sábado, 18 de outubro de 2008

FRASE SELECIONADA

”Paes quer nacionalizar a campanha, mas não está tendo sucesso. Se o Lula não consegue transferir para a Marta Suplicy, companheira de partido em São Paulo, imagina se vai conseguir para um sujeito que ontem denunciou o filho dele? “
(Renato Lessa- Prof. da UFF e do IUPERJ)

Com a palavra, as conseqüências


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


As pesquisas ainda não mediram esse dado, mas, se vierem a medir o grau de aprovação ou rejeição popular à vulgaridade de algumas campanhas neste segundo turno, não será uma surpresa se revelarem que, para a maioria, uma grosseria a mais ou a menos tanto faz como tanto fez.

Tendo em vista a estatura do ambiente em geral, o surpreendente - e suspeito do ponto de vista da sinceridade dos pesquisados - seria a revelação de alto índice de repúdio à chamada “baixaria” dos métodos, termos e condutas adotados na aflição da reta final.

Afinal, não há nada muito fora do compasso em relação à “rotina de desfaçatez” - para usar expressão do ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello - já devidamente incorporada ao cotidiano das mais altas esferas da República.

O que há de estranho em panfletos apócrifos distribuídos pelas ruas do Rio de Janeiro ou de questões capciosas para atingir a honra de um adversário em São Paulo, diante de um dossiê com informações de propriedade do Estado produzido dentro da Casa Civil da Presidência da República para intimidar moralmente a oposição numa Comissão Parlamentar de Inquérito? E por que mentiras deslavadas passariam de repente a causar pasmo e indignação, bem como exibições de cinismo, incoerência, contorcionismos vertebrais e outros que tais, se nada de diferente se tem mostrado no cenário nacional nos últimos anos, sob o beneplácito da maioria? E dizer mesmo o que a respeito de palavras chulas? Linguajar arrevesado, sotaques inventados, perfis de populismo bem amoldado à ocasião conveniente? Ora, ora, é só do que tem vivido basicamente a política, é o comportamento de esperteza celebrado aos píncaros da genialidade, desde que se descobriu o reduzido valor dos valores na avaliação dos representantes na hora de escolher e avaliar seus representados.

Quando todos se dobram a qualquer prática desde que rendam bons resultados independentemente dos princípios adotados, tratar a “baixaria” como exceção denota a extinção do senso de realidade. Ou, então, é sinal de que a impudência está de tal maneira agregada aos espíritos que já faz zombaria da autocrítica fantasiada de vestal.

Esquisito seria se diante do aval diário a toda sorte de comportamentos infames, os candidatos no desespero da luta pelo poder optassem por se conduzir a partir da mais pura ética a combater com a elegância de esgrimistas.

Se é a brutalidade do vale-tudo o que produz sucesso, se o dom de iludir é a capacidade mais reverenciada, se as urnas - como se alega por aí - já disseram que essa coisa de moral e comportamento só comove os fariseus, natural que os arquitetos da propaganda política tomem como verdadeira a prevalência da admiração pela vitória sobre o exame da qualidade dos custos.

Quem ganha tem razão, é assim que está posta a equação das coisas brasileiras. Portanto, vale usar grevistas armados, deslocar a polícia da defesa para o ataque, conferir o mesmo tratamento a gente de bem, réus e acusados, atuar como algoz e discursar na condição de vítima, condenar num dia e absolver no outro em nome do interesse, vale qualquer coisa para vencer.

E só há um jeito de não valer: o eleitor revogar a regra e dizer chega.

Mano a mano

No oficial, a campanha de Marta Suplicy anunciava intenção de comparar a administração dela à de Gilberto Kassab. Guerra de obras.

No paralelo, porém, a decisão de partir para o pessoal já estava tomada. Primeiro, porque obra por obra, Kassab conta com a vantagem de falar no presente.

Segundo, como a rejeição à ex-prefeita é à pessoa, não à administração (tanto que em 2004 ela perdeu com ótima avaliação de governo), a única saída era lutar no mesmo campo.

Dia seguinte

Certamente são sinceras as declarações de apreço do candidato a prefeito do Rio Eduardo Paes ao novo aliado e ex-candidato Marcelo Crivella.

Bem como é pleno de franqueza o silêncio do seu padrinho político, o governador Sérgio Cabral a respeito.

Desafeto assumido de Crivella, Cabral fez questão de manter a distância registrada em cartório do Planalto: logo no início da campanha comunicou ao presidente Lula que a sua fidelidade não ultrapassaria aquele limite e, portanto, não atenderia a eventuais pedidos de apoio ao “ex-bispo” senador.

Entre outros motivos porque não tinha razão nem disposição para se indispor com as Organizações Globo, em disputa permanente com a Rede Record do “bispo” Macedo.

Pois bem. Nessa situação, se Eduardo Paes se eleger prefeito, de duas, uma: ou Crivella não leva nada na divisão da administração e isso significa que o apoio foi a leite de pato, ou negociou “parceria de governabilidade” e isso quer dizer que Cabral teve de conceder à circunstância eleitoral o que não pode ceder ao presidente da República.

A linha torta da coerência


Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Por uma esperta e oportuníssima coincidência, o presidente Lula estava no outro lado do mundo, em Maputo, capital de Moçambique, trocando amabilidades com o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, numa dessas meia horas que marcam a vida, enquanto o Brasil atravessa momentos que custam a sumir no buraco da memória.

Más notícias para a véspera do segundo turno, com a candidata petista Marta Suplicy despencando nas pesquisas e o Fernando Gabeira sustentando a duras penas a liderança.

O nosso palavroso presidente às vezes tropeça nos calhaus das contradições.

Aproveitei o dia chuvoso para botar ordem na bagunça dos recortes de jornais e revistas e acabei por separar algumas dezenas de registros de improvisos, entrevistas, declarações, frases e sentenças do presidente mais loquaz da história deste país. Como não há espaço para reproduzir todas as pérolas da facúndia presidencial, espremi o suco de uma seleção.

É justo que comece por algumas jóias da coroa da imprensa. Para poupar espaço, omito as datas e cenários da antologia:

1 - "Eu nunca vi tanto preconceito. Porque se a imprensa brasileira tivesse comigo apenas o tratamento republicano, nada mais do que isso... Não queiram uma imprensa chapa branca, mas não quero também uma imprensa contra".

2 - "Se eu puder um dia vou publicar um livro sobre alguns articulistas deste país para mostrar a quantidade de coisas que publicam sobre mim e a minha família". E, adiante: "Vocês não sabem o que é um fardo de governar este país com uma parte da elite preconceituosa".

3 - "Pela primeira vez na história, fizemos coisas que não estavam previstas acontecer. A imprensa brasileira poderia dar esta contribuição aos leitores, porque não é possível a gente viver a vida toda subordinada à futrica".

4 - "Se tem uma coisa que ficou provada nessa eleição é que neste país existe mais povo que formador de opinião".

O fumante desdenha a lei de combate ao fumo: "Eu defendo, na verdade, o uso do fumo em qualquer lugar... Na sua sala certamente eu não fumarei, porque eu respeito o dono da sala. Mas, na minha, sou eu que mando".

Num desabafo de modéstia: "Qualquer que seja o meu sucessor vai ter um problema sério: terá que fazer mais do que um metalúrgico".

Na surpreendente defesa da união civil dos homossexuais, em entrevista à TV Brasil: "Temos que acabar com a hipocrisia, porque a gente sabe que existe. Tem homem morando com homem, mulher morando com mulher e muitas vezes vivem bem, de forma extraordinária".

Antes de ter siso poupado de assistir pela televisão o empate da Seleção de Dunga com a Venezuela, foi absolutamente preciso no seu pessimismo com a decadência do futebol brasileiro:

"Quando vejo o Messi – na minha opinião o melhor jogador do mundo, hoje – perder a bola e sair correndo atrás do adversário até tomar a bola ou fazer falta e vejo os nossos perderem a bola, cruzarem os braços e falarem ‘o cara da defesa que tire’"... Em outra ocasião, o desabafo amargo e preciso: "Lamentavelmente, o Brasil não tem mais o melhor futebol do mundo".

Severo nas críticas aos adversários políticos e tolerante com os que pulam a cerca, Lula já foi um crítico sem papas na língua no julgamento do Congresso: "O Congresso é uma instituição válida, mas precisa ser renovada por gente comprometida com a classe trabalhadora. Eu acho que lá a maioria é picareta".

E, na mesma batida: "De todos os deputados do Congresso Nacional, há pelo menos 300 picaretas".

Sobre o antecessor FHC e sua mais ácida implicância, não mede as palavras: "Quando precisou comprar votos para aprovar a reeleição, o presidente comprou". E, no embalo: "Temos que criar a medalha Joaquim Silvério dos Reis e entregá-la para o presidente, que é o grande traidor da independência do país".

Agora, o outro lado da benevolência: "Quem não votou no Jader Barbalho, no Pará, em 1978, para deputado federal?", perguntou o presidente em comício com público a favor.

E até da Índia mandou o seu receado à candidata do PT ao governo de São Paulo: "Anota aí no seu caderninho: a Marta vai ganhar. A campanha está só no começo". Na verdade, entra na última semana, com o prefeito Gilberto Kassab (DEM) liderando as pesquisas com confortável diferença.

Palavras, palavras o vento leva...

O jogo político não é reino do vale-tudo


Luiz Bernardo Leite Araújo
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

UMA QUESTÃO controversa da discussão política em sociedades democráticas é a da delimitação de fronteiras entre esfera privada e esfera pública.

À primeira vista, trata-se de distinção trivial, valendo para a segunda esfera apenas aquilo que é genericamente definido como pertencente ao domínio público, que diz respeito ao interesse geral dos cidadãos.

Entretanto, toda tentativa de fixar de uma só vez e para sempre a forma e o conteúdo do discurso político resultou, senão em fracasso, certamente em novas e infindáveis controvérsias.Quais argumentos são aceitáveis do ponto de vista da cidadania democrática? Há temas intratáveis que deveriam ser excluídos da agenda política?

Tais questões suscitam, desde logo, intenso debate entre os membros de uma comunidade política e trazem a lume o caráter complexo da referida diferenciação.

Os defensores de uma visão aberta, inclusiva e irrestrita de temas na esfera política costumam recordar, não sem razão, que as fronteiras entre o público e o privado são fluidas e porosas. O que ontem não contava como argumento a ser ponderado pode subitamente adquirir relevância, o que é atestado no caso recente da introdução de doutrinas religiosas por cidadãos que, sem anular a natureza laica do Estado constitucional, rejeitam o secularismo como ideologia dominante. O que antes era tido como assunto estritamente privado, como a relação entre marido e mulher -em cuja briga, rezava o dito popular, ninguém mete a colher!-, tornou-se matéria legítima de discussão pública com base no desvelamento progressivo de casos de violência doméstica.

Entretanto, a adoção de uma concepção dinâmica de esfera pública, permeável a toda sorte de argumentos e tópicos que permitam o exercício pleno da autonomia dos indivíduos e favoreçam uma saudável diversidade de crenças e opiniões, não implica ausência de critérios fundamentais de convivência democrática.

Entre tais critérios avulta a proteção da esfera íntima, que, por boas razões normativas, deve ser resguardada da invasão alheia.

Evidentemente, a cada um é dada a liberdade de manifestar-se publicamente, se assim o desejar, sobre seu modo particular de vida, mas ninguém pode ser obrigado, contra sua própria vontade, a tornar pública uma identidade cuja constituição não abale o princípio da igualdade cívica.

O tema da orientação sexual é, neste aspecto, particularmente eloqüente.Com efeito, quem ousaria dizer que se trata de matéria não-pública diante de tanto sofrimento impingido a indivíduos e grupos no seio de sociedades dominadas por padrões de conduta tidos como modelares?

Por outro lado, e sem intento polêmico, o que impediria uma objeção naturalista a determinados comportamentos, fundada em raciocínio ainda sujeito ao desacordo razoável?

Se o que deve predominar na esfera pública são razões publicamente acessíveis a todos os cidadãos, não parece haver justificativa aceitável para o silenciamento de opiniões discordantes em face de questões que dividem os espíritos. Porém, pelas mesmas razões, o respeito pela integridade moral do outro é exigível de todos à luz de um dever recíproco de civilidade, constitutivo de uma sociedade democrática pluralista.

Há uma fronteira razoavelmente delimitável entre discordância e intolerância. Não estar de acordo com o que se julga ser uma conduta errônea de vida -e ter o direito de manifestar publicamente tal desacordo- não é a mesma coisa que disseminar preconceito e semear ódio ou aversão à pessoa do outro. E pouco importa, no que tange à intimidade da vida privada, se se trata do cidadão ordinário ou da pessoa pública. A esta última impõem-se, é claro, obrigações específicas decorrentes de uma função institucional que porventura exerça, não podendo alegar intromissão indevida no âmbito privado quando se trata, por exemplo, de prestar contas sobre sua situação financeira antes e depois do efetivo exercício da função.

Mas a vida privada no seu conjunto? Todo e qualquer aspecto de seu ser no mundo? Não. O jogo político não é reino do vale-tudo e nem tudo o que é sórdido se desmancha no ar.

LUIZ BERNARDO LEITE ARAUJO, doutor em filosofia pela Universidade de Louvain (Bélgica), é professor de ética e filosofia política da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É autor de "Religião e Modernidade em Habermas" (Loyola), entre outras obras.

Vamos usar o dinheiro público contra a crise


Paul Krugman
The New York Times
DEU NO JORNAL DO BRASIL

O índice Dow Jones está subindo! Está caindo! Está subindo! Não, está ... Não importa. O mercado de ações maníaco depressivo domina as manchetes, mas a notícia importante diz respeito à economia real. Está claro que socorrer os bancos é só o começo: outros setores também precisam desesperadamente de ajuda.

Para dar essa ajuda, vamos ter de deixar preconceitos de lado. Está na moda esbravejar contra os gastos governamentais. Mas agora, mais gastos governamentais são exatamente o que o médico prescreveu, e preocupações sobre o déficit orçamentário devem ser esquecidas.

Só essa semana, as vendas no varejo e a produção industrial despencaram. A taxa de desemprego está em níveis de recessão, e o índice de manufatura medido pelo Banco Central da Filadélfia cai ao ritmo mais rápido em quase 20 anos. Tudo para uma terrível e longa depressão.

Quão terrível? A taxa de desemprego está acima de 6% (as de subemprego chegam a dois dígitos). A taxa de desemprego vai além de 7%, e talvez ultrapasse 8%, fazendo desta a pior recessão em um quarto de século. E quanto tempo? Pode, na verdade, durar muito tempo.

Pense no que houve na última recessão, que se seguiu ao estouro da bolha de tecnologia nos anos 90. A resposta política parece uma história de sucesso. Apesar de ter havido temores de que os EUA vivenciassem uma década perdida, isso não aconteceu: o Federal Reserve (Fed) foi capaz de arquitetar uma recuperação baixando os juros.

O Fed demorou a se mexer. Apesar das reduções de juros, que, eventualmente, baixaram a taxa do Fed para apenas 1%, o desemprego continuou crescendo; levou mais de dois anos para o número de empregos começar a subir. E quando uma recuperação veio, foi só porque Alan Greenspan substituiu a bolha tecnológica pela imobiliária.

A bolha imobiliária estourou, e deixou o sistema em ruínas. Mesmo que as iniciativas para socorrer os bancos e descongelar os créditos funcionem – ainda é cedo, os resultados iniciais foram decepcionantes – é difícil dizer se o setor imobiliário vai se reerguer em breve. E não está claro se existe outra bolha esperando para encher. O Fed vai achar ainda mais difícil tomar uma atitude dessa vez.

Em outras palavras, Ben Bernanke não tem muito que fazer. Deve reduzir mais as taxas de juros – mas ninguém espera que isso gere mais do que um leve estímulo. Por outro lado, o governo pode fazer muito. Pode oferecer benefícios aos desempregados, e ajudar as famílias a enfrentarem os problemas e colocar dinheiro nas mãos de pessoas predispostas a gastá-lo. Pode ajudar governos locais e estaduais, para que não cortem gastos que degradam os serviços públicos e destroem empregos. Pode comprar hipotecas (mas não com valor nominal, como McCain propôs) e reestruturar contratos para ajudar famílias a ficarem nas casas.

É uma boa hora para gastar com infra-estrutura, da qual o país precisa. O argumento contra serviços públicos como estímulo econômico é que eles demoram muito: quando consertar a ponte, a recessão acabou. Mas as chances de a depressão acabar logo são nulas. Vamos pôr esses projetos para funcionar.

O próximo governo fará o que é necessário? Se McCain vencer, não. Precisamos de gastos – mas quando perguntaram a ele como ia lidar com a crise, respondeu: Bem, a primeira coisa a fazer é controlar os gastos.

Se Obama vencer, não se oporá aos gastos. Mas enfrentará um coro dizendo que são inaceitáveis os déficits que o governo terá se fizer a coisa certa. Ele deve ignorar. A coisa responsável, no momento, é ajudar a economia. Não é hora de se preocupar com o déficit.

O fim da hegemonia



Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. A crise financeira internacional, desencadeada pela bolha hipotecária do mercado imobiliário dos Estados Unidos que revelou uma insuspeitada fraqueza do sistema bancário internacional, tem conseqüências não apenas econômicas, mas, sobretudo, políticas. O fim da hegemonia dos Estados Unidos, já previsto antes mesmo da explicitação dessa crise, começa a gerar especulações sobre a decadência do império americano e a transição de poder mundial, tanto político quanto financeiro. Embora seja cada vez mais claro que o mundo multipolar é uma realidade com a qual o futuro governo americano, a ser eleito em 4 de novembro, terá que lidar, e que a administração dessa crise financeira trará dificuldades novas para o futuro dos Estados Unidos, não há indicações suficientes de que o predomínio americano no século tenha terminado.

O historiador Niall Ferguson, da Universidade de Harvard, que prepara para o mês que vem o lançamento de seu livro "The ascent of Money: a Financial History of the World" ("A ascensão do dinheiro: uma história financeira do mundo"), fez em seu blog uma análise das conseqüências geopolíticas da crise e concluiu que se deve hesitar sempre ao decretar o declínio e queda dos Estados Unidos:

"A América já passou antes por crises financeiras desastrosas - não apenas a Grande Depressão, mas também a Grande Estagflação dos anos 1970 - e emergiu com sua posição geopolítica fortalecida. Essas crises, por piores que tenham sido em casa, sempre tiveram os piores efeitos nos rivais da América".

Ele lembra que até o momento os piores resultados de mercados de ações têm sido da China e da Rússia, "números que não são boas propagandas para os modelos de economia mais controlados pelo governo adotados por Pequim e Moscou". Mas Ferguson admite que os Estados Unidos crescerão menos a partir de agora, e provavelmente a China se tornará a maior economia do mundo antes de 2027, prazo previsto pela Goldman Sachs em seu estudo sobre as economias emergentes dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China).

O historiador prevê também que, a exemplo do que aconteceu com a libra inglesa, o dólar poderá perder a propriedade de ser a única moeda de referência mundial. Também o sociólogo e historiador brasileiro Hélio Jaguaribe acha que "a emergência, da China como grande potência já está definida e se realizará com celeridade, na segunda década deste século, já deverá transcorrer sendo a China uma segunda potência mundial. O totalitarismo chinês já se converteu num autoritarismo multidimensional, com crescente importância do papel do mercado. Na medida em que o autoritarismo chinês mantenha suas características ilustradas, o regime tenderá a persistir exitosamente por mais algum tempo".

Jaguaribe considera "discutível, entretanto, que as características ilustradas desse autoritarismo sejam preservadas por longo prazo. Ou a China retorna ao regime multidimensional ou será paralisada pelo burocratismo".

Mas, no que se refere às mudanças relativas à presente supremacia americana, ele não crê que possam ser vislumbradas a curto prazo. "Isso não obstante, o mundo caminha para uma nova bipolaridade, marcada pela crescente importância da China".

O economista brasileiro Paulo Vieira da Cunha, ex-diretor do Banco Central atuando no mercado financeiro de Nova York, acha que o grande desafio dos Estados Unidos será montar uma arquitetura financeira para manter de uma forma crível "uma política monetária muito frouxa no curto prazo, usando inclusive a vantagem de que no momento de crise o dólar e os ativos americanos ainda continuam a se valer daquele "privilégio exorbitante" de que falava De Gaulle, e a longo prazo continuar atraindo o interesse dos investimentos".

Ao contrário do que aconteceu na década de 1950, Vieira da Cunha acha que no momento em que passar a fase aguda da crise, os investidores "provavelmente vão querer cobrar uma taxa de risco do próprio Tesouro americano". No momento em que o pânico acaba, e que em outros lugares do mundo você começam a ter atrativos, "qual vai ser a vantagem de ficar recebendo uma taxa de juros baixíssima nos Estados Unidos quando você está vendo o problema da dívida crescente?", pergunta ele.

A dívida externa americana, que chegou a US$10 trilhões mês passado, correspondendo a 80% do PIB, provavelmente chegará a 100% nessa crise financeira, com as medidas já anunciadas e a necessidade de dar liquidez ao mercado financeiro. Para o economista brasileiro, embora isso não seja inconcebível para uma economia com o dinamismo da americana, "o problema é como administrar essa situação com taxa compatível com o equilíbrio fiscal".

No momento, analisa ele, "todos focados nesse problema de curto prazo, porque, se não resolver, você não sobrevive. Num segundo momento, as pessoas vão perguntar como você vai se financiar daqui para frente".

Uma conseqüência imediata é a possibilidade, impensável anos atrás, mas aventada semana passada em Washington, de os títulos do Departamento do Tesouro dos EUA sofrerem uma desvalorização devido ao crescimento do endividamento do governo, com as agências de risco começando a analisar o rebaixamento dos títulos, que hoje são triplo A.

Apenas com essa especulação, mesmo que seja difícil que isso venha a acontecer de fato, aumentarão as exigências do mercado por taxas mais altas de juros. Paulo Vieira da Cunha acha que "a política monetária frouxa do momento, para não deixar a economia desabar, não combina com o que terá que ser feito depois", quando previsivelmente os Estados Unidos terão mais dificuldades para atrair investidores. Nesse contexto, o papel da China será crucial. (Continua amanhã)