presidente do TRE, desembargador Roberto Wider, disse que deverão perder os registros aquele que forem ligados ao tráfico ou a milícias. Para Rossino, nem tudo parece escuso no panorama eleitoral: ­ As comunidades estão cansadas de candidatos Copa do Mundo, que só aparecem de quatro em quatro anos. Em Acari, por exemplo, participei da organização de um plebiscito em que foram escolhidos os candidatos da área. Vejo isso como um ponto positivo ­ diz ele, ao observar que comunidades tentam conquistar autonomia nos limites de sua submissão ao poder paralelo. ­ O mais interessante é que candidatos de milícias costumam ser de partidos da direita, enquanto nas áreas onde há tráfico, há uma identificação maior com os de esquerda. O representante das favelas refere-se ao resultado de plebiscito realizado pela Aliança Fortalecedora, conselho formado por 37 líderes comunitários de Acari e adjacências ­ área de tráfico ­ na Zona Norte, para defesa de Paulinho do Social (PTB), para vereador, e de Marcelo Crivella (PRB), para prefeito. ­ Líderes comunitários cada vez mais deixam de ser cabos eleitorais para tentar se eleger, fato que já incomoda bastante os políticos tradicionais porque estão perdendo seus antigos currais ­ avalia Rossino.

Sem deputados

Segundo ele, não há ainda ao menos um deputado estadual representante direto dos interesses de favelas. Na Câmara, ele cita a existência de Jorginho da SOS, do Complexo do Alemão, na Zona Norte, Nadinho de Rio das Pedras, na Zona Oeste, e Deco, dono de votos das favelas Chacrinha e Mato Alto, em Jacarepaguá. Este ano, também realizaram plebiscitos para escolher candidatos próprios comunidades dos Complexos do Alemão e da Penha, de Manguinhos, do Jacarezinho, na Zona Norte, de Turiassú e da Vila Kennedy, na Zona Oeste, da Rocinha e do Morro Santa Marta, ambas na Zona Sul.

DEU NO JORNAL DO BRASIL

`DIPLOMATA' ENTRE O PODER PARALELO E O ESTADO

A nova legislação eleitoral tem favorecido a candidatura dos mais pobres. É o que acredita o candidato a vereador Luís Cláudio dos Santos, o Claudinho da Merindiba (PSDC), do Complexo da Penha, na Zona Norte. ­ A gente pensava: como ser candidato sem dinheiro? Com a nova lei e a proibição de brindes, isso se tornou possível ­ acredita Claudinho, que chegou a ser posto sob suspeita de ter a ficha suja e teve de obter certidões negativas para provar que as anotações penais na sua ficha de inscrição no TRE pertenciam a homônimos. Para o candidato, o líder comunitário tem sido um diplomata da comunidade, entre o poder paralelo e o oficial. ­ Não sou candidato do tráfico, mas ele existe e preciso transitar em todos os territórios para representar os interesses da comunidade no relacionamento com o tráfico, com a polícia, com o hospital ­ explica Claudinho, candidato apoiado por pelo menos quatro das 12 comunidades do Complexo da Penha. ­ Estabelecemos aqui com clareza o que é tráfico, o que é movimento comunitário. Um não se mete com o outro. Segundo Claudinho, a força do poder paralelo aumentou muito nos últimos cinco anos. ­ A ausência do Estado é cada vez maior, a não ser pela presença violenta da polícia. O mais grave é a inexistência de um programa de capacitação dos jovens. Sem perspectivas, cada vez mais ingressam no mundo do crime. O candidato revela que a própria experiência de vida o afasta do tráfico: ­ Sofri viciado em drogas durante dez anos. Consegui sair dessa com uma missão, quero ver as coisas mudarem ­ afirma ele, que, aos 24, entrou para a Universal, de onde saiu quatro anos depois para outra igreja evangélica.

DEU NO JORNAL DO BRASIL

CADASTRO DE MORADORES TERIA CUSTADO R$ 100 MIL

Um fuzil ­ ou R$ 40 mil ­ foi a moeda utilizada por traficantes para cobrar pedágio nesta campanha municipal ao candidato a vereador Alberto Salles (PSC), na favela do Mundial, em Honório Gurgel, na Zona Norte. Rejeitada a proposta, pelo menos dez homens armados de fuzis atacaram, na semana passada, quatro cabos eleitorais do candidato, quando estes tentavam espalhar cartazes na favela. Esta é uma das cerca de 30 denúncias investigadas pela Polícia Federal, repassadas pelo TRE ou pelas polícias estaduais, sobre o mercado negro eleitoral. No papel de Polícia Judiciária Eleitoral, a PF, segundo o superintendente regional, delegado Valdinho Jacinto Caetano, teve de reforçar a sua equipe no Rio para dar conta da demanda do TRE. Uma nova leva de agentes chega à cidade nesta semana para reforçar a equipe de inteligência, formada por policiais de outros Estados, que apura o favorecimento ou cerceamento de de candidatos. Boa parte das denúncias refere-se à atuação de milícias na Zona Oeste. Uma delas envolve a venda de um cadastro eleitoral de moradores da favela Carobinha, em Campo Grande, por R$ 100 mil. Alberto não foi a única vítima. Logo na segunda semana de campanha, a vereadora Ingrid Gerolimich (PT) solicitou apoio da Polícia Militar para panfletar na Rocinha, na Zona Sul. Um dia depois, em operação policial, houve a apreensão de ata de reunião na comunidade da Zona Sul, segundo a qual estava determinado apoio à candidatura do presidente da associação de moradores local, Claudinho da Academia (PSDC). Também os candidatos a prefeito Marcelo Crivella (PRB), Fernando Gabeira (PV), Chico Alencar (PSOL) e Alessandro Molon (PT) passaram por constrangimentos. No sábado, os dois últimos foram impedidos de gravar imagens na Nova Holanda. Gabeira foi intimidado na Vila Cruzeiro, mesmo lugar em que traficantes haviam ameaçado jornalistas numa caminhada de Crivella. No domingo 13 de julho, o Jornal do Brasil iniciou série sobre a existência dos currais eleitorais do tráfico e das milícias no Rio -- onde vivem cerca de 500 mil eleitores na cidade -- e anunciou a convocação da Polícia Federal pelo TRE para reforçar a segurança pública durante todo o processo eleitoral.

DEU NO JORNAL DO BRASIL

SOCIÓLOGO AFIRMA QUE NÃO HÁ AVANÇO POLÍTICO

A carreira solo de líderes comunitários lançados candidatos pode ter algum aspecto virtuoso, no olhar do sociólogo Marcelo Burgos, professor da PUC e estudioso há 15 anos das favelas da cidade. Mas, segundo o pesquisador, ainda não representa muito em avanço político. Pelo contrário, fomenta um mercado de competição entre favelas, especialmente em tempos de eleição. ­ O modo como tem ocorrido o lançamento dessas candidaturas reitera a fragmentação do movimento comunitário ­ explica. Burgos escreveu um livro sobre Rio das Pedras e levou Nadinho (DEM), hoje candidato à reeleição, a um seminário na PUC: ­ Na época, Nadinho deixou bem claro que estava indo para o DEM porque o prefeito Cesar Maia prometeu recursos para obras na sua comunidade ­ conta o professor, para quem Nadinho não representou de fato na Câmara um avanço do movimento comunitário, "por falta de cultura política para isso". Para o pesquisador, o clientelismo político tradicional tem sido apenas substituído por um mais qualificado, na melhor das hipóteses: ­ O poder público entra de cabeça e faz das comunidades a sua principal forma de atuação, inclusive com um controle da Câmara, onde parlamentares votam recursos oficiais para manter seus currais eleitorais. Um exemplo dessa política é o programa Favela-Bairro. ­ Na primeira gestão do prefeito Cesar Maia, foram estabelecidos critérios técnicos para definir que áreas seriam contempladas pelo projeto. Depois, o que passou a vigorar foram as barganhas com lideranças comunitárias ­ diz o estudioso. O prefeito Cesar Maia afirmou ontem apenas que administra a cidade, sem controle da Câmara: ­ Nunca tive maioria na Câmara e há três anos não ganho uma votação lá ­ respondeu às críticas.

DEU EM O GLOBO


MP TERÁ PLANO ESPECIAL CONTRA PRESSÃO DE TRAFICANTES E MILÍCIAS SOBRE ELEITORES
Fábio Vasconcellos, Flávio Tabak e Waleska Borges


Serviço de Inteligência da Promotoria Eleitoral vai mapear zonas de risco


A Promotoria Eleitoral do Ministério Público estadual vai formular um plano especial de atuação para o dia das eleições municipais no Rio. A idéia surgiu depois das recentes notícias de que traficantes e grupos de milícias pressionam eleitores a votar em determinados candidatos, e também porque bandidos passaram a impedir a entrada de políticos em algumas comunidades.

No sábado, Fernando Gabeira (PV), Alessandro Molon (PT) e Chico Alencar (PSOL) foram intimidados por traficantes armados, quando faziam campanha em Vila Cruzeiro e no Complexo da Maré. As equipes de Molon e Chico foram proibidas de fazer imagens.

O plano do MP contará com a participação do Serviço de Inteligência do órgão, que vai ajudar a mapear as zonas eleitorais onde há maior risco de bandidos intimidarem eleitores.

- Os promotores estarão mobilizados para acionar o mais rapidamente possível órgãos de segurança, caso notem movimentações estranhas na sessão eleitoral. O serviço de inteligência vai atuar também - disse o coordenador das promotorias eleitorais, procurador Marcos Ramayana.


- O TRE terá todo apoio do MP. Os promotores farão plantão no dia das eleições, com a ajuda do pessoal das sessões. Os mesários poderão entrar em contato direto com os juízes.

Para o procurador, é importante que candidatos que enfrentam problemas para entrar em algumas comunidades, devido à atuação de traficantes ou milicianos, registrem o caso na polícia. Quem preferir, pode também fazer um relato para a ouvidoria do MP, ligando para o número 127. Segundo ele, mesmo os candidatos a prefeito poderiam ajudar com informações.

Molon voltou a afirmar ontem que continuará indo a favelas:
- Não podemos aceitar que quem tem a palavra final no Rio é o crime.


"Temos que tentar abrir caminho" , diz Gabeira


Já o candidato a prefeito do PSOL, Chico Alencar, vai entregar amanhã carta ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Carlos Ayres Britto, condenando a formação de currais eleitorais na eleição carioca. Chico disse que já tinha visto traficantes armados em campanhas, mas nunca com proibições.

- Foi a primeira vez que foi feita essa solicitação imperativa para parar de filmar, mas já tinha visto traficantes armados em campanha. Vou levar o pacto para o Ayres Britto, que só foi assinado por Fernando Gabeira (PV) e Eduardo Serra (PCB).


Para o candidato do PV, a próxima agenda em favela já foi escolhida, a Carobinha, na Zona Oeste:
- Já fiz o mapa da milícia no site de campanha e agora vou fazer o do tráfico. Nós temos que tentar abrir o caminho - disse Gabeira.

O candidato do PMDB, Eduardo Paes, também comentou a intimidação sofrida por seus adversários. Ele afirmou que não deixará de fazer corpo-a-corpo nas favelas. Paes esteve três vezes, em campanha, na Maré:

- Não vamos nos intimidar em lugar nenhum da cidade. Acho inadmissível que qualquer candidato tenha problemas para entrar nas comunidades. Todo cidadão do Rio deve ter direito de ir e vir - disse Paes.


Já a candidata do DEM à prefeitura, Solange Amaral, afirmou que não costuma ter problemas quando visita favelas; no entanto, criticou a política de segurança pública do governo estadual:


- O que aconteceu com os candidatos representa o quadro de descontrole da ação de segurança pública do estado, que só se agrava.

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)


FREIRE REPROVA DEBATE NACIONAL NA SUCESSÃO

Apesar de crítico ferrenho do governo federal, o presidente nacional do PPS, Roberto Freire, disse, ontem, não sentir desconforto pelo fato de seu candidato à PCR, Carlos Eduardo Cadoca (PSC), estar se apresentando como um postulante da base do presidente Lula. Mas condenou a nacionalização do debate nas disputas municipais, sob os argumentos de que a discussão deve ser em cima de propostas para a cidade e de que ninguém sabe o cenário político que sairá das urnas em 2010.

“É um erro os candidatos quererem se vincular muito ao governo federal. Como ficarão se, em 2010, o governo mudar? Além disso, que personalidade têm esses candidatos que só falam em Lula? Não pode haver essa subalternidade que estamos vendo em muitos Estados”, disse.

Segundo ele, é importante que os candidatos divulguem quem são seus aliados, mas sempre “impondo a sua personalidade”. Freire avaliou que, diferente do candidato do PT, João da Costa, Cadoca tem sabido fazer isso. “O Recife não pode ficar discutindo só se o Bolsa-Família continua, se vai acabar, se é boato. Isso nem depende do prefeito, é um programa federal. E em 2010 ninguém sabe o que acontecerá”, disparou, se referindo à “peleja” entre João da Costa e Mendonça Filho (DEM) sobre o assunto, que chegou à Justiça Eleitoral.

Sobre a aproximação de Cadoca com Lula, Freire afirmou que sempre soube dessa ligação no plano nacional, mas que, no Recife, o candidato se apresenta como “a melhor alternativa”. Em sua primeira participação na campanha, ontem, ele nem sempre acompanhou os passos de Cadoca de perto. Às vezes adotava ritmo próprio, acompanhando o filho, João Freire (PPS), candidato a vereador.