sábado, 30 de agosto de 2008

Uma disputa estratégica


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


DENVER, Colorado. Foi um discurso com a dose certa de emoção e razão, de quem não está na corrida presidencial por acaso, mas para ganhar. O candidato democrata Barack Obama confirmou na noite de quinta-feira, diante de mais de 80 mil pessoas num estádio de futebol americano, que é um adversário difícil de ser desconstruído, que não teme o confronto. Só estando lá para sentir a eletricidade do ambiente, a alegria dos militantes, a ansiedade da vitória que dominava a todos e, ao mesmo tempo, o temor de que o sonho afinal não se realize.

O fato de ter chamado para o centro da disputa eleitoral seu adversário, o republicano John McCain, a quem citou nada menos que 22 vezes em cerca de uma hora, mostra que, a partir das convenções, a disputa ganhará tons cada vez mais pessoais, embora Obama tenha dito, em um dos muitos bons momentos de seu discurso, que a campanha não era sobre ele, mas sobre o povo americano.

Ao contrário, a disputa é toda em torno dele, o primeiro negro a ser lançado candidato à Presidência dos Estados Unidos por um dos grandes partidos, e isso pode ser bom para ele, mas pode também ser um complicador.

Ele tem que se mostrar renovador, mas não tão distante do mundo real que se torne um aventureiro; tem que defender novas maneiras de fazer política sem parecer ingênuo; e mostrar uma visão diferente da que prevalece em Washington sem se revelar inexperiente.

Ele vai ter que viabilizar uma mudança que vêm "de fora" ("a change to Washington"), e não de Washington, mas, para isso, paradoxalmente, terá que ter a ajuda do establishment político. Tendo rejeitado Hillary Clinton como vice, teve que buscar em Washington o senador Joe Biden.

Em uma disputa tão apertada como costumam ser as eleições presidenciais americanas, os dois candidatos mostram-se mestres em estratégia política. Sendo a energia um dos pontos centrais da preocupação do americano médio, os dois trataram a questão com prioridade máxima.

Obama usou palavras de pura inspiração misturadas com questões concretas do dia-a-dia do cidadão, como seu plano de tornar os Estados Unidos independente dos países árabes em relação ao petróleo em dez anos, e conseguiu provocar uma das grandes ovações da noite, explicitando o que vai na alma do eleitorado em geral: o preço da gasolina e do aquecimento está mexendo com a cabeça e o bolso do americano, que atribui aos árabes mais essa desdita.

McCain foi buscar no Alaska sua candidata a vice, a governadora Sarah Pallin, mulher, mais jovem que Obama, uma política independente dentro do Partido Republicano tanto quanto McCain e, sobretudo, favorável à ampliação da exploração de petróleo, inclusive no seu estado, onde a exploração é limitada por questões ambientais.

Aumentar a perfuração de petróleo é percebido, neste momento, pela população como uma solução para a questão do preço da gasolina, embora seja tão inócua quanto é improvável a concretização da promessa de Obama de o país estar auto-suficiente em energia em dez anos.

Mas não foi por acaso que a governadora Sarah Pallin, em seu primeiro pronunciamento, citou diretamente a senadora Hillary Clinton, exaltando seu feito como tendo sido um passo importante na política feminista, e se colocou como uma sucessora de Hillary Clinton, disposta a superar uma barreira que nem mesmo os 18 milhões de votos que a senadora democrata conseguiu nas primárias de seu partido foram suficientes para suplantar.

Ela está de olho em parte desses votos, os que teriam sido dados por Hillary ser uma política comprometida com o avanço da causa feminista. Pallin não é uma líder feminista, mas está defendendo a tese de que eleger uma mulher é um avanço. O mais próximo que Pallin chegou em defesa de uma causa feminista, pelo menos publicamente, foi pressionar para demitir um ex-genro que batia em sua irmã, o que causou um pequeno escândalo político no Alaska.

A escolha da governadora do Alaska tem também desvantagens para a candidatura McCain, sendo a mais previsível a redução da eficácia da desconstrução de Obama na base da inexperiência política.

Ora, a governadora Pallin está no seu primeiro mandato, e a única experiência anterior foi ser prefeita de uma pequena cidade. Para um candidato que fez 72 anos ontem e tem um histórico de doenças de pele - já teve um melanoma -, a escolha do vice é fundamental. Pallin é jovem, o que é uma garantia, mas tão inexperiente quanto Obama, o que pode ser perigoso caso ela tenha que assumir o governo em uma emergência.

A governadora é tão independente politicamente que mesmo sendo defensora da exploração de petróleo na costa de seu estado, ela tem litígios com várias companhias petrolíferas, tanto por ter criado impostos que impuseram novos gastos quanto por pressioná-las para aumentar a prospecção.

É uma conservadora que acredita na mão pesada do Estado, da mesma maneira que, durante a convenção democrata, o lado mais liberal do partido apareceu diversas vezes, várias delas no discurso do próprio Obama, que já foi considerado o senador mais de esquerda de Washington.

A senadora Hillary Clinton já havia dito em seu discurso que "obrigaria" as empresas de energia a implantarem projetos "para o bem comum", seja lá o que isso signifique. Barack Obama foi mais específico, disse que não permitiria que as companhias de seguro-saúde discriminassem pessoas com doenças graves, e garantiu que todos os cidadãos americanos terão acesso a planos de saúde a preços módicos.

Com a escolha de Pallin, a chapa dos republicanos deu uma guinada à direita, ao mesmo tempo em que o discurso dos democratas foi mais para a esquerda a partir da convenção.

Virtudes democráticas


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O processo eleitoral nos Estados Unidos - da escolha dos candidatos à eleição do presidente - não é perfeito, bem como a democracia tampouco se pretende sem defeitos.

Mas, haverão de convir até os adeptos do antiamericanismo como filosofia de vida, que nos últimos meses o país proporcionou ao mundo interessado no tema da representação política um espetáculo de qualidade ímpar.

Da aparição de Barack Obama na condição de azarão à perda de terreno da favorita Hillary Clinton, passando pela resistência da senadora ante a evidente desvantagem nas primárias até a confirmação do atropelo definitivo, a rendição e, por fim, escolha oficial de Obama como candidato a presidente em apoteótica convenção do partido Democrata, tudo isso ensina muito a países em estado de pré-depressão cívica.

Poderíamos falar de vários - muitos localizados aqui bem perto -, mas não há razão para olhar as mazelas do vizinho se precisamos mesmo é observar, esmiuçar e procurar corrigir as nossas.

A proposta não é fazer dos Estados Unidos um modelo. Inclusive porque não fossem milhares de outros fatores, há léguas de distância na formação das duas sociedades: a norte-americana forma uma nação e, só então, organiza o Estado; a brasileira nasce, cresce e permanece econômica, política e (sobretudo) culturalmente dependente do Estado.

Para uma, ele é um servidor; já para a outra é um provedor.

Só por essa diferença de origem já seria um equívoco acreditar que resida no arremedo a solução para o nosso nessa altura já inadiável avanço.

Valem, porém, a observação e a reflexão. Não sobre os atributos dos candidatos ou as razões do povo americano para se arriscar ao "diferente", mas a respeito do processo.

Por que Barack Obama conseguiu se impor ao favoritismo de Hillary dentro da "estrutura", enquanto que aqui o inesperado só tem chance quando envereda por atalhos exóticos, campos férteis aos aventureiros e oportunistas?

Aqui, a mentalidade do mandonismo, de um lado, e a vocação do servilismo, de outro, simplesmente impossibilitam a ampliação da participação social da vida dos partidos. É cada um no seu canto.

Lá, foram meses de primárias, consultas pelo país todo, debates sobre questões substanciais, cobranças de cada conduta, cada palavra, cada compromisso do passado em confrontação com as teses defendidas no presente e, no fim, uma convenção partidária com a participação de 75 mil pessoas e fila virando na porta de entrada.

Tudo sem voto obrigatório nem a influência da mão pesada do governante de turno. Seja ele impopular como George W. Bush, ou tenha sido popular como Bill Clinton.

O poder público não entra como fator de indução da vontade daqueles delegados representantes da população. Prevalece a vontade da "base" do partido induzida, aí sim, pelo que se passa do lado de "fora" dos organogramas oficiais.

Há conchavos? Evidente. Sem eles não se fazem acertos. Mas são apenas uma parte de um todo, cuja boa essência está no fato de ser conduzido pelas regras do jogo.

Poder do moderador

Autor da demarcação contínua das terras da reserva Raposa Serra do Sol, é natural que o governo federal defenda sua posição na ação em julgamento no Supremo Tribunal Federal. Isso no tocante à alçada da Advocacia-Geral da União.

Fora dessa área, as manifestações de ministros assumem um caráter de torcida que subtraem do governo credenciais para atuar na mediação do conflito já devidamente contratado em Roraima, seja qual for a decisão do Supremo.

Não havendo de nenhuma das partes disposição para aceitar concessões ao "adversário", o cenário de sublevação contra a palavra da Justiça está no horizonte.

Se confirmado, restará a administração política da questão. O Congresso estando amorfo, a tarefa será necessariamente do Executivo que, para isso, precisa preservar um espaço de neutralidade.

Terra firme

Político com o futuro em jogo não arrisca. Petisca do bom e, da festa, aproveita o melhor para si.

É só repara: o governador do Rio, Sérgio Cabral, apareceu na campanha apenas quando seu candidato, Eduardo Paes, engatou um segundo lugar nas pesquisas.

Mas não é o único a passar ao largo de cenários adversos. A menos que dependem da virada do quadro, caso típico do empenho de Aécio Neves pelo candidato à Prefeitura de Belo Horizonte, desde os 6% iniciais já devidamente transformados em 21% das pesquisas.

José Serra aproxima-se o menos possível da briga de foice no escuro do PSDB na campanha paulistana, mas no Rio dá apoio enfático a Fernando Gabeira; por ora não tem chance de vitória, mas faz boa figura na sociedade.

Hoje, quando o presidente Lula inicia por São Paulo seu percurso de palanques, o trajeto a ser percorrido daí em diante o confirmará como regra ou o mostrará como exceção.

Lula, ligue para o Obama


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Diz o jornal britânico "Financial Times" que a proposta talvez mais ambiciosa de Barack Obama para a economia, em seu discurso de aceitação da candidatura, foi a de "desmamar" os Estados Unidos do petróleo externo em dez anos e investir algo em torno de US$ 150 bilhões em programas de energia alternativa.

Eu, se fosse Lula, ligaria para Barack e diria: "companheiro, juntemos a fome com a vontade de comer e seus problemas acabarão". Explico: 1 - Lula tem verdadeira obsessão, de resto assumida, com o uso do etanol (desde que derivado da cana-de-açúcar, que fique claro) como fonte do que chama de revolução energética global.

2 - Funcionaria assim: o Brasil entra com a tecnologia, a melhor até agora disponível nesse campo, e os Estados Unidos com o dinheiro para que países pobres do Caribe, América Central e África possam se tornar exportadores de álcool, derivado da cana-de-açúcar ou outro plantio que não interfira com a alimentação humana.

Esse, aliás, é o espírito do memorando de entendimento assinado entre Lula e Bush em 2007, mas que não saiu do papel até agora.

3 - O telefonema urgente é importante, porque Barack Obama tem ou teve conhecidos vínculos com o lobby do etanol derivado do milho, especialidade norte-americana, que, no entanto, é cara demais e, ela sim, tira milho da boca das criancinhas (e dos adultos). É bom, desde já, deixar claro ao candidato que há uma alternativa melhor.

4 - É razoável supor que um programa desse gênero permitiria aos Estados Unidos reduzir sua dependência energética de fontes que não são confiáveis (aos olhos norte-americanos).

5 - Bem combinadas e estudadas as coisas, Lula deixaria de ser "o chato do etanol", como ele próprio se classificou faz pouco, para ser co-autor, aí sim, de uma revolução energética.

Anarquia e sindicalismo


Almir Pazzianotto Pinto
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Poucos movimentos sociais provocaram tanto sobressalto ao País como se deu com o anarcossindicalismo, nas primeiras décadas do século passado. O temor governamental era tamanho que em 7 de janeiro de 1907, imediatamente após a aprovação da primeira lei sindical, o presidente Affonso Penna sancionou o Decreto nº 1.641, que providenciava "a expulsão de estrangeiros do território nacional". Poderiam ser banidos aqueles que comprometessem a segurança ou a tranqüilidade pública e, também, os condenados em tribunais estrangeiros por crimes ou delitos de natureza comum.

Em janeiro de 1921, o presidente Epitácio Pessoa aprovou os Decretos 4.247 e 4.269. O primeiro impunha controles à entrada de estrangeiros considerados perniciosos à ordem pública e nocivos à segurança nacional. O segundo, conforme dispunha a ementa, regulava a "repressão ao anarquismo".

Qualificava-se como anarquismo "provocar diretamente, por escrito ou qualquer outro meio de publicidade, ou verbalmente, em reuniões realizadas nas ruas, nos teatros, clubes, sedes de associações, ou quaisquer lugares públicos, ou franqueados ao público, a prática de crimes tais como dano, depredação, incêndio, homicídio, com o fim de subverter a atual organização social".

As penalidades variavam da prisão celular por seis meses a quatro anos e, nos casos mais graves, autorizava-se o fechamento de associações, sindicatos e sociedades civis, com o exílio dos acusados.

Coube a anarquistas, comunistas, socialistas, da integridade de J. Mota Assunção, Gigi Damiani, Neno Vasco, Oreste Ristori, Edgard Leuenroth, Astrojildo Pereira, a tarefa de estimular a fundação das primeiras organizações proletárias no Brasil. Traziam, dos países de origem, ideais libertários e de sindicalismo revolucionário, inspirados em Bakunin, Kropotkin, Proudhon, Faure, Malatesta, Ferrer.

Quem tiver interesse em conhecer o papel desempenhado pelos anarquistas na criação das entidades sindicais deve consultar as obras de John W. Foster Dulles, Everardo Dias e Paulo Sérgio Pinheiro sobre as lutas sociais travadas, no Brasil, até o início da década de 1930.

Inimigos do Estado, utópicos, radicais, moralistas, anticlericais, dotados de invulgar coragem, os anarquistas - como os antigos socialistas e comunistas - sonhavam com uma sociedade justa, em que todos vivessem de forma decente, livre e digna.

Positivista, estancieiro e caudilho, adversário de todas as variantes esquerdistas, Getúlio Vargas assumiu a Presidência da República em novembro de 1930, comprometido com a idéia da domesticação dos movimentos sociais e do sindicalismo emergente, tarefa iniciada mediante a criação do Ministério do Trabalho. Passo a passo, a liberdade de organização foi sendo estrangulada e substituída pelo modelo corporativo-fascista, tributário dos interesses do Estado. Dele aflorou a figura do pelego, dirigente desprovido de coluna vertebral, submisso às solicitações patronais, vassalo do governo e mantido pelo Imposto Sindical.

A Constituição de 1988 iniciou, mas não concluiu o desmonte da estrutura fascista criada pelo Estado Novo. Ao invés de modelo democrático, sofreu a inseminação de uma espécie corrompida de anarcossindicalismo, caracterizado pela proliferação de entidades artificiais, usadas como balcões de negócios e rampas de acesso a partidos políticos.

A palavra anarquia significa sistema social baseado na absoluta igualdade entre os indivíduos, tendo como aspiração o desaparecimento do poder de coação, inseparável do ordenamento jurídico. No sentido pejorativo e vulgar, porém, o termo traduz um quadro de desordem e indisciplina, pela ausência de lei ou omissão das autoridades.

Na esfera sindical, regredimos de fases em que o sindicalismo era levado a sério para o peleguismo e a anarquia, parteiros de entidades cujos objetivos nada têm que ver com os trabalhadores e os interesses nacionais.

Ante o perigo de ser tido como patrocinador de negociatas envolvendo registros e bases territoriais, o Ministério do Trabalho pensou em reagir, com a aprovação de portaria disciplinadora de ambas as matérias. Como se sabe, porém, portaria é, por definição, "o instrumento pelo qual ministros, secretários de governo, ou outras autoridades, expedem instruções sobre a organização e o funcionamento de serviços e praticam outros atos de sua competência". O ato em causa extravasou os limites das atribuições ministeriais, como deixou patente, em artigo publicado pela revista Trabalho, o desembargador José Carlos Arouca, do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP).

O governo pensa em resolver o problema, que aflige empregados e empregadores, os quais já não sabem quem os representa, com quem dialogar, negociar e para quem recolher a Contribuição Sindical obrigatória, tantas se tornaram as invasões de categorias profissionais e de empresas, praticadas por entidades recém-nascidas, nebulosas e dirigidas por pessoas obscuras.

Ensina a Bíblia, contudo, que não se deve coser tecido novo em roupa velha, ou guardar vinho fresco em tonéis envelhecidos. A estrutura sindical herdada do Estado Novo não comporta reforma, e os problemas que apresenta jamais alcançarão solução por meio de portarias.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva perde excelente oportunidade de enriquecer a biografia ao consentir que a estrutura sindical sobreviva cambaleante e corrupta, sob a direção - salvo as exceções de praxe - de notórios e vitalícios pelegos.

Almir Pazzianotto Pinto é ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), aposentado

A chama acesa da esperança


Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL

O GOVERNO, DESTA VEZ, não pode ser acusado de leviandade no pacote de reforma política encaminhado ao Congresso, depois de seis anos e quase nove meses de estudos profundos, longa meditação, infindáveis debates internos e sigilosas consultas aos diversos setores da sociedade. O que pingou na ansiedade dos parlamentares não vai além de algumas gotas que não chegaram a regar a expectativa de ardentes patriotas, com os olhos vidrados no futuro do país.

O inevitável azedume da malícia dá guarida a suspeita de que o presidente Lula nas suas meditações sobre o amanhã, com a objetividade e a argúcia do estadista que o mundo reconhece, imagina o país nos quatro anos da sua sucessora, a ministra Dilma Rousseff, não apenas escolhida pelo dono do PT, mas na pré-campanha sob a batuta do chefe.

E a reforma política entregue ao presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) tem as medidas exatas da ministra-candidata Dilma Rousseff, chefe do Gabinete Civil.

Mas, onde o carro enguiça é no atoleiro dos interesses imediatos e contraditórios. Da reforma para tapar a boca dos críticos e a lengalenga da anêmica oposição, à beira de um desastre eleitoral desqualificante nas eleições do próximo dia 5 de outubro, sobrou a polêmica do voto em lista para deputados federais e estaduais e vereadores.

Trata-se de uma trampa marota que só interessa aos donos dos partidos e que manipulam a elaboração das listas de candidatos, garantindo as vagas para os que têm prestígio. O quociente eleitoral definirá o número de vagas. O eleitor não votará no candidato, mas no partido e serão agraciados com os quatro anos de mandato segundo a lista partidária.

Trata-se de uma manobra sem a menor possibilidade de ser aprovada com as exigências de quorum de emenda constitucional. E se enche o olho da turma que manda nos partidos, morre na praia do baixo clero que sabe fazer as contas do seu interesse. O governo de perdulária gastança propõe abrir o cofre para o financiamento público de campanha. E que é uma medida moralizadora, mas inviável. Falando sério. Passou a hora da reforma política pois o governo jamais se interessou pela crise moral que corrói o Legislativo. Contribui para desmoralizar o Congresso, trancando a pauta com a enxurrada de medidas provisórias. Cerra os olhos, sussurra a desculpa de que não quer arranhar a independência dos poderes para justificar sua indolência e seu desdém pelas mazelas de um Congresso que não se dá ao respeito.

Por aí, o presidente Lula avança em campo minado. É claro que a doença do Legislativo é como uma lepra que se alastra e aumenta a cada ano no tecido gangrenado das mordomias, das vantagens, dos benefícios que transformaram o mandato conferido pelo voto do povo em um dos melhores empregos do mundo. A soma de múltiplas parcelas vai além dos R$ 100 mil mensais para uma semana estafante de três dias úteis.

E é por isso que soa em falso as justificativas do presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), de que as prioridades das urgências do Congresso são a "alteração do trâmite das medidas provisórias, a reforma tributária". Mas, ressalva, "se houver espaço não há nenhum problema em retomarmos a votação da reforma política".

E não há mesmo. Entra ano, sai ano e a reforma política é debatida em seminários acadêmicos, discutida por especialistas na imprensa, tema de debate universitário e, lá uma vez ou outra, chega à tribuna parlamentar em acalorados debates e severas críticas pela indiferença do governo.

Os parlamentares têm coisas mais urgentes e tratar. À frente da fila o problema criado pela intromissão do Supremo Tribunal Federal (STF) que derrubou o nepotismo, uma das prendas mais estimadas do mandato parlamentar que garantia a distribuição em empregos e sinecuras pela parentela, de olho no prêmio melhor que bilhete premiado.

Foram duas pancadas na moleira: além do desemprego de filhos, noras, tios, primos do chefe da família e da esposa, a impopularidade em plena campanha eleitoral com a ultrapassagem pela toga.

Não é um caso perdido. Daqui até 2010, quando as urnas eletrônicas decidirão a sorte da ministra-candidata Dilma Rousseff e do candidato ou dos candidatos da oposição, dos governadores, senadores, deputados federais e estaduais, muita coisa vai mudar.

É o que mantém acesa a chama da esperança.

A "onda vermelha", enfim

Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Profecia nunca autocumprida, a "onda vermelha" petista tem chances de vingar na eleição de 5 de outubro.

Em 2000, em meio à crise do já moribundo governo FHC, os petistas pensavam em se esbaldar. Elegeram prefeitos em 187 cidades. Faturaram a jóia da coroa, São Paulo, mas estacionaram muito atrás das siglas tradicionais quando se comparava quem tinha mais cidades governadas à época -eram 5.559 municípios; hoje são 5.564.

Em 2004, a derrota paulistana de Marta Suplicy e o ainda titubeante governo Lula acabaram impedindo um deslanche petista. Foi um avanço maiúsculo, de 119%, com 411 prefeitos eleitos.

Mas a previsão petista de vencer em 800 cidades estragou a festa.

Agora, a história é outra. Previsões modestas dos petistas apontam para 40% de aumento no número de prefeitos. Ou seja, acham que vão sair dos 411 em 2004 para algo perto de 570, no mínimo.

O percentual deve ser superior no Nordeste. Estados como a Bahia serão palco de um fenômeno até agora raro: petistas governando vários pequenos municípios. "É isso que tem deixado a oposição agitada no Congresso. Tem uma "onda vermelha" nas ruas", diz o senador petista por São Paulo Aloizio Mercadante, dando nome ao fato.

Como previsões eleitorais são pouco recomendáveis -como dizem o políticos, o "problema do vaticínio é que depende do futuro"-, melhor esperar para ver. Mas há elementos a favor dos petistas.

A economia está muito melhor do que em 2004. Lula é idolatrado no Nordeste e nas regiões mais pobres do país. E, incrível, não há nenhum escândalo novo na praça.

A se confirmar o cenário, o PT terá o mesmo tamanho de PMDB, PSDB e Democratas nas cidades brasileiras. Ao mesmo tempo, todas essas siglas cada vez mais se parecerão umas com as outras.

Modesto da Silveira: "Não se deve anistiar torturadores e golpistas"


Diógenes Botelho
DEU NO PORTAL DO PPS

Deputado Federal que encaminhou o projeto que deu origem a Lei da Anistia, Modesto da Silveira diz que homicídios, estupros e roubos cometidos por agentes do governo militar precisam ser tratados como crime comum. "Não se deve anistiar torturadores e golpistas", defende Silveira em entrevista ao Portal do PPS.


De engraxate, ajudante de carro de boi e guia de cego até deputado federal da oposição durante a ditadura militar, tempo em que se notabilizou como um dos maiores advogados do país na área de direitos humanos. A vida do mineiro Modesto da Silveira é por si só um exemplo de resistência. Em passagem por Brasília para participar de sessão solene da Câmara em homenagem aos 29 anos da Lei da Anistia, encaminhada por ele no Congresso, conversou com o Portal do PPS. Aos 81 anos, segue firme em sua luta pelos direitos humanos e pela radicalidade democrática. Não tem receio em entrar em assuntos polêmicos, como a revisão da Lei da Anistia. Para ele, homicídios, estupros e roubos cometidos por agentes do governo militar precisam ser tratados como crime comum. "Não se deve anistiar torturadores e golpistas", defende. Na entrevista, falou ainda sobre sua experiência como advogado de presos políticos, da perseguição que sofreu da ditadura, de um grupo golpista que ainda resiste no Exército brasileiro, entre outros assuntos. Confira.

Portal do PPS - Qual era o clima daquele 28 de agosto de 1979, quando o Congresso aprovou a Lei da Anistia?

Modesto da Silveira - Eu era deputado e fui o encaminhador da lei, em nome de Ulysses Guimarães (ex-presindete do MDB/PMDB), na votação do plenário. Tinha saído do hospital, estava doente, e vim em cadeira de rodas tentar votar. Quando cheguei, o Ulysses olhou e disse: Modesto, você agüenta subir as escadinhas (para a tribuna). Eu disse: Claro, agüento, eu vou me arrastando, mas vou. No que ele respondeu: Então, encaminha a lei para a gente. Fiz o encaminhamento, justifiquei que a lei não era a que nós desejávamos. Nós queríamos a anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos políticos e não para os perseguidores políticos. Mas, como a ditadura ainda durou muitos anos (até 1985), eles (os militares e seus sustentadores políticos) àquela altura tinham condição de impor o tipo de anistia em que concordariam. Até porque o Congresso Nacional era composto de muitos biônicos. Tanto que nessa ocasião, em 1978, a oposição, que era o MDB, teve cerca de 5 milhões de votos a mais do que a ditadura (representada pela Arena), e no entanto eles tinham o maior número de representantes porque havia os biônicos eleitos. Havia também aquele processo semibiônico de fortalecer os estados onde a ditadura era forte. E nos estados onde ela era fraca, calcularam matematicamente, e deu para eles fazerem uma maioria artificial. Então, ou nós aceitávamos aquela (Lei da Anistia) ali, negociando, ou não teríamos anistia nenhuma. E ela já foi um passo para as anistias posteriores, o que inclusive acabou redundando no artigo 8° do ato das disposições constitucionais transitórias (da Constituição de 1988, que estabeleceu o pagamento de indenizações e reparação de direitos aos atingidos pela ditadura). E já naquela primeira anistia foi possível tirar muita gente da cadeia e receber os milhares de exilados que estavam em toda parte do mundo, sobretudo na Europa.

Portal – Como foram os bastidores dessa negociação?

Silveira - Foi uma negociação difícil, muito difícil. Tentávamos ampliar e eles não concediam. Era esta ou não era nenhuma. Foi o máximo conseguido naquele momento.

Portal - Na sua opinião, é válida, hoje, a rediscussão da Lei da Anistia no Brasil, como alguns setores políticos estão propondo?

Silveira -
Para a anistia, a tese que eu acho mais aconselhável e interessante, e que não é de hoje, é de muitos anos, é a que se tenta ganhar na ONU. É aquela que eles acham o seguinte: anistia sim, mas anistia é para aqueles que são vítimas de tiranias e ditaduras em geral. Esses devem ser anistiados. Agora, os fabricantes de ditaduras e tiranias não devem receber anistia nenhuma. Porque senão você estará estimulando novos golpes para o futuro, sobretudo em países como o Brasil e o Chile, onde eles (os militares) se auto-anistiaram previamente pelos crimes que já tinham cometido e que ainda iriam cometer no futuro. Isso é uma coisa inédita e inaceitável pela humanidade. Imagine você, a lei era de 79 e a ditadura foi até 85. E os que vinham praticando crimes, torturando, estuprando, furtando e se corrompendo continuaram fazendo as mesmas coisas. É um privilegium, como diriam os romanos. Ninguém pode fazer lei em causa própria. E eles fizeram lei em causa própria para o passado, o presente e o futuro. O passado, pelos crimes que cometeram, e o presente e o futuro pelos crimes que estão ou irão cometer ainda. Isso é realmente uma teratologia (anomalia) jurídica. É um absurdo que foi cometido. A tese saudável hoje, que você vê elementos da ONU fazendo pronunciamentos, é aquela que anistia vítimas de ditaduras, de autoritarismos. Não se anistia autoritários, ditadores. E por quê? Porque eles serão estimulados a de novo derrubar outras democracias, estabelecendo ditaduras.

Portal - E por que apostar na tese da ONU?

Silveira - Porque ela tem a força moral e jurídica do mundo inteiro. Das 194 nações soberanas, você tem 192 que pertencem à ONU. Portanto, o que é decidido pela ONU pode se tornar lei praticamente no mundo inteiro.


Portal - Então, na sua opinião, ainda é possível, hoje, punir os agentes da ditadura brasileira? Fazer o que, segundo as suas próprias palavras, não foi possível fazer em 1979?

Silveira -
Se eles não forem punidos aqui, serão punidos lá fora. Um juiz espanhol e um italiano decretaram a prisão e o Pinochet (ex-ditador chileno Augusto Pinochet), o maior dos torturadores, foi preso na Inglaterra por um ano e tanto e chegou ao seu país e continuou respondendo processo político. Pois bem, hoje em dia se esses mesmos torturadores brasileiros ou de qualquer ditadura forem a Europa, poderão ser presos lá. Eles hoje estão prisioneiros de algum modo no Brasil porque estão limitados ao território brasileiro. Se eles saírem do Brasil, qualquer cidadão de outro país que eles visitem pode denunciar. Eles gostam de ir para Europa, principalmente, Espanha, França, Itália, etc... Bateu lá, o nome deles está lá e eles serão presos. Então, eles não podem ir a esses lugares. Já estão com a liberdade limitada, o que é uma prisão parcial. E a tese da ONU me parece uma tese saudável para você estabelecer democracias e procurar aperfeiçoá-las. E nunca permitir que se derrube uma democracia para estabelecer uma ditadura.

Portal - Como foi atuar como advogado de presos políticos em uma época dura, como foi a ditadura militar no Brasil?

Silveira - Eu fui advogado de todo o tipo de categoria profissional. Estudantes, crianças, menores, profissionais, parlamentares e até gente que acabou sendo ministro. E muitos advogados, fui advogado de muitos advogados. Todo mundo sofria. Eu mesmo, por essa ousadia toda, também fui sequestrado pelo DOI-CODI do Rio de Janeiro. Naquela altura não ousaram me marcar fisicamente porque eu estava conhecido até no exterior. Mas procuraram me marcar o máximo psicologicamente nos setores de tortura do DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita.

Portal - Qual a importância de se relembrar, sempre, toda essa história?

Silveira - Por isso, comemorações como esta do Congresso (sobre os 29 anos da anistia) são importantes para ajudar a passar essa realidade, esse resgate para as jovens gerações. Para que elas tomem pavor de qualquer forma de autoritarismo, de tirania. Lute contra isso e ganhe consciência de que a democracia, por mais deformada que esteja, é infinitamente melhor do que a situação que passamos durante todo o período de ditadura. Mesmo com as deformações pelo poder econômico, pelas elites econômicas que deformam o processo democrático. Na ditadura, foram presos, sofreram, direta ou indiretamente, centenas de milhares de pessoas. Isso as que resistiram. As que não resistiram morreram, ou se exilaram ou foram banidas do país, e muitas delas não quiseram mais voltar porque têm péssimas lembranças, têm medo que pode acontecer outra vez.

Portal - Outra vez?

Silveira - Porque existem certos militares irresponsáveis que fazem ameaças ora veladas, ora abertas.

Portal - Mas o senhor acredita que há mesmo o risco de um novo golpe militar no país?

Silveira - Sobre isso eu lhe diria o seguinte. Eu estou convencido que estão blefando. Primeiro: o mundo de hoje não está em descenso ditatorial. Está em ascenso democrático. Segundo: aqueles que praticaram isso (deram o golpe militar em 1964) eram uma minoria das Forças Armadas com suporte de uma minoria civil. Então, hoje, eles não têm condição nenhuma disso. E se o fizerem vão receber o repúdio da população brasileira e certamente uma ação diferente (daquela de 1964). Por outro lado, o isolamento completo de um mundo que tende a reprimir sempre as ditaduras. Veja bem: se os próprios militares que são democratas, obedientes à lei e ao juramento que fazem isolarem esse grupelho, as Forças Armadas sairão íntegras. Porque um número muito maior foi vítima. Os militares golpistas eram pequenos grupos, fortemente armados e muito bem organizados.

Portal - E os arquivos da ditadura, que já se transformaram em uma "brincadeira" de pique-esconde. Uma hora foram queimados, depois aparece documento...

Silveira - A abertura dos arquivos é outro clamor público. Todo mundo precisa dos arquivos, até porque há o direito a habeas-data, sobretudo o que se refere a si mesmo. E a pessoa precisa não só para a sua história pessoal ou justificação junto a filhos, netos, familiares, mas até para tentar ter uma anistia (ou reparação). E os arquivos secretos não permitem que você corrija um erro passado. Eles todos (militares) se auto-anistiaram. Quem era capitão virou coronel ou general e continua aí infiltrado no poder. Vocês se lembram do depoimento que aquela deputada Beth Mendes fez daquele coronel, hoje general, Brilhante Ustra, que estava implantado na embaixada uruguaia como adido. E ela o reconheceu como um de seus torturadores, chefe de tortura. Há coisas assim flagrantes, chocantes... Se as Forças Armadas entenderem, pagarão muito menos se isolarem esse grupo de torturadores do que dando cobertura a eles. Porque isso não é uma questão de solidariedade de armas ou de classe, é uma questão de justiça, de fidelidade e honradez. Por que é que um militar hoje que não cometeu nenhum delito, que é apenas um vocacionado para as Forças Armadas, estará dando cobertura para assassinos, torturadores e estupradores? Isolando esses criminosos, eles estariam resgatando a imagem das Forças Armadas.

Portal - Mas o senhor é a favor do julgamento, no Brasil, dos criminosos da ditadura?

Silveira - Eles são considerados criminosos de crimes comuns. Não me consta que qualquer estupro, tortura, furto, e tudo isso que aconteceu por parte deles, seja crime político. Isso é crime comum. E onde já se viu você se dar uma lei pela qual você se perdoe de todos os crimes passados, presentes e futuros. A situação é essa, eu vejo assim. Creio que a tese que está percorrendo os gabinetes da ONU é muito correta. Não se deve anistiar torturadores e golpistas porque senão as democracias do mundo desaparecem. Todos aqueles que acham que têm um poderzinho ficam dispostos a golpear.

Portal - O ministro da Justiça, Tarso Genro, levantou essa questão. Mas o presidente Lula resolveu mandar parar o assunto...

Silveira -
Posso dar um palpite. Todo governador, prefeito e presidente da República não gosta de crise, quer governar tranqüilo. Então, tenta botar panos quentes para naturalmente governar mais tranqüilo, porque o governo vai bem economicamente, até socialmente, o prestígio pessoal do presidente é muito grande...Para ele é bom que o país esteja em calma. Mas, eu creio que os ministros que têm essa tese, que é a da ONU, manifestam uma posição moralmente muito segura, muito firme.

Portal - E se o Judiciário for provocado a respeito dessa questão?

Silveira - Olha, essa é uma questão mais de natureza política do que jurídica. São leis políticas, de anistia política, de crime exclusivamente político. E não se diga que haja conexão. Não há conexão nenhuma (entre vítimas e agentes da ditadura) como pretendem da lei (da Anistia). A conexão é quando se trata do mesmo indivíduo. Digamos: dois ou três indivíduos acertam para cometer um assalto, um roubo, um estupro. Esses são crimes conexos, que é um acerto para uma finalidade. Uma finalidade entre os mesmos criminosos. Agora, não se trata de criminoso e vítima. Você não conecta um crime da vítima com o crime do criminoso. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. É preciso punir como o Chile fez, como a Argentina também o fez.


Portal - Ou seja, na sua opinião, a anistia não abrange crimes comuns?

Silveira - Para crime comum, não. Como você vai anistiar um sujeito que foi lá, invadiu sua casa, tomou seu dinheiro, roubou o que quis da casa, sem responsabilidade nenhuma. Levou uma pessoa, estuprou-a, arrebentou-a, até matou-a. É um homicídio como outro qualquer, um estupro como outro qualquer, um furto ou roubo como outro qualquer. Isso é crime comum, não é crime político.