domingo, 31 de agosto de 2008

Ruim com eles, pior sem eles


Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Os partidos nunca conseguiram se consolidar no Brasil por causa da interferência autoritária do Executivo


É senso comum no Brasil atribuir as mazelas da política nacional aos partidos. Agora mesmo, na justificativa da reforma partidária encaminhada ao Congresso, o Palácio do Planalto responsabiliza o sistema partidário pelo fisiologismo e clientelismo que têm contaminado suas relações com o parlamento. Direciona suas baterias aos pequenos partidos, que pretende abater, como se os grandes não tivessem nenhuma responsabilidade pelo ocorre. Não é bem assim. O escândalo do Orçamento, durante o governo Itamar, foi protagonizado pelo PMDB. E o “mensalão”, no primeiro mandato de Lula, uma megatrapalhada do PT. Grandes partidos sobreviveram às crises. São os eixos de sustentação do governo Lula e vão muito bem, obrigado.

Criador e criatura

O Brasil já teve vários sistemas partidários, quase todos resultaram da forte interferência do Estado na vida partidária. A Justiça Eleitoral, ao longo dos anos, ajudou a construir um sistema eleitoral cada vez mais eficiente e democrático. Porém, consolidou a sistemática interferência do estatal na vida dos partidos. Constantes mudanças no sistema partidário, desde a monarquia, fragilizaram os partidos e tornaram suas lideranças mais personalistas.

Os partidos no Brasil surgiram na Independência, com o Partido dos Brasileiros liderado por José Bonifácio e o Partido dos Portugueses, alinhado a D. Pedro I. A divergência era óbvia: um queria consolidar a independência; outro, reunificar o império português. O fato de o Brasil ser uma monarquia fortalecia o projeto de reunificação, contradição que acabou provocando a dissolução da Constituinte de 1823 e, mais tarde, a abdicação de Pedro I, em 1831.

A partir de 1935, inspirados no parlamentarismo inglês, surgiram os partidos Liberal (luzias) e Conservador (saquaremas). Foram às armas a partir de 1842, quando a Revolução Liberal de Tobias de Aguiar, em São Paulo, com apoio do ex-regente Diogo Feijó, foi duramente reprimida. Os dois partidos, porém, protagonizaram a “política de conciliação” do Marquês de Paraná, a partir de 1853. Surgiu assim o modo de fazer política das elites brasileiras, cujo eixo é a aliança entre a União e as oligarquias regionais. O governo Lula não foge a esse espírito.

As oligarquias regionais deram forma, com a República, ao fraudulento sistema eleitoral que vigorou até a Revolução de 30. Os partidos eram regionais, com o nome de republicano. Derrotaram a Campanha Civilista de Rui Barbosa, em 1915; a Reação Republicana de Nilo Peçanha, em 1921; e a Aliança Liberal, em 1929, quando o mineiro Antônio Carlos de Andrade rompeu com presidente Washington Luiz por causa da candidatura do paulista Júlio Prestes.

Com a revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, os partidos republicanos desapareceram. Surgiram diversos partidos regionais, programáticos ou corporativos na Constituinte de 1934, quase todos inexpressivos. As novidades eram a Aliança Libertadora Nacional de Luiz Carlos Prestes, a Ação Integralista de Plínio Salgado e a União Democrática Nacional de Armando Sales, todos contra Vargas, que implantou o Estado Novo em 1937. O que houve depois é mais conhecido.

Cinismo oficial

Na Constituinte de 1946, surgiram os partidos que protagonizaram a crise de 1964:PSD, UDN, PTB, PSP, PR, PSB, PDC, PCB. Todos foram extintos após o golpe militar. Por ato institucional, foram criados a Arena e o MDB, em 1965. Os dois partidos foram obrigados a mudar de nome pelos militares em 1989 (PDS e PMDB, respectivamente) e surgiram o PDT, o PT e o PTB. O presidente José Sarney, em 1985, legalizou os partidos comunistas e liberou a formação de partidos para a Constituinte de 1988. Hoje, há cerca de 30 partidos em atividade no país.

Os partidos nunca conseguiram se consolidar no Brasil por causa da interferência autoritária do Executivo. Anunciada com o propósito de racionalidade e enxugar o quadro partidário, a reforma proposta pelo presidente Lula não é garantia de que será diferente. Seu objetivo de fundo é continuísta: favorecer a formação de uma nova coligação governista para a sucessão do presidente Lula em 2010. Por isso, a proposta de fidelidade partidária é um primor de cinismo oficial. Estabelece uma proibição e cria quatro regras para o “troca-troca” de partido com data marcada, cujo combustível é o fisiologismo e o clientelismo oficiais.

Polícia de boa vizinhança


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

50 anos de idade, quase todos da fase adulta dedicados à defesa dos direitos humanos, o secretário nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Ricardo Balestreri, vai logo avisando: “Não sou um romântico”.

Faz a ressalva meio na defensiva, a título de introdução à análise sobre as razões pelas quais, na sua visão de estudioso, consultor e agora executivo da área de segurança pública, os governos do Brasil pós-redemocratização não conseguem dar um passo adiante no combate à criminalidade.

São quase que meros espectadores inertes do agravamento da situação. Isso embora a insegurança esteja no topo da lista das preocupações da população e, nem Fernando Henrique Cardoso nem Luiz Inácio da Silva - para citar apenas os dois eleitos e com mandatos em ambiente de normalidade institucional - possam ser acusados de insensibilidade política e social.

Cuidaram da economia como quem amamenta um bebê a inspirar cuidados permanentes. Sabem que, se tivessem dado um jeito pelo menos na contenção da violência, seriam sérios candidatos à consagração unânime.

Se não é alienação, indiferença ou desumanidade, qual é o obstáculo? Nos dois grupos, antagônicos no campo partidário, a dúvida perpassa, mas não produz uma resposta.

Ricardo Balestreri não concorda com uma tentativa de explicação, segundo a qual a geração oriunda da esquerda quer distância de assuntos ligados à repressão. Por motivos óbvios.

O secretário nacional de Segurança acha simplista o raciocínio, embora sustente sua análise a partir de uma premissa relacionada aos procedimentos do governo autoritário. “A ditadura afastou a polícia do povo e a democracia ainda não devolveu.”

E por quê? “Porque nos países premidos pelo senso comum, a discussão fica rasteira, muita gente palpita, poucos entendem e, como a violência causa sofrimento e fadiga, o cidadão cobra com emoção, o poder público procura corresponder também com emocionalismo que, mal conselheiro, não resolve nada.”

Nesse ambiente, aponta o secretário, acaba prevalecendo a lógica da eliminação: trancafiar todo mundo, matar a maioria.

“Prendendo todos conseguiremos, no máximo, aumentar o contingente de doutores no crime e, matando, não resolvemos porque no dia seguinte o bandido é substituído por outro convocado no exército de reserva das organizações de delinqüências, em geral mais jovem e mais cruel. Se matar fosse a solução, o Brasil, com seu enorme índice de letalidade de criminosos, seria o país mais seguro do mundo.”

Portanto, na opinião dele, a primeira tarefa é alterar procedimentos. “A lógica do Estado tem de ser a da racionalidade, do conhecimento, da informação, da repressão qualificada.”

Antes de prosseguir na receita, segundo ele em parte já em execução pelo Ministério da Justiça, Balestreri esclarece uma questão: acha um equívoco falar em poder paralelo do crime. “Isso não existe, assim como não é na favela que mora o crime organizado.”

O poder do crime, hoje, diz, não é paralelo, é “transversal” ao Estado, perpassa todas as instâncias oficiais, “freqüenta os melhores ambientes e, por isso, é tão difícil de combater”.

O secretário remexe na ferida: “Por que no regime militar o Estado conseguia combater quem via como inimigo e hoje não consegue”? Contaminação decorrente de corrupção.

Mas não só e aqui chegamos onde ele localiza o verdadeiro crime organizado. “Nas altas esferas do poder econômico e político. A raiz está em cima. Os delinqüentes, ainda que de porte, são empregados dessa gente que não põe diretamente a mão na lama, mas está à frente de uma indústria poderosa que hoje representa um quarto da economia mundial.”

Então, estamos perdidos, sem solução?

Ricardo Balestreri não confunde dificuldade com rendição. Do povo “de cima” acha que a Polícia Federal (“com todas as imperfeições”) começou a cuidar quando se voltou primordialmente para os crimes de colarinho-branco. Este é um patamar.

No outro, da esfera do dia-a-dia, que chama de “crime ordinário” - o assalto, o estupro, o homicídio, a ação de gangues - a solução por ele sugerida é a reforma das polícias, mas na direção oposta à da tese de aceitação geral sobre a unificação das polícias civil e militar.

“Seria o mesmo que obrigar um casal em desarmonia a viver junto, o risco de se matarem é grande.” Na opinião dele, cada uma das polícias deveria ter autonomia para fazer o trabalho completo de prevenção, investigação e prisão.

“Do jeito como está hoje temos duas meias polícias e não temos nenhuma. A militar trabalha no modelo ultrapassado do radiopatrulhamento em que a polícia passa mas não fica e não está presente quando o cidadão precisa, e a civil é um cartório de ocorrências mortas”, diz o secretário.

Há esperança de mudança em breve?

“Vou defender que o governo Lula não termine sem apresentá-la.”

Quando? “A partir de 2009 seria bom.”

De fato. Basta convencer suas excelências a prestarem atenção em alguma coisa que não seja a sucessão de Lula.

O troco republicano


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

ST. PAUL, Mineápolis. A convenção republicana começa amanhã com as pesquisas já mostrando uma retomada da liderança do candidato democrata, Barack Obama, como é tradição acontecer. A primeira conta a fazer é de que tamanho será a subida do democrata depois de sua convenção. Há dois exemplos célebres no seu partido: o ex-presidente Bill Clinton ganhou 16 pontos percentuais após a convenção em 1992, e Al Gore, em 2000, saiu de uma derrota por sete pontos percentuais para uma vitória de dez pontos sobre George Bush. No primeiro caso, Clinton venceu Bush pai por boa margem e Al Gore foi derrotado por Bush filho no colégio eleitoral numa decisão polêmica, embora tenha vencido no voto popular. São parâmetros que podem servir de base para uma análise do potencial de Barack Obama junto ao eleitorado.

A partir de agora, todos os holofotes estarão voltados para os republicanos, e é a primeira vez em 50 anos que os dois partidos fazem convenções logo em seguida uma da outra. Este detalhe pode fazer com que a dança dos números nas pesquisas eleitorais continue indefinida, com os republicanos neutralizando a dianteira dos democratas após as convenções.

A corrida presidencial está tão apertada que os dois candidatos estão buscando eleitores no campo adversário. O democrata Barack Obama salientou, em seu discurso, em Denver, o pedido de união entre democratas, republicanos e independentes para dar um basta nos oito anos de gestão Bush.

Já a vice de McCain, a governadora do Alasca, Sarah Palin, investiu diretamente no eleitorado feminino democrata, na expectativa de ganhar votos entre os ainda insatisfeitos com a derrota da senadora Hillary Clinton.

Para o cientista politico Silvério Zebral, ligado ao Partido Republicano, o problema na estratégia do partido é que a identificação construída em favor de McCain é do tipo negativa, feita através da "desconstrução" de Obama, baseada não nos temas de campanha, mas nos atributos negativos e incapacidades do candidato democrata.

É uma estratégia que pode ser vencedora, mas Zebral teme que quanto mais a intenção de voto em McCain basear-se sobre uma rejeição do eleitorado ao "homem" Obama, "maior será o desafio de McCain em emocionar positivamente os indecisos e oferecer-lhe razões "positivas" sobre si próprio para levá-los às urnas e atraí-los para o campo conservador".

Há em política uma verdade estabelecida que esta campanha está desmentindo, por enquanto: é mais importante "de quem se fala" ou "do que se fala", do que "o que se fala". "A novidade desta eleição - e o quebra-cabeça que entusiasma os analistas - é que a agenda republicana tem sido o próprio "Barack Obama". E na batalha de imposição de agendas - ao menos até agora - esta "estranha agenda republicana" - Obama, o incapaz, o inadequado, o duvidoso - vem saindo vitoriosa", comenta Silvério Zebral.

Outro analista especialista em campanhas eleitorais, o marqueteiro americano Dick Morris, acha que o candidato republicano John McCain tem alguns desafios pela frente, o principal deles o de convencer o eleitorado de que o seu eventual primeiro mandato não será o terceiro de Bush, como Obama colocou no seu discurso de aceitação.

Para tanto, McCain teria que acentuar seu lado republicano liberal, que o fez ficar contra a tortura aos prisioneiros de guerra e, em outros temas, ter se posicionado junto com os democratas como em projetos de lei de reforma do financiamento de campanha, por ética na política e legislação mais flexível para os imigrantes.

O dilema de McCain é semelhante ao de Obama. Ele venceu as prévias republicanas por ser independente e se distanciar da maioria das críticas que são feitas ao governo Bush, com exceção da guerra no Iraque.

Mas, depois de confirmado candidato, aproximou-se da Casa Branca e teve que fazer concessões à ala mais radical do partido, e a escolha da vice Sarah Palin é um exemplo disso. O democrata Barack Obama, por sua vez, teve que se afastar da imagem de outsider de Washington para conseguir o apoio da cúpula partidária, e a escolha do vice Joe Biden é sintoma disso.

Também teve que aceitar a exigência dos governadores democratas para que se ativesse a questões do dia-a-dia do eleitor médio, em vez de manter a campanha baseada apenas na esperança de mudança.

O segundo desafio que Dick Morris vê diante de McCain é a desconstrução das propostas de Obama de cortar os impostos de 95% das famílias, e estender a todos os americanos um seguro de saúde possível de pagar, além de investir US$150 bilhões para tornar o país independente dos países árabes em material de energia.

O próprio Obama admitiu no discurso de Denver que precisará buscar recursos fazendo uma revisão de programas já existentes que sejam ineficientes, para poder cumprir as promessas sem desequilibrar mais ainda as finanças do país.

Uma conseqüência da nova política de impostos de Obama, que penalizaria os mais ricos para poder cortar os impostos da classe média, seria, segundo os conservadores, o desestímulo ao investimento produtivo, impedindo que uma outra promessa, a de aprofundar o conhecimento científico e tecnológico estratégico, seja realizada.

Ontem mesmo já apareceram análises de institutos independentes dizendo que, mesmo cortando programas ineficientes e fechando brechas na legislação que permitem às empresas pagar menos impostos, o programa de corte de impostos de Obama custará US$130 bilhões por ano, e o máximo que se conseguirá economizar serão US$80 bilhões.

Da arte de comparar


Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE
)

Cotejo inevitável: impossível refletir sobre qualquer fenômeno ou fato político em qualquer parte do mundo sem utilizar como referência o grande espetáculo estreado na última segunda em Denver, Colorado, com reprise marcada para a próxima, em Minneapolis, Minnesota.

Uma semana depois do feérico show de disciplina e rigor exibido na Olimpíada de Pequim, o processo democrático americano exibe-se diante da platéia mundial com igual esmero, porém acrescido dos ingredientes da sua cultura em dosagens máximas: sonho, retórica, profissionalismo, civismo, ingenuidade, fervor, música. Os chineses, tão artistas, contentaram-se em oferecer lantejoulas tecnológicas. Os americanos, tão materialistas e supostamente tão decadentes, entregaram grandes quantidades de emoção.

Por uma série de fatores, alguns até casuais, o momento americano ganhou uma dimensão palpitante, prenhe de significados e remissões. Ao aceitar sua indicação como candidato à presidência dos EUA, Barack Obama lembrou Franklin Roosevelt e John Kennedy e foi catapultado para o plano da história. Pode não ganhar a eleição em novembro, mas garantiu o seu lugar na galeria de heróis que construíram o American dream, sonho americano.

Ao longo da jornada das primárias e agora na convenção do Partido Democrata ficou evidente para nós que o carisma de políticos enfezados cuspindo perdigotos para todos os lados é completamente diferente do carisma refinado, penetrante, capaz de atuar nas esferas da razão e do sentimento e nelas permanecer. Carisma é dom e não afetação, independe da maquiagem, gravatas, covinhas no rosto, pode ser potencializado por estrategistas e marqueteiros, mas precisa ser traduzido em energia. Energia capaz de levar seus ouvintes e interlocutores a acreditar que vivem uma situação grandiosa, estelar.

Também no Brasil participamos de uma disputa eleitoral, preliminar é verdade, mas destinada a influir decisivamente na próxima quando será escolhido o sucessor do presidente Lula. Também vivemos um momento especialíssimo, favorecidos por um inédito ciclo de estabilidade e continuidade. Os últimos 15 anos são únicos na história da nossa República, comparados com igual período na vizinha Argentina oferecem um estimulante contraste.

O problema é a nossa incapacidade de enxergar o futuro no presente. Entronizamos o porvir como uma era remota, grandiloqüente – talvez influenciados pelas profecias de Stefan Zweig – sem perceber que o futuro faz-se agora, é hoje.

Convivemos com os pequenos deslizes, aceitamos os ínfimos senões certos de que não terão importância nem influência e passarão despercebidos. Não avaliamos os efeitos da acumulação e da inércia, desconsideramos os efeitos da soma e da multiplicação mesmo quando se trata de microscópicas partículas. A complacência com as pequenas malignidades é capaz de produzir, com incrível rapidez e letalidade, tremendas brechas na estrutura de uma sociedade.

Os EUA saíram da derrota no Vietnã relativamente ilesos, engoliram o orgulho ferido sem avaliar-se, preferiram entregar-se ao pragmatismo. Premiados pela debacle soviética não imaginaram que o retorno do bumerangue seria tão catastrófico. Em apenas oito anos, a vergonhosa vitória eleitoral de George W. Bush, a incompetência na prevenção e combate ao terrorismo, o desapego aos valores morais da democracia e o fundamentalismo religioso converteram a superpotência num império arruinado.

A festa em Denver tem algo de catarse coletiva. We, the People, Nós, o Povo – preâmbulo da Constituição Americana – incorporou-se à proclamação de Obama, “Yes, we can”. “Sim, podemos”. Sempre no plural, carisma é isso.

Num mundo com tantos espelhos é um desperdício não espelhar-se. Aprende-se muito com as comparações, mesmo quando desfavoráveis.

» Alberto Dines é jornalista.

Vagas e vogas da crítica


José Arthur Giannotti
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / + MAIS!

Após a hegemonia de teorias como estruturalismo e marxismo, ciências humanas parecem entrar num período de transição

Daí meu desconforto diante dos que continuam a pensar a história a partir de um único ponto de vista

João Cruz Costa, que ensinou na USP nos anos 1950 e 1960 a fazer filosofia pensando no Brasil, sempre nos alertava sobre as periódicas levas de pensamento que recebíamos de fora, verdadeiros furacões ameaçando afogar as sementes que estavam sendo cultivadas.

Fiel a seu ensino, observo que, desde os meados do século passado, filosofia e ciências humanas sofreram o rolo compressor do estruturalismo, da filosofia analítica, do marxismo althusseriano e gramciano, do habermasianismo. Agora parece que entramos num período de transição, pois não temos hoje paradigmas dominantes.

Sobraram os estudos particulares sem grandes aspirações metodológicas e o esforço dos partidários da Escola de Frankfurt, vaga tendência para a qual todos os gatos são pardos, desde que vistos da óptica da "emancipação". À margem se nota ainda a influência de "letterati", gente de formação em literatura que se projeta no mundo da cultura, principalmente nos interstícios dos meios de comunicação.

Mas não é apenas no nível da recepção das idéias que isso acontece, a história de sua produção também apresenta momentos importantes de solução de continuidade.

De repente, uma idéia, que permanecera à margem do pensamento dominante vem para o centro e satura todo o ambiente. Exemplo clássico foi a aceitação do heliocentrismo. Copérnico, no seu livro de 1543, mostrou que tomar o sol como o centro de nosso universo simplificava enormemente o cálculo dos movimentos dos astros, mas não afirmou a verdade dessa hipótese.

O homem no universo

Mas, quando Galileu introduziu o uso da luneta na observação do céu, isso em 1606, rapidamente os melhores pensadores do século se converteram ao heliocentrismo. É todo um sistema de idéias que desaba, alterando a posição dos seres humanos no universo.

Mas não foi apenas a interpretação de novos fatos que provocou essa comoção, pois só mais tarde é que se armou uma teoria óptica assegurando que a imagem de um satélite de Júpiter não era um efeito produzido pela própria luneta.É toda uma imagem do mundo que se altera.

O caso do marxismo é o inverso, pois ele desaparece como num passe se mágica. No fim do século 19 era aceito por líderes do movimento operário, embora sempre estivesse em competição com o anarquismo. Legitima a Revolução Russa de 1917 e, sob a forma de marxismo-leninismo, passa a dominar os movimentos de esquerda.

Nos anos 1950, Jean-Paul Sartre o coloca como o horizonte intransponível da filosofia contemporânea, e Maurice Merleau-Ponty, filósofo cauteloso, não tem dúvidas ao afirmar que o marxismo não era apenas uma filosofia da história, mas a própria filosofia da história, sendo que renunciar a ele seria cavar o túmulo da razão na história.

Mas nos anos 1980 o marxismo se desmilingüe. Algumas ilhas sobraram no oceano: continua sendo cultivado por alguns historiadores e alguns literatos, mas basta examinar a lista das publicações a partir dessa data para se convencer de que ele ficou à margem das idéias dominantes.

Como explicar esse fenômeno? Obviamente o desmoronamento da União Soviética e das democracias populares o desmoralizou como ideologia legitimando a "ditadura do proletariado", isto é, a fusão do Estado com o partido único, assim como evidenciou a incapacidade de uma economia centralizada para satisfazer as demandas de um capital globalizado tendo por base a tecnologia da informação. Não é à toa que a China pratica hoje um "socialismo de mercado".

Por certo existem outras causas, mas vou me ater apenas ao abandono do princípio que sustentou a afirmação dos dois filósofos franceses: o marxismo confere racionalidade à história porque a emoldura numa única trama.

Em termos grosseiros: o desenvolvimento das forças produtivas teria quebrado o comunismo primitivo, instalado a luta de classes que resultaria na revolução proletária que, por sua vez, emanciparia os seres humanos de suas dilacerações e alienações.

É como se o reino dos fins, que para Kant era o princípio regulador da moral, se encarnasse na própria história, se transformasse num fato revolucionário. Obviamente, estou traçando uma caricatura, pois nem Sartre nem Merleau-Ponty pensaram em termos tão crus. E Marx, como ele mesmo declarava, nunca foi marxista.

Mas a caricatura serve para sublinhar a crença de que as ações humanas poderiam ser enquadradas numa racionalidade dominante, idéia que Sartre continuou a procurar, na "Crítica da Razão Dialética", e da qual Merleau-Ponty começou a duvidar em seus últimos escritos.

Não é possível, dirá ele então, encontrar uma perspectiva capaz de ter uma visão de sobrevôo sobre o mundo e sobre a história. Nem mesmo como princípio regulador, porquanto, sendo o pensamento sempre situado, nunca haverá uma situação que se situe a si mesma. Marx imaginou ser capaz de sair desse impasse, tentando mostrar que a lógica, a racionalidade perversa, do próprio sistema capitalista criaria um ponto de vista teórico e prático, uma crise cujos pólos possuiriam a virtude de encarnar a diferença entre o tudo e o nada.

Com a vitória do tudo, isto é, do proletariado, a totalização da história estaria completa, ou melhor, terminando a pré-história da humanidade e começando a história do ser humano propriamente dita. Mas, quanto mais Marx explicitava a lógica do capital, aprofundava sua crítica da economia política, tanto mais se distanciava desse esquema da totalidade. Nunca conseguiu provar a necessidade racional da crise.

Sob esse aspecto, o próprio Marx teria beirado a eclosão do novo paradigma. Em vez da crise, passam a ter importância as crises, os momentos de reestruturação do capitalismo e a oportunidade de domesticar os mercados. Não é o que hoje está em pauta?

Daí meu desconforto diante daqueles que continuam a pensar a história a partir de um único ponto de vista, aquele da emancipação, por exemplo. Ou ainda aqueles que pensam o socialismo tendo programa definido, quando o próprio Marx ensinou que "comunismo" é uma palavra equívoca, vale dizer, que indica apenas um movimento contrário ao capital, aquelas mudanças permitidas no presente.

Ser socialista passa a significar, então, o esforço de superar a crise do momento, do ponto de vista da liberdade e da justiça social efetivas.

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .

Em pauta, o direito de ser diferente


José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

O STF pode decidir se a diferença é um direito universal ou se há brasileiros de primeira e de segunda

Quando Joênia Batista de Carvalho, advogada brasileira da etnia wapichana, ocupou a tribuna do STF, na quarta-feira, não representou apenas a causa territorial dos indígenas de Roraima, como constava da agenda. Ao se paramentar com as marcas faciais de sua tribo e arrolar os fatos da relação dos indígenas de Roraima com o general Rondon e o Exército na demarcação dos confins do território brasileiro, o que os fez brasileiros muito antes de outros protagonistas do pleito, pôs em causa conexões inevitáveis do que motiva o processo. Trata-se de um processo de conotação histórica porque nele está em jogo mais do que a contestação do direito dos índios daquele Estado a uma reserva íntegra, já decretada com base na Constituição, que lhes assegure a materialidade de seu território de ocupação imemorial.

A invocação de problemas de segurança nacional em relação à demarcação de um território indígena contínuo e íntegro na faixa de fronteira é compreensível, mas parece irrelevante no mundo moderno, em face dos recursos técnicos de que dispõe o aparato responsável pela segurança das fronteiras do País. Esses setores recebem fotografias aéreas das diferentes regiões brasileiras a cada tantas horas, feitas a partir de satélite, e a cada tantos dias fotografias de melhor resolução. As Forças Armadas brasileiras, com esses recursos, sabem até mesmo que tipo e tamanho de avião estacionou num aeroporto até horas depois de o avião ter decolado, simplesmente com as imagens de seu fantasma na imagem gerada e deixada por sua temperatura no solo. O mesmo monitoramento identifica diariamente aviões não autorizados, procedentes de países vizinhos, que invadem o espaço aéreo brasileiro. A lei do abate permite que tais aviões sejam derrubados, caso não se identifiquem e não pousem onde os pilotos dos caças de abordagem determinarem.

O que o País precisa não é que os índios de Roraima sejam culturalmente lesados em nome da segurança das fronteiras. Precisa que as Forças Armadas estejam devida e permanentemente equipadas e treinadas para cumprir sua função constitucional na defesa das fronteiras do País. E isso estão, cabendo assegurar que disponham sempre do que necessitam para que essa missão não seja, ela sim, prejudicada. No Alto Rio Negro, que faz fronteira com a Venezuela e a Colômbia, território do município de São Gabriel da Cachoeira, com uma brigada do Exército estabelecida, em que 85% da população são indígenas, além do português são línguas oficiais o nheengatu, o baniwa e o tukano e nelas são publicados leis, decretos, portarias, editais. Nem por isso a segurança é menor.

No litígio que corre no Supremo, entre arrozeiros e governo federal, de que as vítimas do conflito territorial são os índios, há uma disputa entre duas concepções de terra: a terra como morada ancestral, referência de um modo de viver e de uma consciência do mundo que, suprimida, desencadeará o desaparecimento social e cultural de seus protagonistas; e a terra como mercadoria, mero instrumento de troca e produção, que pode ser comprada e vendida em qualquer lugar. Sua posse pelos arrozeiros, declarada ilegal no voto do ministro-relator, não é, pois, referência simbólica de identidade nem meio de sobrevivência cultural.

No processo está em jogo, também, uma tendência da história brasileira relativa à diferença entre a terra como propriedade fundiária e o território como patrimônio da nação. No antigo regime sesmarial, antecessor do atual regime fundiário, o Estado era titular do domínio da terra e os sesmeiros tinham dela a posse útil. A Lei de Terras, de 1850, alterou esse direito de modo que os fazendeiros se tornaram titulares de domínio e posse, um direito pleno. Com a Revolução de 1930, o Estado brasileiro tratou de recuperar em parte o domínio da terra para sobre ela exercer sua soberania no que sobrepusesse os interesses nacionais aos interesses privados. Nessa tendência houve a separação legal de solo e subsolo, retornando o subsolo e tudo que contém ao domínio do Estado. O mesmo acabou acontecendo com as terras do Distrito Federal, as marinhas e as terras indígenas.

O que está em jogo no Supremo é, portanto, a interrupção ou a mitigação do processo de reconquista do domínio do território pelo Estado Nacional. Os interesses dos índios, nesse aspecto, coincidem com os do Estado; o dos arrozeiros, não. Nas conexões dessa tendência histórica, temos o surgimento de sujeitos de direito e sujeitos de brasilidade diversos do convencional, mas igualmente legítimos.

Vale lembrar que em países como a Inglaterra, quando a expansão do capitalismo, no século 17, colidiu com direitos tradicionais da população, as lutas sociais asseguraram o reconhecimento dos direitos sociais como direitos precedentes em relação aos direitos econômicos e à conseqüente coisificação dos seres humanos na devastação cultural que se disseminava. No Brasil não tivemos, com a força social devida, instituições tradicionais reguladoras dos direitos dos pobres, trabalhadores e desvalidos porque esta era, afinal, uma sociedade escravista, resumida ao mandar e obedecer. As lutas tardias dessas populações, dos banidos da condição de sujeitos e privados do reconhecimento de identidade própria e ancestral, acabaram pondo na ordem do dia a reinvenção do Brasil numa perspectiva pluralista e multicultural. Mesmo no direito de propriedade, a Constituição de 1988 abrandou sua rigidez para acolher a legitimidade do costume quanto à posse e ao uso da terra.

Estamos num momento de recriação identitária e, portanto, de inclusão social não pela assimilação aniquiladora, mas pelo reconhecimento integrador do direito à diferença. Essa tendência histórica pode ser enriquecida ou empobrecida, dependendo do que o STF decidir, pois ele dirá se a diferença é um direito universal ou se há brasileiros de primeira e de segunda, em que a diferença continuará residual, como um defeito de caráter.

*José de Souza Martins é autor de Fronteira (A Degradação do Outro nos Confins do Humano), Hucitec, São Paulo, 1997

Ativismo judiciário a pleno vapor


Maria Tereza Aina Sadek*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


A vitalidade do STF é inquestionável. Basta ver os efeitos de suas decisões. Ou até do adiamento delas

Esta semana é do Supremo. As anteriores também foram. As próximas, muito provavelmente, serão. Os temas são variados: habeas-corpus; uso de algemas; registro de candidatos a cargos eletivos; nepotismo; demarcação de terra indígena; interrupção de gravidez de feto anencéfalo; lei seca; lei de imprensa; cotas nas universidades; mensalão; união homoafetiva; transposição do Rio São Francisco; etc. A lista, além de extensa, é repleta de questões sensíveis.

O processo de tomada de decisões expõe e confronta princípios como, por exemplo, presunção de inocência e moralidade da administração pública; direito de acusados e direito de investigar; direito de optar e imposição ou pretensão do Estado de legislar; segurança nacional; soberania nacional e direito dos índios; diversidade cultural.

O embate, contudo, não é só de princípios. Instituições, grupos, corporações, interesses, imiscuem-se em categorias filosóficas abstratas. Assim, aparecem em lados opostos índios, organizações não-governamentais, Ministério Público e governo federal versus fazendeiros, deputados e governo estadual; Igreja contra cientistas; entidades médicas em desacordo com religiosas; cúpula do Judiciário e setores da advocacia em confronto com juízes de primeiro grau, aos quais se somam integrantes do Ministério Público, membros da Polícia e associações representativas.

A relevância dos temas e sua potencialidade de provocar impactos no âmbito público, na esfera de ação de corporações e na área privada justificam que se dirija a atenção para as decisões do Supremo. Com efeito, de área de interesse quase exclusiva de juristas e de operadores do direito, a Justiça estatal passou a constar da agenda política e da pauta dos meios de comunicação.

Propostas de reforma do sistema de Justiça saíram do reino da retórica transformando-se em medidas concretas. O Judiciário e seus integrantes converteram-se em objeto de manchetes, recebendo destaque em todos os veículos, jornais, revistas, rádios, televisões e blogs. A própria TV Justiça - uma singularidade brasileira -, no início vista com desdém pela maior parte dos conhecedores de mídia, tem conquistado audiência, especialmente quando transmite julgamentos vistos como memoráveis.

A rigor, esse quadro marcado pela presença do Judiciário na arena pública não é novo. A novidade está em seu robustecimento, em sua profusão de cores e contrastes. A constitucionalização deu ensejo a uma atuação ampla por parte do Judiciário e particularmente de sua corte suprema, o STF. Não é acidental que o Supremo seja levado a se pronunciar sobre tantos assuntos e menos ainda que eles digam respeito a tão ampla gama de temas. A Constituição de 1988 consagrou extenso rol de direitos, conferiu condições que garantem status de poder ao Judiciário, ampliou o número de legitimados com acesso direto ao Supremo. Ademais, a expressiva judicialização de questões políticas, econômicas e sociais implicou a composição dos tribunais como arena de disputas políticas e instância decisória final.

Em termos comparativos internacionais, é possível dizer que a participação do Judiciário na esfera pública é quase tão antiga quanto sua ascensão a Poder de Estado e a Corte Constitucional. Bastaria recordar a atuação da Suprema Corte americana e seu impacto na vida pública daquele país. Os exemplos são muitos. É, porém, suficiente lembrar seu apoio à segregação racial, negando a cidadania para os negros na primeira metade do século 19; sua intervenção invalidando leis sociais que objetivavam limitar a jornada de trabalho, em 1905; sua oposição ao New Deal do presidente Roosevelt; sua decisão a favor da pílula anticoncepcional e do aborto.

Quer agindo de forma conservadora quer de forma progressista é inegável o papel político do Judiciário. O desempenho desse papel está fortemente condicionado pelo desenho institucional da corte constitucional, mas também por características de seus integrantes. O perfil de seus ministros faz diferença. Em outras palavras, a despeito dos incentivos a uma atuação política propiciada pelos parâmetros institucionais, traços individuais contam. Em conseqüência, a atuação da corte reflete de forma inequívoca se o grupo é mais ou menos homogêneo, do ponto de vista ideológico e doutrinário; se predominam comportamentos mais ou menos reservados, atitudes mais ou menos agressivas, mais ou menos sensíveis a problemas sociais; enfim, importa como é ocupado o espaço concedido aos atributos individuais, tanto os vistos como positivos como os negativos.

Na mesma medida em que se robustece o protagonismo do Judiciário, crescem e se acirram as posições favoráveis e as contrárias a esse fenômeno. A valorização do ativismo judicial e do constitucionalismo tem seu contraponto na contenção, nos riscos da extrapolação de suas funções, nos preceitos majoritários. A polêmica, uma vez mais, não é só de princípios. Está em jogo a força relativa das instituições e de seus integrantes, como também a distribuição de poder no interior das instituições, a manutenção de privilégios e a efetivação de projetos políticos.

Face a tais características, não há como desconhecer a importância e o significado do Supremo na vida pública. Importância e significado que têm crescido nos últimos anos, impulsionados por características de seus integrantes. Qualquer que seja sua decisão, ou mesmo sua decisão de adiar uma decisão, tem potencial de produzir efeitos notáveis.

Para nos atermos a exemplos mais recentes, bastaria recordar as reações de lideranças políticas, de parlamentares, seus parentes e apaniguados em relação às imposições relativas à contratação de pessoas ligadas por vínculos familiares. E, por outro lado, as respostas favoráveis por parte dos que defendem uma administração pública baseada na impessoalidade, no mérito, na moralidade. Quanto à questão da demarcação de área indígena, postergar a decisão funciona como recurso de busca de solução salomônica, com maior potencial de pacificação das partes em conflito.

A vitalidade do Supremo é inquestionável. Os últimos anos testemunham seu protagonismo, decidindo ou postergando decisão, suscitando maior ou menor controvérsia. Sua presença é constante, como protagonista principal ou como ator pronto a entrar no palco. Tem tanto disciplinado matérias, atendo-se às suas clássicas atribuições, como legislado, adentrando em searas parlamentares. O presidente do Senado, ciente do risco do espaço perdido, reconheceu uma regra básica da política - a inexistência de vácuo. Ou, como consta dos escritos federalistas, “o poder é abusivo por natureza”. Hoje, o que está em discussão não é o protagonismo do Judiciário, mas sua extensão e limites.

*Maria Tereza Aina Sadek, cientista política, profa. da USP e coordenadora do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej), é autora, entre outros, de A Justiça Eleitoral e a Consolidação da Democracia no Brasil (Konrad-Adenauer-Stiftung)

Espionado, Mendes exige que Lula explique grampo da Abin

José Maria Tomazela
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, cobrou ontem providências do presidente Lula, após a revelação de que a Agência Brasileira de Informações gravou pelo menos uma conversa telefônica sua – com o senador Demóstenes Torres. “Nesse caso, o próprio presidente da República é chamado às falas”, disse Mendes. “Há descontrole no aparato estatal.” Ele convocará o STF para analisar o episódio. O grampo foi reproduzido pela revista Veja, que informou ter obtido cópia com um funcionário da agência. A Abin teria grampeado também ministros e parlamentares. O presidente do Senado, Garibaldi Alves, vai articular uma reação conjunta à ação dos espiões. A Abin prometeu investigar o caso.

Gilmar Mendes é espionado, cobra explicação de Lula e convoca o STF

Ministro do Supremo teve um diálogo com senador do DEM interceptado ilegalmente; ação é atribuída à Abin

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, vai reunir a Corte para decidir que medidas serão tomadas após a confirmação de que ele e outros políticos foram alvos de grampos ilegais. Ele também quer explicações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito das gravações. Reportagem publicada neste fim de semana pela revista Veja mostra que os serviços de espionagem federais instalaram grampos telefônicos ilegais nos aparelhos de Mendes, como já se suspeitava. A Veja atribuiu a ação à Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Depois de uma conversa com o vice-presidente do Supremo, Cesar Peluso, Mendes decidiu convocar todos os 10 ministros para discutir o assunto amanhã às 16 horas. Segundo ele, todos estão “perplexos e chocados” com a revelação dos grampos. Por causa da crise, ele cancelou uma viagem que faria à Coréia, onde participaria de um congresso - o vôo estava marcado para amanhã à noite.

O presidente do Supremo considerou “um crime extremamente grave” a interceptação telefônica clandestina e disse que é o caso de cobrar explicações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Nesse caso, o próprio presidente da República é chamado às falas, ele precisa tomar providências.” Para ele, há descontrole no aparato estatal.

Mendes ressalvou estar convencido de que o presidente não autorizou os grampos. “Não se trata de uma ação pessoal contra Gilmar Mendes, mas contra um dos poderes da República”, observou. De acordo com informações passadas por um agente da Abin à revista, também foram grampeados o presidente do Senado, Garibaldi Alves (PMDB-RN), o líder do PSDB, Arthur Virgílio (AM), e os senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE), Álvaro Dias (PSDB-PR), Demóstenes Torres (DEM-GO) e Tião Viana (PT-AC). Outras vítimas dos grampos foram os ministros da Casa Civil, Dilma Rousseff, e das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, além de Gilberto Carvalho, chefe de gabinete do presidente Lula.

Não há detalhes das conversas deles capturadas pelo serviço de espionagem. “Estamos voltando a ver uma prática continuada e reiterada de desrespeito aos termos expressos na Constituição. Temos que repudiar de maneira muito clara”, disse Mendes. Ele afirmou que, com as provas existentes, é preciso haver medidas muito mais enfáticas e enérgicas. “Há descontrole no aparato estatal e a isso precisa ser colocado um termo. Escuta telefônica só se faz mediante autorização judicial e essa regra precisa ser seguida. Grampear uma conversa rotineira entre o presidente do Supremo Tribunal Federal e um senador líder do Senado e importante autoridade na Comissão de Constituição e Justiça é um crime muito grave. Criou-se uma suspeita geral de que todos estão agindo ilicitamente.”

Ele manifestou preocupação com a “generalização” da prática. “A pergunta que nós fazemos é que garantia tem o cidadão comum, se o órgão que assegura as garantias sofre esse tipo de violação.” Mendes disse não saber como o homem comum pode se defender desse tipo de abuso. “Não se trata de nenhum medo de ser interceptado, não há nenhum medo, não há nenhum conteúdo criminoso nas nossas conversas, mas se trata de se preocupar com a restituição do Estado de Direito e de estabelecer seguranças jurídicas para todos.”

CONTRAMEDIDAS

Mendes disse que as medidas de segurança no gabinete já vinham sendo providenciadas. “Mas o que o cidadão comum faz diante desse tipo de invasão? Ele compra telefone criptografado, ele adota redes especiais?”, questionou.

A prova de que Gilmar Mendes foi mesmo vítima da arapongagem é a transcrição de uma conversa de cerca de dois minutos entre ele e o senador Demóstenes Torres, ocorrida às 18h32 do dia 15 de julho, trazida pela revista. No telefonema, Demóstenes pede a Gilmar ajuda contra a decisão de um juiz de Roraima que teria impedido uma importante testemunha de depor na CPI da Pedofilia, da qual é relator. No diálogo, Mendes agradece a Demóstenes por ter subido à tribuna do Senado para criticar pedido de impeachment contra ele, feito por um grupo de promotores descontentes com habeas corpus dado a Daniel Dantas.

Na época, a PF acabara de concluir a Operação Satiagraha, que prendera Dantas, acusando-o de uma série de crimes, entre eles lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e corrupção. De acordo com Veja, as gravações ilegais feitas pela Abin servem de base para relatórios que são entregues ao presidente. Isso, diz a revista, não quer dizer que o presidente Lula saiba dos grampos.

A Abin gravou o ministro


Policarpo Junior e Expedito Filho
DEU NA VEJA

Diálogo comprova que espiões do governo grampearam o presidente do Supremo Tribunal Federal. Autoridades federais e do Congresso também foram vigiadas

Há três semanas, VEJA publicou reportagem revelando que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, foi espionado por agentes a serviço da Agência Brasileira de Inteligência. O diretor da Abin, Paulo Lacerda, foi ao Congresso e negou com veemência a possibilidade de seus comandados estarem envolvidos em atividades clandestinas. Sabe-se, agora, que os arapongas federais não só bisbilhotaram o gabinete do ministro como grampearam todos os seus telefones no STF. VEJA teve acesso a um conjunto de informações e documentos que não deixam dúvida sobre a ação criminosa da agência. O principal deles é um diálogo telefônico de pouco mais de dois minutos entre o ministro Gilmar Mendes e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), gravado no fim da tarde do dia 15 de julho passado. A conversa, reproduzida na página anterior, não tem nenhuma relevância temática, mas é a prova cabal de que espiões do governo, ao invadir a privacidade de um magistrado da mais alta corte de Justiça do país e, por conseqüência, a de um senador da República, não só estão afrontando a lei como promovem um perigoso desafio à democracia.

O diálogo entre o senador e o ministro foi repassado à revista por um servidor da própria Abin sob a condição de se manter anônimo. O relato do araponga é estarrecedor. Segundo ele, a escuta clandestina feita contra o ministro Gilmar Mendes, longe de ser uma ação isolada, é quase uma rotina em Brasília. Os alvos, como são chamadas as vítimas de espionagem no jargão dos arapongas, quase sempre ocupam postos importantes. Somente neste ano, de acordo com o funcionário, apenas em seu setor de trabalho já passaram interceptações telefônicas de conversas do chefe de gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho, e de mais dois ministros que despacham no Palácio do Planalto – Dilma Rousseff, da Casa Civil, e José Múcio, das Relações Institucionais. No Congresso, a lista é ainda maior. Segundo o araponga, foram grampeados os telefones do presidente do Senado, Garibaldi Alves, do PMDB, e dos senadores Arthur Virgílio, Alvaro Dias e Tasso Jereissati, todos do PSDB, e também do petista Tião Viana. Esse último, conforme o araponga, foi alvo da interceptação mais recente, que teve o objetivo "de acompanhar como ele está articulando sua candidatura à presidência do Senado".

No STF, além de Gilmar Mendes, o ministro Marco Aurélio Mello também teve os telefones grampeados.

As gravações ilegais feitas pela Abin servem de base para a elaboração de relatórios que têm o presidente da República como destinatário final. Isso não quer dizer que Lula necessariamente tenha conhecimento de que seus principais assessores estejam grampeados ou que avalize a operação. Os agentes produzem as informações a partir do que ouvem, mas sem identificar a origem. Por serem ilegais, depois de filtradas, as gravações são destruídas. A do ministro Gilmar Mendes foi preservada porque, ao contrário das demais, ela foi produzida durante uma parceria feita entre a Abin e a Polícia Federal na operação que resultou na prisão do banqueiro Daniel Dantas, no início de julho. Os investigadores desconfiavam de uma suposta influência do banqueiro no STF e decidiram vigiar o presidente da corte. Gilmar Mendes já havia sido informado de que alguns comentários que ele fez com assessores no interior do gabinete tinham chegado ao conhecimento de outras pessoas – uma evidência de que suas conversas estavam sendo ouvidas. Desconfiado, solicitou à segurança do tribunal que providenciasse uma varredura. Os técnicos constataram a presença de sinais característicos de escutas ambientais, provavelmente de aparelhos instalados do lado de fora da corte. Não era só isso. O presidente do STF também tinha os telefonemas de seu gabinete gravados ininterruptamente. A Abin recebia e analisava, por dia, mais de duas dezenas de ligações do ministro. Foi para provar o que dizia que o funcionário mostrou uma delas.

De acordo com os registros, o senador Demóstenes Torres ligou para o ministro Gilmar Mendes às 18h29 para tratar de um problema relacionado à CPI da Pedofilia. Na ocasião, Mendes não pôde atender porque estava a caminho do Palácio do Planalto para uma audiência com o presidente Lula. Três minutos depois, às 18h32, a secretária retornou a ligação para o gabinete do senador e a transferiu para o celular do ministro. A conversa foi rápida. O presidente do Supremo agradeceu a Torres pelo pronunciamento no qual havia criticado o pedido de impeachment protocolado contra ele no Congresso. Na semana anterior, Mendes havia mandado soltar o banqueiro Daniel Dantas, o que provocou, além do pedido de impeachment, uma barulhenta reação da polícia e do Ministério Público. As entidades enxergaram na decisão do ministro – polêmica, mas felizmente tomada sob inspiração das leis vigentes – uma tentativa de impedir a punição dos corruptos. A Polícia Federal e a Abin interpretaram a decisão como uma confirmação de que alguma coisa errada se passava no gabinete do ministro e decidiram intensificar as ações ilegais. A partir daí, o presidente do Supremo e seus assessores mais próximos passaram a ser ouvidos, grampeados e seguidos pelos arapongas.

O diálogo em poder da Abin foi apresentado ao ministro Gilmar Mendes e ao senador Demóstenes Torres. Ambos confirmaram o teor da conversa, a data em que ela aconteceu e reagiram com indignação. "Não há mais como descer na escala da degradação institucional.

Gravar clandestinamente os telefonemas do presidente do Supremo Tribunal Federal é coisa de regime totalitário. É deplorável. É ofensivo. É indigno", disse o ministro, anunciando que vai pedir providências diretamente ao presidente Lula. "Não acredito que a ação da Abin ou da Polícia Federal seja oficial, com o conhecimento do governo, mas cabe ao presidente da República punir os responsáveis por essa agressão", acrescentou Mendes. O senador Demóstenes Torres também protestou: "Essa gravação mostra que há um monstro, um grupo de bandoleiros atuando dentro do governo. É um escândalo que coloca em risco a harmonia entre os poderes". O parlamentar informou que vai cobrar uma posição institucional do presidente do Congresso, Garibaldi Alves, sobre o episódio, além de solicitar a convocação imediata da Comissão de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso para analisar o caso. "O governo precisa mostrar que não tem nada a ver e nem é conivente com esse crime contra a democracia."

A atuação descontrolada dos arapongas oficiais está provocando crises dentro do próprio governo. Em conversas reservadas com assessores, Gilberto Carvalho, o chefe de gabinete do presidente Lula, que também foi vítima de espionagem clandestina, suspeita de uma conspiração em andamento para criar dificuldades ao governo. A teoria ganhou um reforço de um peso pesado do petismo. O ex-ministro José Dirceu, acostumado a freqüentar o noticiário como suspeito de alguma coisa, tem contado a amigos que é vítima de uma intensa perseguição de arapongas. A mais explícita, segundo ele, aconteceu em março passado. Um advogado, muito amigo do ex-ministro, recebeu a informação de que os telefones de Dirceu, de seus advogados e de alguns familiares estariam clandestinamente grampeados. Além disso, o escritório de Dirceu em São Paulo sofreria uma "entrada" – no jargão dos arapongas isso significa uma invasão clandestina disfarçada de roubo. O alerta, segundo o advogado, foi feito por um policial. Dias depois, o escritório do ex-ministro foi invadido. De acordo com o boletim de ocorrência registrado na delegacia, eram ladrões diferenciados, pois não se interessaram em levar uma televisão de plasma, uma cafeteira italiana, celulares e objetos de valor. Furtaram apenas a CPU do computador. Os "ladrões" também não deixaram marcas nas portas nem impressões digitais. A polícia paulista informou que o crime provavelmente foi praticado por uma gangue de catadores de papel.

No fim de junho, José Dirceu avisou o presidente Lula que estava sendo vítima de operações ilegais e que suspeitava da ação conjunta da Polícia Federal e da Abin. Em público, o ministro não faz acusações diretas contra ninguém, mas, para o presidente, ele foi explícito: Dirceu acusa o atual diretor da Abin, Paulo Lacerda, e o ministro da Justiça, Tarso Genro, de estarem por trás de um complô para prejudicá-lo, recorrendo a supostas ações ilegais contra ele, inclusive a invasão do escritório. "Mandei também avisar o presidente que estava sendo escutado ilegalmente", disse o ex-ministro a um interlocutor na semana passada. Dirceu considera Tarso Genro, que é do PT, mas de uma corrente interna diferente da sua, como desafeto político. O ministro da Justiça estaria usando o aparato policial contra Dirceu para tentar minar sua influência no partido. Paranóia? Talvez. O fato é que a ação clandestina dos arapongas, sejam eles da Abin ou ligados à Polícia Federal, está criando entre políticos, magistrados e autoridades em Brasília um clima que não se percebia desde os tempos do velho SNI, o serviço de inteligência criado no regime militar, que serviu, por mais de duas décadas, como instrumento de perseguição de adversários. Havia mais de um ano que o ministro Gilmar Mendes suspeitava que seus telefones estavam sendo grampeados. Parecia paranóia.


GILMAR MENDES: "Gravar clandestinamente os telefones do presidente do STF é coisa de regime totalitário. É deplorável. É ofensivo. É indigno"


DEMÓSTENES TORRES: "Há um grupo de bandoleiros atuando dentro do governo. É um escândalo que coloca em risco a harmonia entre os poderes"


O diálogo

Gilmar Mendes – Oi, Demóstenes, tudo bem? Muito obrigado pelas suas declarações.

Demóstenes Torres – Que é isso, Gilmar. Esse pessoal está maluco. Impeachment? Isso é coisa para bandido, não para presidente do Supremo. Podem até discordar do julgado, mas impeachment...

Gilmar – Querem fazer tudo contra a lei, Demóstenes, só pelo gosto...

Demóstenes – A segunda decisão foi uma afronta à sua, só pra te constranger, mas, felizmente, não tem ninguém aqui que embarcou nessa "porra-louquice". Se houver mesmo esse pedido, não anda um milímetro. Não tem sentido.

Gilmar – Obrigado.

Demóstenes – Gilmar, obrigado pelo retorno, eu te liguei porque tem um caso aqui que vou precisar de você. É o seguinte: eu sou o relator da CPI da Pedofilia aqui no Senado e acabo de ser comunicado pelo pessoal do Ministério da Justiça que um juiz estadual de Roraima mandou uma decisão dele para o programa de proteção de vítimas ameaçadas para que uma pessoa protegida não seja ouvida pela CPI antes do juiz.

Gilmar – Como é que é?

Demóstenes – É isso mesmo! Dois promotores entraram com o pedido e o juiz estadual interferiu na agenda da CPI. Tem cabimento?

Gilmar – É grave.

Demóstenes – É uma vítima menor que foi molestada por um monte de autoridades de lá e parece que até por um deputado federal. É por isso que nós queremos ouvi-la, mas o juiz lá não tem qualquer noção de competência.

Gilmar – O que você quer fazer?

Demóstenes – Eu estou pensando em ligar para o procurador-geral de Justiça e ver se ele mostra para os promotores que eles não podem intervir em CPI federal, que aqui só pode chegar ordem do Supremo. Se eles resolverem lá, tudo bem. Se não, vou pedir ao advogado-geral da Casa para preparar alguma medida judicial para você restabelecer o direito.

Gilmar – Está demais, não é, Demóstenes?

Demóstenes – Burrice também devia ter limites, não é, Gilmar? Isso é caso até de Conselhão.
(risos)

Gilmar – Então está bom.

Demóstenes – Se eu não resolver até amanhã, eu te procuro com uma ação para você analisar. Está bom?

Gilmar – Está bom. Um abraço, e obrigado de novo.

Demóstenes – Um abração, Gilmar. Até logo.