O QUE PENSA A MÍDIA
EDITORIAIS DOS PRINCIPAIS JORNAIS DO BRASIL
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Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
domingo, 10 de agosto de 2008
DEU EM O GLOBO
PRÓS E CONTRAS
Merval Pereira
Merval Pereira
NOVA YORK. A dianteira do candidato democrata Barack Obama nas pesquisas de opinião está baseada principalmente no apoio de três categorias demográficas: os eleitores negros, os hispânicos e os jovens. Especialmente em relação aos jovens, é uma incógnita essa dianteira, pois é preciso manter até o dia da eleição a empolgação que ele estimula nesse grupo, que não tem tradição de comparecer às urnas. Nas primárias ele conseguiu fazer essa mobilização, mas a campanha eleitoral, que de fato começa na segunda semana de setembro, depois das convenções partidárias, é uma nova etapa, com novos compromissos e novas situações.
A escolha do vice, por exemplo, pode animar ou desanimar os eleitores. O ex-candidato John Edwards, um dos cotados para ser vice de Obama, acaba de ser abatido pela admissão de que manteve um caso extraconjugal com uma cineasta que trabalhou em sua campanha, coisa que havia negado peremptoriamente durante as primárias. Uma situação recorrente nas campanhas presidenciais americanas.
Mas a vantagem de Obama não se amplia por que ele não consegue se impor como o preferido dos eleitores brancos, que ainda são a maioria no dia da eleição, em uma proporção de três em cada quatro votos.
Há também uma situação nova até o momento, a favor de Obama: McCain está recebendo cerca de 10% menos de votos dos eleitores hispânicos do que teve Bush na última eleição, o que faz com que a performance de Obama nesse segmento tenha melhorado em relação aos candidatos democratas que o antecederam.
Embora mantenha a performance entre as eleitoras brancas, dividindo os votos desse grupo com McCain, no que se refere aos eleitores brancos Obama só está conseguindo obter cerca de 35% dos votos e, mesmo assim, porque entre os eleitores brancos jovens ele predomina. Sua rejeição é grande entre os eleitores brancos mais velhos.
A crise econômica americana pode ser um empecilho, mais que uma ajuda, para a campanha de Obama, que não tem sua imagem pública ligada a questões desse tipo, mas sim a trabalhos sociais a favor das minorias, ao contrário de Bill Clinton, que quando se candidatou marcou sua presença como um especialista em economia.
Por isso Obama andou se reunindo publicamente com grandes figuras da economia, como o antigo comandante do Banco Central dos Estados Unidos Paul Volker ou com o ex-secretário do Tesouro Larry Summers.
A questão econômica predomina entre as preocupações do eleitorado americano, e é na classe média, ou em alguns grupos dela, que se faz mais sentir seu peso.
Na pesquisa do Pew Research Center, que detectou a existência de quatro categorias de classe média, surgem em pelo menos duas delas as angústias que dominam o dia-a-dia desse grupo de eleitores, que representa 53% da sociedade americana, com um peso específico forte nas eleições.
Dois desses grupos, identificados como "Classe Média Satisfeita" e "Classe Média Ansiosa", são os representantes mais genuínos da classe média, segundo o instituto. Um feliz pelo status de classe média, o outro angustiado, sem conseguir pagar as contas, com receio de perder esse mesmo status. Mas outras duas classes parecem misturar problemas econômicos com questões psicológicas para se colocarem na classe média: os classificados nas categorias denominadas "Topo da Classe" e "Classe Média Batalhadora".
Os que se incluem entre os "batalhadores", por exemplo, têm uma renda familiar média muitas vezes inferior aos que se colocam entre a classe baixa e, no entanto, se "sentem" classe média. No outro lado do espectro, muitos dos que estão no topo da classe média poderiam ser classificados como "classe alta", devido aos seus ganhos financeiros e outros privilégios.
Parte da explicação, para o Pew Research Center, está na atração do rótulo "classe média", que é socialmente mais bem visto do que as classes baixa e alta. Mas isso não é tudo, segundo o instituto de pesquisa.
Em muitas situações, apenas a medição pela renda familiar não identifica a classe social de um cidadão, pois outros critérios entram na própria auto-avaliação, fatores como educação, hábitos de vida, gosto e visão de mundo.
Os que estão entre os "batalhadores", por exemplo, demonstram estar mais felizes com suas vidas, mesmo tendo uma renda que os colocaria entre os de baixa classe. Eles vêem o futuro com mais confiança, especialmente o dos seus filhos.
Cerca de 40% desses, por exemplo, declaram ter esperança de que seus filhos terão uma vida melhor do que a sua, enquanto entre os da classe baixa esse índice de esperança é de 25%.
Para o Pew Research Center, muitos são os casos que demonstram que a classe média é mais um estado de espírito do que uma questão financeira. A classe média americana seria um amálgama de grupos distintos, uma mistura de jovens e velhos, negros, brancos e latinos, otimistas e pessimistas, alguns que estão vivendo plenamente o "sonho americano", e outros que aspiram a ele.
Uma massa de eleitores que acompanha com atenção e desconfiança a campanha presidencial, que coloca em disputa, num mundo em mutação e num país em crise econômica, Barack Obama, um político desconhecido, jovem e negro, que oferece esperança e mudança, contra John McCain, "o homem de cabelo branco", como o definiu Paris Hilton, um candidato unplugged, que só agora está aprendendo a usar o computador, um herói de guerra que oferece experiência e segurança.
Um salto no desconhecido ou o perigo da estagnação?
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
ELEIÇÕES SEM FESTA
Marcos Coimbra
Sociólogo e presidente do instituto Vox Populi
Estamos, como se diz em inglês, jogando fora a criança com a água do banho. Se é louvável o esforço de tornar mais autênticas as eleições, os excessos proibitivos não levam a lugar nenhum
O mais grave das crises que desestabilizam o sistema institucional de um país são as conseqüências de longo prazo. Às vezes, pode levar anos até que ele se recupere das ondas de choque que sobrevêm ao abalo inicial. Pior, crises como essas podem ensejar respostas inadequadas, pensadas no calor dos acontecimentos.
Nos últimos anos, passamos por duas crises desse porte. À primeira, reagimos com calma e prudência, mas, à segunda, de maneira precipitada e equivocada.O impeachment de Fernando Collor de Mello quase provoca uma instabilidade permanente, da qual talvez nunca conseguíssemos sair.
A derrubada de um governo por acusações de corrupção, em um país com a experiência que temos com o tema, fez com que se difundisse a noção de que essa solução poderia ser usada quantas vezes fossem necessárias. Passou a ser comum ouvir pessoas dizendo que, se um político fizesse algo errado, “a gente impicha ele”. De recurso último, o impeachment por pouco se transforma em coisa banal.
O sistema político soube, no entanto, manter sob controle tais sentimentos, sem lhes dar trela. O tema voltou à geladeira, onde continua e de onde só deve sair em condições especialíssimas. O mensalão foi diferente. Interpretado com uma crise causada, pelo menos em parte, pelo modo como se financia a política entre nós, ele gerou uma seqüência de reformas, algumas relevantes, outras questionáveis, a maioria visando a reduzir as despesas com as campanhas políticas.
Uma tímida minirreforma chegou a ser aprovada pelo Congresso, mas o grosso das medidas foi sendo fixado nas decisões do Judiciário. Proibindo daqui, cortando dali, aos poucos o TSE foi promovendo as mudanças que entendeu adequadas, enquanto a Câmara e o Senado, onde a discussão deveria ocorrer, apenas assistiam.
A eleição municipal que fazemos é a primeira genuinamente pós-mensalão, pois as de 2006 ainda aconteceram sob as regras antigas. Agora, quase tudo mudou. O tom geral das mudanças é dado por uma espécie de horror ao “gasto excessivo”, como se houvesse alguém capaz de estabelecer o que é excesso, de maneira objetiva e inquestionável, nessa matéria.
Para dar um exemplo: está proibida a confecção e o uso de camisetas alusivas a candidaturas. É uma idéia bem-intencionada, vinda de quem se preocupa com o risco de uma distribuição tão maciça que mude os resultados de uma eleição? Ou é a proibição de que pessoas totalmente conscientes possam se expressar de uma maneira natural na sociedade contemporânea, pela roupa que usam?
Alguém é capaz de adivinhar por que camisetas, canetas e lixas de unha são proibidas? Por serem “benefícios ao eleitor”, que a lei equipara a cestas básicas e bens de elevado valor. Para impedir que as pessoas caiam na sedução de “vender seu voto”. Como se existisse alguém que o fizesse ou, existindo, que deixasse de fazê-lo por ser proibido distribuir camisetas. Por que proibir festas e comícios animados por músicos e cantores? Para proteger os incautos, que poderiam ser levados a votar em alguém ao ouvir uma canção ou ir dançar em um forró? Quem é que supõe que nossos eleitores são tão tolos?
Políticos que atuam em cidades sem televisão dão conta de um quase desaparecimento do “clima eleitoral”, tão típico delas em momentos como este. Sem a animação dos comícios, sem festa, as eleições ficam chochas, desanimadas, com pequena participação. Os candidatos estão acuados, com medo das interpretações sempre imprevisíveis de promotores e juízes pouco preparados para lidar com o assunto.
Nas cidades grandes, a televisão, de rainha, virou soberana absoluta. Nada, além dela, faz sentido, nas eleições de prefeito. É isso mesmo que nossos juízes queriam? Estamos, como se diz em inglês, jogando fora a criança com a água do banho. Se é louvável o esforço de tornar mais autênticas as eleições, os excessos proibitivos não levam a lugar nenhum.
Marcos Coimbra
Sociólogo e presidente do instituto Vox Populi
Estamos, como se diz em inglês, jogando fora a criança com a água do banho. Se é louvável o esforço de tornar mais autênticas as eleições, os excessos proibitivos não levam a lugar nenhum
O mais grave das crises que desestabilizam o sistema institucional de um país são as conseqüências de longo prazo. Às vezes, pode levar anos até que ele se recupere das ondas de choque que sobrevêm ao abalo inicial. Pior, crises como essas podem ensejar respostas inadequadas, pensadas no calor dos acontecimentos.
Nos últimos anos, passamos por duas crises desse porte. À primeira, reagimos com calma e prudência, mas, à segunda, de maneira precipitada e equivocada.O impeachment de Fernando Collor de Mello quase provoca uma instabilidade permanente, da qual talvez nunca conseguíssemos sair.
A derrubada de um governo por acusações de corrupção, em um país com a experiência que temos com o tema, fez com que se difundisse a noção de que essa solução poderia ser usada quantas vezes fossem necessárias. Passou a ser comum ouvir pessoas dizendo que, se um político fizesse algo errado, “a gente impicha ele”. De recurso último, o impeachment por pouco se transforma em coisa banal.
O sistema político soube, no entanto, manter sob controle tais sentimentos, sem lhes dar trela. O tema voltou à geladeira, onde continua e de onde só deve sair em condições especialíssimas. O mensalão foi diferente. Interpretado com uma crise causada, pelo menos em parte, pelo modo como se financia a política entre nós, ele gerou uma seqüência de reformas, algumas relevantes, outras questionáveis, a maioria visando a reduzir as despesas com as campanhas políticas.
Uma tímida minirreforma chegou a ser aprovada pelo Congresso, mas o grosso das medidas foi sendo fixado nas decisões do Judiciário. Proibindo daqui, cortando dali, aos poucos o TSE foi promovendo as mudanças que entendeu adequadas, enquanto a Câmara e o Senado, onde a discussão deveria ocorrer, apenas assistiam.
A eleição municipal que fazemos é a primeira genuinamente pós-mensalão, pois as de 2006 ainda aconteceram sob as regras antigas. Agora, quase tudo mudou. O tom geral das mudanças é dado por uma espécie de horror ao “gasto excessivo”, como se houvesse alguém capaz de estabelecer o que é excesso, de maneira objetiva e inquestionável, nessa matéria.
Para dar um exemplo: está proibida a confecção e o uso de camisetas alusivas a candidaturas. É uma idéia bem-intencionada, vinda de quem se preocupa com o risco de uma distribuição tão maciça que mude os resultados de uma eleição? Ou é a proibição de que pessoas totalmente conscientes possam se expressar de uma maneira natural na sociedade contemporânea, pela roupa que usam?
Alguém é capaz de adivinhar por que camisetas, canetas e lixas de unha são proibidas? Por serem “benefícios ao eleitor”, que a lei equipara a cestas básicas e bens de elevado valor. Para impedir que as pessoas caiam na sedução de “vender seu voto”. Como se existisse alguém que o fizesse ou, existindo, que deixasse de fazê-lo por ser proibido distribuir camisetas. Por que proibir festas e comícios animados por músicos e cantores? Para proteger os incautos, que poderiam ser levados a votar em alguém ao ouvir uma canção ou ir dançar em um forró? Quem é que supõe que nossos eleitores são tão tolos?
Políticos que atuam em cidades sem televisão dão conta de um quase desaparecimento do “clima eleitoral”, tão típico delas em momentos como este. Sem a animação dos comícios, sem festa, as eleições ficam chochas, desanimadas, com pequena participação. Os candidatos estão acuados, com medo das interpretações sempre imprevisíveis de promotores e juízes pouco preparados para lidar com o assunto.
Nas cidades grandes, a televisão, de rainha, virou soberana absoluta. Nada, além dela, faz sentido, nas eleições de prefeito. É isso mesmo que nossos juízes queriam? Estamos, como se diz em inglês, jogando fora a criança com a água do banho. Se é louvável o esforço de tornar mais autênticas as eleições, os excessos proibitivos não levam a lugar nenhum.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
DIETA DE ENGORDA
Dora Kramer
A oposição faz o esperneio regulamentar, mas até aliados do governo prometem criar dificuldades para a aprovação da medida provisória que transforma a Secretaria da Pesca em ministério, cria quase 300 novos cargos de confiança, dobra o orçamento da nova “pasta” e abre caminho à distribuição de sinecuras País afora sob a denominação de “superintendências” regionais.
Foi uma surpresa geral quando a MP foi enviada ao Congresso no fim de julho, véspera da volta do recesso. A reação mais vistosa partiu do presidente da Câmara, o petista Arlindo Chinaglia, que achou “difícil” entender a urgência de fazer crescer a estrutura cinco anos e meio de governo depois.
Ou, posto de outra forma, que talvez ajude Chinaglia a compreender o espírito da coisa: a dois anos e meio do fim do governo Luiz Inácio da Silva, um e meio antes do início oficial da campanha da sucessão.
Francamente, quem não deve estar entendendo nada ante tanta perplexidade e indignação é o presidente Lula que não pegou ninguém desprevenido.
Em matéria de máquina pública disse ao que veio com muita franqueza ao aumentar o número de ministros e secretários com “status” de ministros, abrir novos espaços da administração - inclusive com propostas inovadoras como um nicho de burocracia reservado aos pescados - e neles abrigar os companheiros derrotados em 2002 enquanto esperavam a eleição seguinte.
No segundo mandato, mudou um pouco a concepção do aparelho e ampliou a participação de outros partidos. Para fortalecer a “base”.
Conforme a economia foi se firmando, o presidente foi também perdendo a cerimônia, criando despesas, cuidando dos aumentos do funcionalismo, inchando a máquina (só de novos cargos sem concurso foram oito mil), deixando muito claro que esse negócio de contenção de gastos e redução do Estado é coisa de gente socialmente insensível, politicamente reprimida e moralmente dissimulada.
No fim do ano passado, inteiramente à vontade neste e nos demais aspectos, o presidente deu uma entrevista para O Globo lançando a tese de que governar bem é contratar muito.
Na época - corria o mês de novembro - anunciava que não discutiria mais inflação, problema resolvido, página virada. O arrocho possível já tinha sido feito e, a partir dali, os gastos iriam aumentar.
“Se fosse possível fazer a máquina funcionar diminuindo dinheiro, seria ótimo. Não vamos melhorar a saúde pública sem contratar médicos nem vamos melhorar a educação sem contratar professores”, dizia.
Dentro dessa lógica, como melhorar a produção pesqueira sem contratar gente de confiança e abrir superintendências regionais reproduzindo a mais antiga e comezinha forma de abrigar aliados? Impossível, como de resto havia sido dito e devidamente anunciado.
Logo, ao transformar a secretaria em ministério, o presidente pode até cometer um exagero alegórico ao anunciar uma “revolução aquária”, mas não inova, não surpreende e não ilude.
Apenas põe em prática um pensamento em parte de todos conhecido. Em parte porque há um pedaço essencial da história que não é explicitado sobre a dieta de engorda do Estado.
Obeso, tende a funcionar pior e aí a evidência se choca com a tese de Lula sobre a relação direta entre hipertrofia e agilidade. Em compensação, quanto mais estufado ficar, mais gente agarrada ao osso vosso de cada dia haverá para compartilhar do esforço de manter a posse da máquina de poder.
Como o assunto é da mais alta relevância e sobre a urgência o calendário eleitoral dispensa maiores explicações, que a oposição reclame, compreende-se. Mas que a “base” reaja à medida provisória, quando já se submeteu a vexames bem piores, e ainda tenha dificuldade de entender do que se trata, é um acinte à paciência do freguês.
Quimera
Caminhava nos conformes a reunião dos militares, na quinta-feira, para marcar posição contra a extemporânea defesa da punição aos militares torturadores e assassinos da ditadura, até o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Waldemar Zveiter enveredar pelo terreno da visagem.
“O senhor ministro da Justiça ou desapeie do cavalo ou monte direito, porque, se não, nós vamos tirá-lo de lá. Ou ele sai pelo voto ou vamos para a praça pública e para o Palácio do Planalto. Fora com os golpistas.”
Dora Kramer
A oposição faz o esperneio regulamentar, mas até aliados do governo prometem criar dificuldades para a aprovação da medida provisória que transforma a Secretaria da Pesca em ministério, cria quase 300 novos cargos de confiança, dobra o orçamento da nova “pasta” e abre caminho à distribuição de sinecuras País afora sob a denominação de “superintendências” regionais.
Foi uma surpresa geral quando a MP foi enviada ao Congresso no fim de julho, véspera da volta do recesso. A reação mais vistosa partiu do presidente da Câmara, o petista Arlindo Chinaglia, que achou “difícil” entender a urgência de fazer crescer a estrutura cinco anos e meio de governo depois.
Ou, posto de outra forma, que talvez ajude Chinaglia a compreender o espírito da coisa: a dois anos e meio do fim do governo Luiz Inácio da Silva, um e meio antes do início oficial da campanha da sucessão.
Francamente, quem não deve estar entendendo nada ante tanta perplexidade e indignação é o presidente Lula que não pegou ninguém desprevenido.
Em matéria de máquina pública disse ao que veio com muita franqueza ao aumentar o número de ministros e secretários com “status” de ministros, abrir novos espaços da administração - inclusive com propostas inovadoras como um nicho de burocracia reservado aos pescados - e neles abrigar os companheiros derrotados em 2002 enquanto esperavam a eleição seguinte.
No segundo mandato, mudou um pouco a concepção do aparelho e ampliou a participação de outros partidos. Para fortalecer a “base”.
Conforme a economia foi se firmando, o presidente foi também perdendo a cerimônia, criando despesas, cuidando dos aumentos do funcionalismo, inchando a máquina (só de novos cargos sem concurso foram oito mil), deixando muito claro que esse negócio de contenção de gastos e redução do Estado é coisa de gente socialmente insensível, politicamente reprimida e moralmente dissimulada.
No fim do ano passado, inteiramente à vontade neste e nos demais aspectos, o presidente deu uma entrevista para O Globo lançando a tese de que governar bem é contratar muito.
Na época - corria o mês de novembro - anunciava que não discutiria mais inflação, problema resolvido, página virada. O arrocho possível já tinha sido feito e, a partir dali, os gastos iriam aumentar.
“Se fosse possível fazer a máquina funcionar diminuindo dinheiro, seria ótimo. Não vamos melhorar a saúde pública sem contratar médicos nem vamos melhorar a educação sem contratar professores”, dizia.
Dentro dessa lógica, como melhorar a produção pesqueira sem contratar gente de confiança e abrir superintendências regionais reproduzindo a mais antiga e comezinha forma de abrigar aliados? Impossível, como de resto havia sido dito e devidamente anunciado.
Logo, ao transformar a secretaria em ministério, o presidente pode até cometer um exagero alegórico ao anunciar uma “revolução aquária”, mas não inova, não surpreende e não ilude.
Apenas põe em prática um pensamento em parte de todos conhecido. Em parte porque há um pedaço essencial da história que não é explicitado sobre a dieta de engorda do Estado.
Obeso, tende a funcionar pior e aí a evidência se choca com a tese de Lula sobre a relação direta entre hipertrofia e agilidade. Em compensação, quanto mais estufado ficar, mais gente agarrada ao osso vosso de cada dia haverá para compartilhar do esforço de manter a posse da máquina de poder.
Como o assunto é da mais alta relevância e sobre a urgência o calendário eleitoral dispensa maiores explicações, que a oposição reclame, compreende-se. Mas que a “base” reaja à medida provisória, quando já se submeteu a vexames bem piores, e ainda tenha dificuldade de entender do que se trata, é um acinte à paciência do freguês.
Quimera
Caminhava nos conformes a reunião dos militares, na quinta-feira, para marcar posição contra a extemporânea defesa da punição aos militares torturadores e assassinos da ditadura, até o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Waldemar Zveiter enveredar pelo terreno da visagem.
“O senhor ministro da Justiça ou desapeie do cavalo ou monte direito, porque, se não, nós vamos tirá-lo de lá. Ou ele sai pelo voto ou vamos para a praça pública e para o Palácio do Planalto. Fora com os golpistas.”
“Nós” quem? Que cavalo? Que voto? Que golpistas?
Sorte de Tarso Genro. Diante desse oponente, foi reabilitado de todos os disparates. Passados, presentes e futuros.
Avesso
Há quatro dias o delegado Protógenes Queiroz confirmou à CPI dos Grampos que na Agência Brasileira de Inteligência há agentes que se prestam a “serviços informais” para “amigos” na Polícia Federal e até agora o comando da agência, ligada diretamente à Presidência da República, não deu um pio.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
A CLASSE MÉDIA E CONFORMADA
José de Souza Martins
Triunfo estatístico da nova ascensão social é antes a indicação de uma mudança de orientação ideológica na era do petismo
Se a notícia de que o aumento do número de brasileiros que podem ser definidos como de classe média traz algum conforto ideológico, a realidade cotidiana ainda não nos traz nenhum conforto visual. Continuam ardendo nos olhos de todos nós os cortiços e favelas, as crianças de rua, as evidências de uma numerosa humanidade sem futuro. Tanto os dados do Ipea quanto os da FGV, divulgados nestes dias, sobre a expansão da classe média, nos põem diante da persistência de indicações de que um número imensamente maior dos beneficiários da ascensão social aparente permanece na fila de espera das próprias regiões metropolitanas, que são a referência desses dados. Sem contar os ocultos e invisíveis, refugiados no restante do Brasil, os estatisticamente mal- amados.
Há, sem dúvida, um certo jogo do contente na eufórica proclamação dessas verificações numéricas. Longe do que supõem os ideólogos do conhecimento quantitativo, mesmo os números, aparentemente precisos e até exatos, podem ser compreendidos nas suas tensões internas se situados no quadro ideológico que os motiva e justifica, o da história contemporânea das mentalidades. É aí que está a principal revelação dos dois relatórios agora difundidos por fontes diferentes e até opostas. Até o advento do governo Lula e a ascensão política do PT, os números serviam para satanizar o chamado neoliberalismo econômico. Era o tempo em que se falava em 50 milhões de pobres no Brasil, em 16 milhões de famélicos, justificativa para malabarismos de políticas sociais contra a pobreza e a fome que marcariam os primeiros tempos do novo governo. Depois disso, apesar da persistência do chamado neoliberalismo, a chave de interpretação de todos os números relativos ao Brasil começou a ser mudada para, com a mesma realidade e as mesmas tendências, dizer o contrário do que até então se dissera.
Não há dúvida de que se deve receber com ânimo a informação de que o número dos estatisticamente pobres se reduziu em três milhões entre 2003 e 2008. Esses três milhões, que correspondem ao que o Ipea chama de "classe média emergente", não se defrontam propriamente com afortunado futuro. É que os definidos como ricos (boa parte dos quais é de fato apenas alta classe média) mantiveram-se na proporção de 1% da população dessas regiões. Portanto, o que as fontes indicam é o aprisionamento dessa "classe média" numa faixa de rendimentos que, se conforta, não redime. Até porque o Ipea demonstra que os ganhos de produtividade do trabalho estão crescentemente acima dos ganhos propriamente salariais. Ou seja, progressiva redução do salário em relação aos ganhos possibilitados pelo trabalho. Provavelmente, um peneiramento tecnológico da mão-de-obra, que anula o futuro da imensa massa humana cuja qualificação profissional já não lhe dá condições de buscar um lugar não só na "classe média emergente", mas sobretudo na estrutura produtiva emergente. O que aí se vê é expressão de uma circulação de gerações, com a renovação etária na economia. Mudança que é, sobretudo, resultado de incremento nos índices de escolarização no longo prazo e não apenas de indicadores de crescimento econômico no curto prazo e nos limites cronológicos de um governo.
O documento da Fundação Getúlio Vargas, com outra orientação teórica, menos preocupado com quem sai da pobreza e mais preocupado com quem entra na classe média, confirma essa mesma mobilidade estatística. Mas ambas as análises se enredam nas limitações interpretativas de sua concepção do que é classe média. Ambas tratam do estrato econômico médio e não propriamente de classe média, conceito muito mais abrangente e teoricamente muito mais complexo. Essa simplificação empobrece a compreensão das mudanças que estão ocorrendo. As classes têm referências profundas de situação social, de mentalidade, de comportamento e de aspirações sociais e políticas. No estrato social médio até entra aquela parcela da classe operária a que pertencem a elite sindical e os operários qualificados, os bem remunerados e os bem postos que, não obstante, vivem num mundo muito diverso do mundo propriamente da classe média. Essa é a classe social dos tecnicamente improdutivos ou só indiretamente produtivos, os de referência vacilante na conduta política e nas aspirações sociais, aqueles cuja orientação ideológica está mais voltada para o modo de vida dos ricos do que para o dos que se devotam ao trabalho propriamente produtivo.
A "nova classe média" dessas análises se nega na mera consideração de que sua população é constituída pela contribuição econômica à formação da renda doméstica dos que tem de 15 a 60 anos. Ora, numa sociedade em que o tempo da maturidade para o ingresso no mercado de trabalho tende a demorar cada vez mais e, portanto, tende a retardar o tempo da chegada à estabilidade própria da classe média, que é a da constituição da família depois do emprego, considerar pessoas de, pelo menos, 15 a 21 anos de idade como contribuintes da renda domiciliar é a primeira e fundamental indicação de que não se trata de classe média. Trata-se de uma categoria social cujas possibilidades econômicas ainda dependem da exploração das novas gerações e dos imaturos e, portanto, do comprometimento da possibilidade de sua ascensão que é uma das marcas próprias da classe média.
A proclamação do triunfo estatístico da classe média é antes a indicação de uma mudança de orientação ideológica na era do petismo. É documento menos de uma classe média emergente ou nova e muito mais documento do novo conformismo social e político, subjacente não raro a uma mentalidade e a uma linguagem pseudo-radical e pseudo-social. O deslocamento do ânimo social da situação propriamente de classe média para a referência de um estrato médio, que é mera construção estatística, nos fala da ampliação das condições materiais de um novo conformismo social. Tudo indica que chegamos ao fim da era das demandas radicais e socialmente transformadoras.
José de Souza Martins
Triunfo estatístico da nova ascensão social é antes a indicação de uma mudança de orientação ideológica na era do petismo
Se a notícia de que o aumento do número de brasileiros que podem ser definidos como de classe média traz algum conforto ideológico, a realidade cotidiana ainda não nos traz nenhum conforto visual. Continuam ardendo nos olhos de todos nós os cortiços e favelas, as crianças de rua, as evidências de uma numerosa humanidade sem futuro. Tanto os dados do Ipea quanto os da FGV, divulgados nestes dias, sobre a expansão da classe média, nos põem diante da persistência de indicações de que um número imensamente maior dos beneficiários da ascensão social aparente permanece na fila de espera das próprias regiões metropolitanas, que são a referência desses dados. Sem contar os ocultos e invisíveis, refugiados no restante do Brasil, os estatisticamente mal- amados.
Há, sem dúvida, um certo jogo do contente na eufórica proclamação dessas verificações numéricas. Longe do que supõem os ideólogos do conhecimento quantitativo, mesmo os números, aparentemente precisos e até exatos, podem ser compreendidos nas suas tensões internas se situados no quadro ideológico que os motiva e justifica, o da história contemporânea das mentalidades. É aí que está a principal revelação dos dois relatórios agora difundidos por fontes diferentes e até opostas. Até o advento do governo Lula e a ascensão política do PT, os números serviam para satanizar o chamado neoliberalismo econômico. Era o tempo em que se falava em 50 milhões de pobres no Brasil, em 16 milhões de famélicos, justificativa para malabarismos de políticas sociais contra a pobreza e a fome que marcariam os primeiros tempos do novo governo. Depois disso, apesar da persistência do chamado neoliberalismo, a chave de interpretação de todos os números relativos ao Brasil começou a ser mudada para, com a mesma realidade e as mesmas tendências, dizer o contrário do que até então se dissera.
Não há dúvida de que se deve receber com ânimo a informação de que o número dos estatisticamente pobres se reduziu em três milhões entre 2003 e 2008. Esses três milhões, que correspondem ao que o Ipea chama de "classe média emergente", não se defrontam propriamente com afortunado futuro. É que os definidos como ricos (boa parte dos quais é de fato apenas alta classe média) mantiveram-se na proporção de 1% da população dessas regiões. Portanto, o que as fontes indicam é o aprisionamento dessa "classe média" numa faixa de rendimentos que, se conforta, não redime. Até porque o Ipea demonstra que os ganhos de produtividade do trabalho estão crescentemente acima dos ganhos propriamente salariais. Ou seja, progressiva redução do salário em relação aos ganhos possibilitados pelo trabalho. Provavelmente, um peneiramento tecnológico da mão-de-obra, que anula o futuro da imensa massa humana cuja qualificação profissional já não lhe dá condições de buscar um lugar não só na "classe média emergente", mas sobretudo na estrutura produtiva emergente. O que aí se vê é expressão de uma circulação de gerações, com a renovação etária na economia. Mudança que é, sobretudo, resultado de incremento nos índices de escolarização no longo prazo e não apenas de indicadores de crescimento econômico no curto prazo e nos limites cronológicos de um governo.
O documento da Fundação Getúlio Vargas, com outra orientação teórica, menos preocupado com quem sai da pobreza e mais preocupado com quem entra na classe média, confirma essa mesma mobilidade estatística. Mas ambas as análises se enredam nas limitações interpretativas de sua concepção do que é classe média. Ambas tratam do estrato econômico médio e não propriamente de classe média, conceito muito mais abrangente e teoricamente muito mais complexo. Essa simplificação empobrece a compreensão das mudanças que estão ocorrendo. As classes têm referências profundas de situação social, de mentalidade, de comportamento e de aspirações sociais e políticas. No estrato social médio até entra aquela parcela da classe operária a que pertencem a elite sindical e os operários qualificados, os bem remunerados e os bem postos que, não obstante, vivem num mundo muito diverso do mundo propriamente da classe média. Essa é a classe social dos tecnicamente improdutivos ou só indiretamente produtivos, os de referência vacilante na conduta política e nas aspirações sociais, aqueles cuja orientação ideológica está mais voltada para o modo de vida dos ricos do que para o dos que se devotam ao trabalho propriamente produtivo.
A "nova classe média" dessas análises se nega na mera consideração de que sua população é constituída pela contribuição econômica à formação da renda doméstica dos que tem de 15 a 60 anos. Ora, numa sociedade em que o tempo da maturidade para o ingresso no mercado de trabalho tende a demorar cada vez mais e, portanto, tende a retardar o tempo da chegada à estabilidade própria da classe média, que é a da constituição da família depois do emprego, considerar pessoas de, pelo menos, 15 a 21 anos de idade como contribuintes da renda domiciliar é a primeira e fundamental indicação de que não se trata de classe média. Trata-se de uma categoria social cujas possibilidades econômicas ainda dependem da exploração das novas gerações e dos imaturos e, portanto, do comprometimento da possibilidade de sua ascensão que é uma das marcas próprias da classe média.
A proclamação do triunfo estatístico da classe média é antes a indicação de uma mudança de orientação ideológica na era do petismo. É documento menos de uma classe média emergente ou nova e muito mais documento do novo conformismo social e político, subjacente não raro a uma mentalidade e a uma linguagem pseudo-radical e pseudo-social. O deslocamento do ânimo social da situação propriamente de classe média para a referência de um estrato médio, que é mera construção estatística, nos fala da ampliação das condições materiais de um novo conformismo social. Tudo indica que chegamos ao fim da era das demandas radicais e socialmente transformadoras.
*José de Souza Martins, professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP, é autor de O Sujeito Oculto (Ordem e transgressão na reforma agrária), Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003; A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008) e A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008).
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
ALGEMAS E “FICHAS-SUJAS”
Luiz Carlos Azedo
Luiz Carlos Azedo
Resta o problema dos “grampos” ilegais. No ano passado, mais de 400 mil linhas telefônicas foram grampeadas, ou seja, no mínimo 800 mil pessoas foram bisbilhotadas.
O Brasil não tem uma tradição de Justiça popular, de forte influência anglo-saxônica, como a Inglaterra e os Estados Unidos. Aqui, como na França, o peso das instituições romanas fez do Judiciário um poder iluminista. Nossas tradições lusitanas se encarregaram de dar aos nossos tribunais uma imagem elitista, pachorrenta e vetusta, sem falar no patrimonialismo de alguns magistrados. Por isso mesmo, ações intempestivas e abusivas de alguns delegados federais, procuradores da República e juízes federais contra “crimes de colarinho branco” e políticos “fichas-sujas” têm a simpatia da opinião pública. Ainda que atropelem direitos e garantias individuais e outros dispositivos da Constituição, deixam o Supremo Tribunal Federal (STF) numa “saia-justa”.
Jovens turcos
Esses “jovens turcos” ocupam um papel que durante décadas foi exercido por militares de origem “tenentista”. Querem a moralização dos costumes políticos e as reformas institucionais por uma via meio “prussiana”, a matriz histórica do “golpismo” republicano. Melhor assim: o “prendo e arrebento” de origem civil acaba quando o STF e outras instâncias superiores da Justiça entram em campo, com seus habeas-corpus, liminares e sentenças em favor de quem teve seus direitos e garantias individuais desrespeitados. Ou seja, quando a ordem democrática regida pela Constituição de 1988 funciona em sua plenitude para evitar o surgimento de um Estado policial.
Duas recentes decisões do Supremo ilustram bem a questão. Em ambas, sem ceder às pressões da opinião pública, a mais alta Corte do país pautou suas decisões pela letra da Constituição, o que o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, chamou de “pedagogia dos direitos fundamentais”. Primeiro, por nove votos a dois, na terça-feira, ratificou o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que ninguém pode ser privado do direito de disputar uma eleição enquanto não for inapelavelmente condenado. Segundo, por unanimidade, na quarta-feira, limitou o uso legítimo de algemas no cumprimento de mandado de prisão e em circunstâncias posteriores, como julgamento, por exemplo.
Duas lições
O STF resistiu às pressões de tribunais regionais e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) para banir da política os “fichas-sujas”, negando registro às candidaturas dos políticos que respondem a processos civis e criminais em qualquer esfera do sistema judicial. Segundo a AMB, 80% da população apóiam a “limpeza ética”, o que faz da decisão do STF um ato muito impopular. Os ministros do STF conhecem o Judiciário de cima a baixo, sabem como a banda toca em matéria de disputas políticas regionais, inclusive no Ministério Público. Qual a premissa da decisão? A de que não consta na Lei de Inelegibilidades nenhum dispositivo que proíba um cidadão processado de ser candidato, enquanto o seu caso não transitou em julgado. Portanto, só há duas saídas para banir “fichas-sujas” da política: uma é mudar a lei no Congresso, o que é mais ou menos como falar de corda em casa de enforcado; a outra, o povo não votar no político processado, o que parece ser a solução mais simples e rápida.
A segunda decisão se deu em razão do uso abusivo de algemas. A discussão começou com as prisões do banqueiro Daniel Dantas, do megainvestidor Naji Nahas e do ex-prefeito paulistano Celso Pitta, que foram algemados. No caso de Dantas, houve uma queda de braço entre o presidente do STF e um juiz federal, que mandou prender o banqueiro novamente, praticamente invalidando o primeiro habeas corpus. Mendes teve que assumir o desgaste de mandar soltá-lo pela segunda vez. Por essa razão, talvez, a decisão do Supremo Tribunal Federal tenha sido ainda mais emblemática: anulou o julgamento de um pedreiro acusado de homicídio, porque ele foi algemado no tribunal de júri, o que teria — segundo a defesa — influenciado a decisão dos jurados de condená-lo a 13 anos e meio de prisão. O recado foi dado: o uso abusivo de algemas pode comprometer o processo. A humilhação do preso pode ser usada pela defesa para anular depoimentos ou sentenças. Isso vale para ricos e pobres, segundo o STF.
A propósito, resta o problema dos “grampos” ilegais. No ano passado, mais de 400 mil linhas telefônicas foram grampeadas, ou seja, no mínimo 800 mil pessoas foram bisbilhotadas. Telefones fixos, celulares e computadores perderam a privacidade. O “Guardião”, sistema que rastreia centenas de ligações simultaneamente, não discrimina suspeitos de outros cidadãos. Nem mesmo o chefe de gabinete do Presidente da República.
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
FALTA COMANDO
Eliane Cantanhêde
Eliane Cantanhêde
BRASÍLIA - Cadê o comandante-em-chefe das Forças Armadas e das forças civis para segurar seus radicais à direita e à esquerda?
O ministro Tarso Genro ameaça a toda hora botar militares envolvidos com tortura no banco dos réus.
E oficiais da ativa e da reserva reagiram com uma manifestação de ostensiva provocação contra o governo no Clube Militar do Rio.
Se fosse mais um encontro de "generais de pijama", tudo bem.Mas a presença do comandante do Leste e do diretor de Ensino e Pesquisa, generais-de-exército Luiz Cesário da Silveira Filho e Paulo César Castro, muda tudo de figura.
Os dois são "quatro estrelas", estão no topo da hierarquia militar e integram o Alto Comando do Exército. Cesário ocupa o maior posto da área.
Eles foram aconselhados por companheiros a não comparecer, mas só concordaram em trocar a farda por terno e gravata. Isso muda a foto, não a gravidade da situação: a presença de ambos institucionaliza a adesão do Exército a um ato contra o governo. Aliás, contra o governo e a favor do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, presente em todas as listas de torturadores do regime militar. O Exército Brasileiro de hoje poderia muito bem passar sem essa.
Seria ingenuidade achar que Tarso Genro fala sozinho de um lado e os manifestantes do Clube Militar falam sozinhos de outro. São duas forças que se contrapõem e testam limites. Entre uma e outra está o ministro da Defesa, Nelson Jobim, com o cargo e uma vantagem: nem é da turma que pegou em armas contra o regime de 64 e é acusada de "revanchista", nem é da turma fardada que resolveu bater continência para torturador. E tenta driblar os seus radicais e os dos outros.
Mas o comandante-em-chefe é Luiz Inácio Lula da Silva, que precisa dizer se endossa ou não a revisão da Lei da Anistia, se respalda ou não o movimento de Tarso Genro e se engole ou não o desacato do Clube Militar. Enquanto isso, as tropas encorpam e a guerra corre solta.
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
DESIGUALDADE, LENDA E FATOS
Clóvis Rossi
SÃO PAULO - Ressurgiu na semana que acaba a lenda da queda da desigualdade no Brasil, em conseqüência de leitura superficial de um belo trabalho do economista Marcelo Neri (Fundação Getúlio Vargas), talvez o maior especialista brasileiro no assunto.
Neri mediu apenas a desigualdade na renda do trabalho. Não mediu a desigualdade entre o rendimento do trabalho e o rendimento do capital (ou financeiro), que talvez seja mais importante.
Explica o pesquisador: "As pesquisas não captam bem a renda dos ricos e do capital em geral. Por isso não acredito em estimativas de ricos no Brasil a partir de pesquisas domiciliares" (alô, alô, IBGE, não é o caso de fazer idêntica ressalva na Pnad, pesquisa domiciliar?).
Neri conta um dado definitivo a respeito: "Fizemos um experimento no Censo e vimos que quem tem três carros ou mais no domicílio (sinal de riqueza aparente) tem quatro vezes mais chances de omitir a resposta de renda de quem não tem carro no domicílio, situação que corresponde a boa parte da população brasileira".
Conclusão inescapável: "Neste sentido, a desigualdade brasileira, que já era muito alta, tende a ser mais alta ainda".
Neri, de todo modo, diz que a redução da desigualdade (entre salários) "não deve ser menosprezada".
De acordo, mas é óbvio que é importante não menosprezar eventual aumento na desigualdade entre renda do trabalho e do capital.
Só pode ter aumentado. Numa ponta, porque o governo tem remunerado o capital há anos com no mínimo 5% do PIB, via juros sobre papéis da dívida, e doado à baixa renda (ou renda zero) nunca mais que 0,7% do PIB (Bolsa Família).
Na outra ponta, é só perguntar a um bancário se seu salário aumentou mais que o lucro da instituição em que trabalha. Surgirá da resposta, com nitidez, o tamanho da lenda e o tamanho dos fatos.
Clóvis Rossi
SÃO PAULO - Ressurgiu na semana que acaba a lenda da queda da desigualdade no Brasil, em conseqüência de leitura superficial de um belo trabalho do economista Marcelo Neri (Fundação Getúlio Vargas), talvez o maior especialista brasileiro no assunto.
Neri mediu apenas a desigualdade na renda do trabalho. Não mediu a desigualdade entre o rendimento do trabalho e o rendimento do capital (ou financeiro), que talvez seja mais importante.
Explica o pesquisador: "As pesquisas não captam bem a renda dos ricos e do capital em geral. Por isso não acredito em estimativas de ricos no Brasil a partir de pesquisas domiciliares" (alô, alô, IBGE, não é o caso de fazer idêntica ressalva na Pnad, pesquisa domiciliar?).
Neri conta um dado definitivo a respeito: "Fizemos um experimento no Censo e vimos que quem tem três carros ou mais no domicílio (sinal de riqueza aparente) tem quatro vezes mais chances de omitir a resposta de renda de quem não tem carro no domicílio, situação que corresponde a boa parte da população brasileira".
Conclusão inescapável: "Neste sentido, a desigualdade brasileira, que já era muito alta, tende a ser mais alta ainda".
Neri, de todo modo, diz que a redução da desigualdade (entre salários) "não deve ser menosprezada".
De acordo, mas é óbvio que é importante não menosprezar eventual aumento na desigualdade entre renda do trabalho e do capital.
Só pode ter aumentado. Numa ponta, porque o governo tem remunerado o capital há anos com no mínimo 5% do PIB, via juros sobre papéis da dívida, e doado à baixa renda (ou renda zero) nunca mais que 0,7% do PIB (Bolsa Família).
Na outra ponta, é só perguntar a um bancário se seu salário aumentou mais que o lucro da instituição em que trabalha. Surgirá da resposta, com nitidez, o tamanho da lenda e o tamanho dos fatos.
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / ILUSTRADA
E VOCÊ, CHAMARIA O LADRÃO?
Ferreira Gullar
Pôr no mesmo plano bandido e policial equivale a tomar o partido dos bandidos
É DIFÍCIL admitir que policiais, como regra, mesmo sabendo que num carro suspeito não há bandidos, mas pessoas inocentes, atirem contra elas. Mais plausível é que, se o fizerem, seja por confusão e descontrole, devido ao estado de tensão em que trabalham, sempre ameaçados de perderem a vida.
Certamente, a morte de inocentes, seja por que causa for, é inaceitável, e há que tomar medidas drásticas para evitá-la, a começar por um rigoroso treinamento, de que carece nossa polícia, e pelo uso, agora adotado, de armas menos letais. Não obstante, esses erros, que são graves, não podem servir de argumento para que se condene a disposição do governador do Rio de não ceder no combate ao crime organizado.
Quem são esses bandidos, como agem? Será que só agora, depois que o governo estadual decidiu desarmá-los, passaram a exercer terror sobre a população favelada e a matar policiais? O grau de violência e ferocidade com que agem não tem limites. Vimos, há pouco, como trataram três rapazes que alguns soldados do Exército lhes entregaram. Mataram os três, mas, antes, os torturaram e mutilaram. Pergunto se isso tem a ver com a política de repressão adotada pelo governo estadual. Sabemos que não. Nos últimos quatro anos e meio, eles mataram 646 policiais, dos quais 504 fora de serviço.
É preciso que se vejam as coisas com objetividade e isenção. Ninguém ignora que os traficantes impõem seu poder de vida e morte sobre os moradores das favelas, a ponto de obrigá-los a deixar as portas das casas abertas para que possam nelas se esconder e escapar das batidas policiais. Por isso, às vezes, o confronto se trava dentro de uma dessas casas e, se um morador morre, a polícia é acusada de matá-lo. Já repararam que, quando alguém é atingido por bala perdida, essa bala saiu sempre da arma do policial?
Sabe-se, agora, que senhoras, moradoras da favela, são obrigadas pelos traficantes a ir à polícia dizer que viram quando o policial atirou no morador.
Não é de hoje que os bandidos decidiram exercer o terror também sobre os policiais. É sabido que nenhum policial se atreve a sair de casa fardado. Todos andam à paisana; só vestem a farda no quartel. Se, em alguma circunstância, o assaltante identifica o assaltado como policial, mata-o na hora. Se você tivesse que viver sob semelhante ameaça, como se comportaria ao se defrontar com um bandido? A polícia precisa prender mais e matar menos. Para isso, entre outras coisas, é preciso manter o controle emocional no exercício de suas tarefas, mas não se pode ignorar a tensão psicológica de quem vive sob constante ameaça. Nada justifica os erros da polícia, mas há que levar em conta que policiais são pessoas como nós, que arriscam a vida por todos, a troco de um baixo salário.
Não podemos embarcar no jogo do crime organizado, que viola as normas sociais e põe em risco a segurança de todos. Essas normas não foram inventadas por acaso, e sim porque, sem elas, o convívio humano torna-se inviável. Quem mais necessita da lei são os que habitam as regiões da cidade dominadas pelos traficantes, porque onde não vigora a lei vigora o arbítrio.
Mas, já agora com maior freqüência, os moradores das áreas nobres têm experimentado a truculência dos bandidos. Nessas horas, reclamam da falta de policiamento, porque, como disse certo pensador, é quando a faca perde o fio que a gente se lembra do amolador de facas. A polícia existe para fazer cumprir as leis, prender quem se nega a cumpri-las; não para matar. Ela é parte da sociedade que a criou e a mantém porque necessita dela. Pôr no mesmo plano bandido e policial equivale a tomar o partido dos bandidos.
Dando conseqüência ao domínio que exercem sobre as favelas, os bandidos decidiram agora eleger seus representantes na Câmara de Vereadores e, em razão disso, impõem limites à campanha dos demais candidatos em seu território. A intervenção do governo para restabelecer ali o Estado de Direito pode gerar conflitos e mortes. Deve então omitir-se?
Não pega lá muito bem reconhecer a legitimidade da polícia; pega muito melhor ser tolerante com os bandidos, tidos como vítimas da sociedade. Inventou-se que a pobreza é a mãe do crime, quando alguns dos maiores ladrões deste país são ricos.
Os bandidos são minoria insignificante nas comunidades faveladas. Dizem que o traficante Nem, da Rocinha, tem 200 homens armados. Um exagero, mas, ainda que seja verdade, é quase nada diante dos 65 mil habitantes daquela comunidade, que é dele refém.
Ferreira Gullar
Pôr no mesmo plano bandido e policial equivale a tomar o partido dos bandidos
É DIFÍCIL admitir que policiais, como regra, mesmo sabendo que num carro suspeito não há bandidos, mas pessoas inocentes, atirem contra elas. Mais plausível é que, se o fizerem, seja por confusão e descontrole, devido ao estado de tensão em que trabalham, sempre ameaçados de perderem a vida.
Certamente, a morte de inocentes, seja por que causa for, é inaceitável, e há que tomar medidas drásticas para evitá-la, a começar por um rigoroso treinamento, de que carece nossa polícia, e pelo uso, agora adotado, de armas menos letais. Não obstante, esses erros, que são graves, não podem servir de argumento para que se condene a disposição do governador do Rio de não ceder no combate ao crime organizado.
Quem são esses bandidos, como agem? Será que só agora, depois que o governo estadual decidiu desarmá-los, passaram a exercer terror sobre a população favelada e a matar policiais? O grau de violência e ferocidade com que agem não tem limites. Vimos, há pouco, como trataram três rapazes que alguns soldados do Exército lhes entregaram. Mataram os três, mas, antes, os torturaram e mutilaram. Pergunto se isso tem a ver com a política de repressão adotada pelo governo estadual. Sabemos que não. Nos últimos quatro anos e meio, eles mataram 646 policiais, dos quais 504 fora de serviço.
É preciso que se vejam as coisas com objetividade e isenção. Ninguém ignora que os traficantes impõem seu poder de vida e morte sobre os moradores das favelas, a ponto de obrigá-los a deixar as portas das casas abertas para que possam nelas se esconder e escapar das batidas policiais. Por isso, às vezes, o confronto se trava dentro de uma dessas casas e, se um morador morre, a polícia é acusada de matá-lo. Já repararam que, quando alguém é atingido por bala perdida, essa bala saiu sempre da arma do policial?
Sabe-se, agora, que senhoras, moradoras da favela, são obrigadas pelos traficantes a ir à polícia dizer que viram quando o policial atirou no morador.
Não é de hoje que os bandidos decidiram exercer o terror também sobre os policiais. É sabido que nenhum policial se atreve a sair de casa fardado. Todos andam à paisana; só vestem a farda no quartel. Se, em alguma circunstância, o assaltante identifica o assaltado como policial, mata-o na hora. Se você tivesse que viver sob semelhante ameaça, como se comportaria ao se defrontar com um bandido? A polícia precisa prender mais e matar menos. Para isso, entre outras coisas, é preciso manter o controle emocional no exercício de suas tarefas, mas não se pode ignorar a tensão psicológica de quem vive sob constante ameaça. Nada justifica os erros da polícia, mas há que levar em conta que policiais são pessoas como nós, que arriscam a vida por todos, a troco de um baixo salário.
Não podemos embarcar no jogo do crime organizado, que viola as normas sociais e põe em risco a segurança de todos. Essas normas não foram inventadas por acaso, e sim porque, sem elas, o convívio humano torna-se inviável. Quem mais necessita da lei são os que habitam as regiões da cidade dominadas pelos traficantes, porque onde não vigora a lei vigora o arbítrio.
Mas, já agora com maior freqüência, os moradores das áreas nobres têm experimentado a truculência dos bandidos. Nessas horas, reclamam da falta de policiamento, porque, como disse certo pensador, é quando a faca perde o fio que a gente se lembra do amolador de facas. A polícia existe para fazer cumprir as leis, prender quem se nega a cumpri-las; não para matar. Ela é parte da sociedade que a criou e a mantém porque necessita dela. Pôr no mesmo plano bandido e policial equivale a tomar o partido dos bandidos.
Dando conseqüência ao domínio que exercem sobre as favelas, os bandidos decidiram agora eleger seus representantes na Câmara de Vereadores e, em razão disso, impõem limites à campanha dos demais candidatos em seu território. A intervenção do governo para restabelecer ali o Estado de Direito pode gerar conflitos e mortes. Deve então omitir-se?
Não pega lá muito bem reconhecer a legitimidade da polícia; pega muito melhor ser tolerante com os bandidos, tidos como vítimas da sociedade. Inventou-se que a pobreza é a mãe do crime, quando alguns dos maiores ladrões deste país são ricos.
Os bandidos são minoria insignificante nas comunidades faveladas. Dizem que o traficante Nem, da Rocinha, tem 200 homens armados. Um exagero, mas, ainda que seja verdade, é quase nada diante dos 65 mil habitantes daquela comunidade, que é dele refém.
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
ENCONTRO COM O TEMPO
Alberto Dines
Na altíssima morada dos deuses, o Olimpo, reina a felicidade e a concórdia. Em busca de ambas, abaixo, os jogos olímpicos pretendiam uma trégua entre as aguerridas cidades-estado da Grécia.
De quatro em quatro anos, a cada inauguração da maior festa desportiva mundial, ocorre uma salutar aproximação entre a antiguidade e a modernidade. Enquanto os atletas preocupam-se com a imortalidade através da conquista de coroas de louro – hoje medalhas de ouro – nos intervalos entre as provas, os comuns mortais descortinam um percurso iniciado provavelmente quinze séculos antes da Era Comum e, através dele, estabelecer fascinantes vínculos entre o passado e o presente.
O adjetivo "olímpico" pode ser aplicado indistintamente às provas desportivas como também a um tipo de comportamento, atitude moral de quem as assiste. Nas competições, o sentido olímpico é marcado pela participação absoluta, integral, enquanto que longe dos estádios, o olimpismo pressupõe eqüidistância e eqüidade, superioridade e discrição. Quanto mais olímpico for o desempenho dos envolvidos nos jogos, mais olímpica deve ser a atitude dos circunstantes.
Não pode ser desprezado o gigantesco esforço da China para apresentar-se ao mundo tal com é, sem disfarces, nação igual às outras. A fabulosa soma de recursos investidos pelo governo associada ao formidável empenho da sua população oferece um exemplo ímpar de disciplina coletiva. A China quer ser aceita, precisa ser aceita. A aura de mistério e lenda que ainda a envolve estimula falsidades e preconceitos.
Essa olímpica exibição de energia, por outro lado, nos obriga a um distanciamento crítico, também olímpico, e nos coloca diante de um passado recente (se comparado aos grandes lapsos de tempo que remontam às origens dos Jogos). Há apenas 72 anos, a Alemanha também organizou um grandioso espetáculo de determinação, na realidade monumental demonstração ao vivo do Triunfo da vontade, nome do filme que a cineasta Leni Riefensthal, havia rodado dois anos antes em Nuremberg para comemorar o Congresso do Partido Nazista (Nacional-Socialista).
Berlim foi escolhida para sediar as Olimpíadas ainda em 1931 quando a Alemanha ainda era a República de Weimar, em escombros é verdade, mas ainda uma democracia e uma constituição considerada socialmente a mais avançada. Seria uma oportunidade para mostrar que o antigo império fragorosamente derrotado na Grande Guerra treze anos antes, ameaçado por quarteladas de direita e esquerda, era capaz de ancorar uma solução européia alternativa aos EUA e à URSS. As eleições de 1932 e a inesperada chegada ao poder em 1933 ofereceram a Hitler uma vitrine para exibir o seu demoníaco poder três anos depois.
Joseph Goebbels, não era apenas o comissário da propaganda e da cultura, era um diabólico estrategista político encarregado de preparar a Alemanha para ser vista durante os Jogos Olímpicos como exemplo de convivência e harmonia. As milícias paramilitares foram recolhidas, a Gestapo desapareceu, os judeus deixaram de ser espancados nas ruas, disfarçada foi a repressão contra os social-democratas e comunistas.
O mundo viu a Alemanha em 1936 como um país asseado, organizado, sadio, alegre, aparentemente próspero, disposto à convivência. A suástica negra rodeada de vermelho, naquela época era apenas uma estranha logomarca. Impossível conceber que aquela cruz-quebrada, kitsch, de mau-gosto, seria imediatamente convertida em ícone universal do horror. O resto do filme já é conhecido: invasão dos Sudetos, anexação da Áustria, Kristallnacht (Noite dos Cristais, ensaio de furor para os campos de extermínios), o esmagamento da Polônia.
Os dirigentes chineses conhecem a história do mundo (o país, de certa forma, é uma vítima desta história) e resolveram avançar na abertura política. Goebbels não é mais necessário, o formidável crescimento do país dispensa as velhas técnicas de propaganda e persuasão.
Mas os 36 mil jornalistas estrangeiros acantonados em Pequim não foram apenas para acompanhar as competições. Querem ver, conferir, o mundo hoje, felizmente, é mais exigente do que em 1936.
Aprendeu a desconfiar. A China aceitou todos os riscos olímpicos. Resta saber se saberá examinar os resultados da sua ousadia para as necessárias correções. Olimpicamente.
» Alberto Dines é jornalista.
Alberto Dines
Na altíssima morada dos deuses, o Olimpo, reina a felicidade e a concórdia. Em busca de ambas, abaixo, os jogos olímpicos pretendiam uma trégua entre as aguerridas cidades-estado da Grécia.
De quatro em quatro anos, a cada inauguração da maior festa desportiva mundial, ocorre uma salutar aproximação entre a antiguidade e a modernidade. Enquanto os atletas preocupam-se com a imortalidade através da conquista de coroas de louro – hoje medalhas de ouro – nos intervalos entre as provas, os comuns mortais descortinam um percurso iniciado provavelmente quinze séculos antes da Era Comum e, através dele, estabelecer fascinantes vínculos entre o passado e o presente.
O adjetivo "olímpico" pode ser aplicado indistintamente às provas desportivas como também a um tipo de comportamento, atitude moral de quem as assiste. Nas competições, o sentido olímpico é marcado pela participação absoluta, integral, enquanto que longe dos estádios, o olimpismo pressupõe eqüidistância e eqüidade, superioridade e discrição. Quanto mais olímpico for o desempenho dos envolvidos nos jogos, mais olímpica deve ser a atitude dos circunstantes.
Não pode ser desprezado o gigantesco esforço da China para apresentar-se ao mundo tal com é, sem disfarces, nação igual às outras. A fabulosa soma de recursos investidos pelo governo associada ao formidável empenho da sua população oferece um exemplo ímpar de disciplina coletiva. A China quer ser aceita, precisa ser aceita. A aura de mistério e lenda que ainda a envolve estimula falsidades e preconceitos.
Essa olímpica exibição de energia, por outro lado, nos obriga a um distanciamento crítico, também olímpico, e nos coloca diante de um passado recente (se comparado aos grandes lapsos de tempo que remontam às origens dos Jogos). Há apenas 72 anos, a Alemanha também organizou um grandioso espetáculo de determinação, na realidade monumental demonstração ao vivo do Triunfo da vontade, nome do filme que a cineasta Leni Riefensthal, havia rodado dois anos antes em Nuremberg para comemorar o Congresso do Partido Nazista (Nacional-Socialista).
Berlim foi escolhida para sediar as Olimpíadas ainda em 1931 quando a Alemanha ainda era a República de Weimar, em escombros é verdade, mas ainda uma democracia e uma constituição considerada socialmente a mais avançada. Seria uma oportunidade para mostrar que o antigo império fragorosamente derrotado na Grande Guerra treze anos antes, ameaçado por quarteladas de direita e esquerda, era capaz de ancorar uma solução européia alternativa aos EUA e à URSS. As eleições de 1932 e a inesperada chegada ao poder em 1933 ofereceram a Hitler uma vitrine para exibir o seu demoníaco poder três anos depois.
Joseph Goebbels, não era apenas o comissário da propaganda e da cultura, era um diabólico estrategista político encarregado de preparar a Alemanha para ser vista durante os Jogos Olímpicos como exemplo de convivência e harmonia. As milícias paramilitares foram recolhidas, a Gestapo desapareceu, os judeus deixaram de ser espancados nas ruas, disfarçada foi a repressão contra os social-democratas e comunistas.
O mundo viu a Alemanha em 1936 como um país asseado, organizado, sadio, alegre, aparentemente próspero, disposto à convivência. A suástica negra rodeada de vermelho, naquela época era apenas uma estranha logomarca. Impossível conceber que aquela cruz-quebrada, kitsch, de mau-gosto, seria imediatamente convertida em ícone universal do horror. O resto do filme já é conhecido: invasão dos Sudetos, anexação da Áustria, Kristallnacht (Noite dos Cristais, ensaio de furor para os campos de extermínios), o esmagamento da Polônia.
Os dirigentes chineses conhecem a história do mundo (o país, de certa forma, é uma vítima desta história) e resolveram avançar na abertura política. Goebbels não é mais necessário, o formidável crescimento do país dispensa as velhas técnicas de propaganda e persuasão.
Mas os 36 mil jornalistas estrangeiros acantonados em Pequim não foram apenas para acompanhar as competições. Querem ver, conferir, o mundo hoje, felizmente, é mais exigente do que em 1936.
Aprendeu a desconfiar. A China aceitou todos os riscos olímpicos. Resta saber se saberá examinar os resultados da sua ousadia para as necessárias correções. Olimpicamente.
» Alberto Dines é jornalista.
DEU NO JORNAL DO BRASIL / IDÉAIS
TERCEIRA VIA COM AÇÚCAR E SEM AFETO
Rodrigo de Almeida
Rodrigo de Almeida
Em `O que a esquerda deve propor", Mangabeira Unger busca alternativas radicais
"O mundo sofre, hoje, sob a ditadura da falta de alternativas", escreve o professor Roberto Mangabeira Unger, na primeira linha do livro que acaba de lançar pela editora Civilização Brasileira, O que a esquerda deve propor. Repete a frase, com sutis variações, o intelectual sentado à mesa de ministro de Assuntos Estratégicos, em Brasília, na primeira resposta ao repórter. Ao mesmo tempo em que está sob o jugo de uma ditadura, o mundo está inquieto, em busca de alternativas - insiste ele.
Esgotadas todas as aventuras ideológicas do século 20, Mangabeira acha que o repertório das alternativas disponíveis à humanidade fez água. Ficou estreito demais para o tamanho e a profundidade das mazelas e dificuldades do presente. Os problemas das sociedades contemporâneas tornaram-se insolúveis se corrigidos dentro dos limites desse repertório. É preciso ampliar, até mesmo radicalmente, as alternativas institucionais disponíveis sugere, ao falar de um dos temas centrais do livro e de sua vasta obra teórica.
Sua nova publicação é, na verdade, um livro-manifesto publicado originalmente em inglês, em 2005: What should the left propose? Nele, põe o dedo em riste com mais ênfase em direção aos teóricos e governos de esquerda. "Os autodeclarados progressistas aparecem no palco da história contemporânea como humanizadores do inevitável: seu programa tornou-se o programa de seus adversários conservadores, com um pequeno desconto", escreve, para arrematar em seguida: "Disfarçam a rendição como síntese de coesão social e flexibilidade econômica, por exemplo. Suas `terceiras vias" são a primeira via com açúcar: o adoçante da política social compensatória e da seguridade social, substituindo a ampliação fundamental de oportunidades".
Parece referir-se indiretamente ao próprio governo do qual faz parte, mas se dirige, em particular, à social-democracia que encantou a Europa na primeira metade do século passado e se tornou o mais do mesmo adiante.
A social-democracia resultou de um compromisso. As forças que lutavam por uma reconstrução institucional da economia e do Estado abandonaram essa luta. Em troca desse abandono, conseguiram que o Estado conquistasse uma posição forte no domínio da distribuição ou redistribuição da riqueza. Ocorre que, mesmo nas sociedades mais ricas, os problemas fundamentais não podem ser equacionados nos limites do compromisso histórico.
O resultado, diz ele, é o distanciamento de três mundos: o dos setores avançados da produção e do conhecimento; o mundo das indústrias tradicionais, da produção em larga escala de bens e serviços padronizados; e o mundo dos imigrantes, dos pobres, dos empreendimentos descapitalizados e desqualificados.
-O Estado trata de aplacar os problemas pela prestação de serviços sociais afirma Mangabeira. O problema é que essa violenta segmentação hierárquica da sociedade, resultante da separação desses três mundos, não pode ser revertida, ou nem sequer controlada, por políticas meramente distribuidoras.
Conclusão: é preciso encontrar uma maneira de espalhar o acesso do primeiro mundo os setores avançados da produção e do conhecimento a uma parcela maior das sociedades. E o caminho, sugere, passa longe da via escolhida até aqui. A redistribuição compensatória por políticas de transferências pode tirar as pessoas da miséria, mas não pode reverter a segmentação hierárquica. É uma luta de Sísifo contra forças estruturais.
Mangabeira, portanto, ignora ou reduz o impacto de programas como o Bolsa Família, que tem feito diferença na mudança da pirâmide social do Brasil nos últimos anos. Falta, segundo suas palavras, "rebeldia imaginativa": Temos toda a razão para nos associarmos à rebeldia imaginativa. E temos seguido o caminho oposto: o do conformismo intelectual. Mangabeira parece hoje confortável na condição de ministro. Comanda um dos mais relevantes projetos do governo do presidente Lula, o Plano Amazônia Sustentável, não sem passar por uma ruidosa queda-de-braço com o Ministério do Meio Ambiente, guerra fria que se tornou, entre outras coisas, a pá de cal para a saída de Marina Silva do governo.
Sua missão oficial é conduzir a discussão e a elaboração de projetos de longo prazo, destino que logo permitiu a detratores, críticos e céticos em geral o apelidarem de "ministro do futuro" no mau sentido. Esquiva-se, porém, das polêmicas de governo.
Se o repertório institucional disponível é estreito, se falta imaginação criadora, se a inclusão social prometida é meramente acessória e não transformadora, a trilha sugerida em O que a esquerda deve propor é o que Mangabeira chama de "agenda de reconstrução das instituições e das consciências": mudanças na forma de organização do Estado, da política democrática e da economia de mercado.
A esquerda entre o utópico e o trivial
De que esquerda falamos?
Podemos identificar três es- querdas. Duas constituídas e a terceira lutando para nascer. Uma esquerda rejeita o mercado e a globalização, mas não sabe o que pôr no lugar. Tenta desacelerar o movimento em direção a eles para manter as prerrogativas de sua base histórica o operariado e a classe média encastelada na indústria fordista. O problema é que essa base histórica é cada vez menor. Uma segunda esquerda abraça o mercado e a globalização e procura humanizá-los, sobretudo por meio de políticas de transferência da renda e da riqueza. Corta a ligação com a base histórica e se dirige à sociedade em geral. Mas não tem uma mensagem, não se distingue das outras forças políticas.
E a terceira?
Seria uma esquerda que insiste na agenda da reconstrução das instituições e das consciências. Procuraria, em primeiro lugar, ampliar o repertório das alternativas, sobretudo das alternativas institucionais, as maneiras diferentes de organizar o Estado, a política democrática, a economia de mercado. Não trataria a igualdade como um objetivo supremo. Essa que estou chamando de esquerda que luta para nascer teria como objetivo orientador o engrandecimento e a capacitação das pessoas comuns, a elevação da vida cotidiana dos homens e mulheres comuns a um nível mais alto de intensidade e capacitação. E o igualitarismo, a diminuição das desigualdades, é um instrumento acessório. Não é o verdadeiro objetivo.
Tem outra base?
Não se aferra às bases sociais da esquerda histórica. O maior erro estratégico da esquerda ocidental no curso dos dois séculos foi eleger a pequena burguesia como sua inimiga. E essa mesma burguesia veio a ser a base dos grandes movimentos de direita nos últimos dois séculos. Hoje, no mundo todo, há mais pequenos burgueses do que proletários industriais. E se definirmos pequena burguesia de maneira subjetiva a aspiração para um grau modesto de independência e prosperidade a vasta parcela da humanidade tem um horizonte pequeno burguês.
No livro o sr. critica o vínculo entre mudança e crise. Como rompê-lo?
As sociedades modernas e os Estados modernos estão organizados de maneira que ainda faz a mudança depender da crise. Todas as sociedades tiveram suas transformações movidas por traumas das guerras e dos colapsos econômicos. Uma tarefa é diminuir essa necessidade. É preciso reorganizar institucionalmente a democracia. São necessárias instituições que elevem de forma organizada o nível de engajamento político, arranjos institucionais que resolvam rapidamente os impasses entre os Poderes, o aprofundamento do regime federativo, práticas que assegurem aos cidadãos o mínimo de direitos e oportunidades e uma combinação de democracia representativa com democracia participativa. Isso reduziria esse vínculo.
Muitos dos seus livros insistem no problema das alternativas. Por que a insistência?
Esse livro é a manifestação de um projeto intelectual maior. Um traço da minha obra é a imaginação das alternativas. Não sabemos argumentar programaticamente. Quando uma pessoa propõe algo muito distante do que existe, as pessoas dizem: "É interessante mas utópico". E quando propõe algo próximo do que existe, as pessoas dizem: "É viável mas trivial". Tudo o que se propõe parece utópico ou trivial. Na falta de uma visão crível da transformação estrutural, acabamos nos fiando num critério abastardo de realismo político. Minha obra é um esforço para sair dessa condição.
* O que a esquerda deve propor – Roberto Mangabeira Unger. Tradução de Antônio Risério Leite Filho. 192 páginas R$ 29,00