quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Carta aberta ao Grande Chefe Branco


Demétrio Magnoli
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Prezado deputado Paulo Renato Souza (PSDB-SP):


No 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, a Câmara passou a lei de cotas nas universidades e instituições federais de ensino médio, que é a primeira lei racial na história da República. A aprovação se deu sem o voto dos deputados, por conluio entre lideranças. Você participou destacadamente daquele conluio, renunciando à posição contrária à inclusão da raça na lei que dizia sustentar.

Arlindo Chinaglia (PT-SP), o presidente da Câmara, celebrou o desenlace e ofereceu um diagnóstico: “Os que têm opiniões divergentes cederam, o que resultou em um grande avanço.” Traduzo a frase do seguinte modo: nada é impossível, nem mesmo derrubar o princípio da igualdade perante a lei, quando a oposição abdica de seus deveres básicos. Estou errado?

Serei franco. Surpreendeu-me a sua colaboração, sem a qual o projeto teria de aguardar uma sessão com quórum e ser votado nominalmente pelos deputados. Li num jornal a sua justificativa. De acordo com ela, o projeto não é ruim, pois estabelece cotas raciais proporcionais à composição “racial” da população de cada unidade federativa, de modo que, nas suas palavras, nos Estados com predomínio demográfico de brancos, eles terão chances maiores de ingressar nas universidades. Se entendi, você negociou e aprovou o projeto pois não viu nele desvantagens para a “raça branca”. Posso, então, intitulá-lo Grande Chefe Branco?

Não há ironia nisso, acredite. Os patrocinadores de projetos de cotas no ensino e no mercado de trabalho almejam a condição de líderes negros. Eles usam o fruto envenenado da raça para impulsionar carreiras políticas ou conquistar posições de prestígio em ONGs muito bem financiadas. Mas é claro que a construção de identidades raciais oficiais no Brasil abre possibilidades inusitadas. Se há líderes negros, por que não líderes brancos? (Veja que para isso nem se precisa de algo tão aparente quanto a cor da pele: em Ruanda a vida política girava em torno de líderes tutsis e líderes hutus, ao menos até o genocídio).

Não nos enganemos. Políticos oportunistas em busca da condição de líderes negros (ou brancos) são elos instrumentais na passagem de leis de raça, mas a concepção de tais leis se deve aos doutrinários racialistas, que são pessoas dotadas de princípios - e o xis do problema reside no conteúdo desses princípios. Racialismo é a doutrina baseada numa dupla crença: 1) raças existem, se não na natureza, ao menos na história; 2) “a história do mundo não é a história de indivíduos, mas de grupos, não a de nações, mas a de raças”. Empreguei, para expor a segunda crença racialista, uma citação de William Du Bois (1868-1963), o pai fundador da doutrina. Toda a lógica das políticas de cotas raciais se encontra delineada na obra desse americano. Seria inoportuno sugerir que a lesse?

Du Bois era um racialista, não um racista, pois não acreditava em noções de superioridade racial. Ele visitou a Alemanha nazista e gostou do orgulho de raça promovido pelo regime, mas confessou sua repulsa com a perseguição aos judeus. Bem antes, em 1903, escreveu Os talentosos dez por cento, em que expunha a tese de que, por meio de uma criteriosa seleção educacional, um negro em cada dez poderia converter-se em líder mundial da raça negra. O artigo começa assim: “A raça negra, como todas as raças, será salva por seus homens excepcionais. O problema da educação entre negros, então, deve antes de tudo concentrar-se nos 10% talentosos...” Entendeu, agora, a proposta de cotas? Percebeu que ela nada tem que ver com um programa de redução de desigualdades sociais?

Nos EUA, as leis de segregação racial definiram quem era branco e quem era negro. Du Bois falava para uma raça oficializada pela discriminação. Por aqui, os racialistas lamentam a ausência de leis desse tipo no nosso passado, pois recaiu sobre os ombros deles a missão de fabricar, na mente das pessoas, a consciência racial e o orgulho de raça. Fico um tanto triste ao perceber que se procura realizar essa obra a partir da escola. Tarso Genro, na sua passagem pelo Ministério da Educação, ordenou que todas as escolas associem nominalmente cada aluno a uma raça. Você, um ex-ministro da Educação, e Paulo Haddad, o atual titular da pasta, articularam juntos o projeto de cotas raciais aprovado na Câmara. Vocês não são três, mas uma tríade. Juntos, por cima de diferenças partidárias, invadem as aulas de História e Biologia para apagar a lousa onde está escrito que raças humanas não existem, a não ser como invenção do racismo. Mas você liga para o que está escrito na lousa?

Já notou que os brasileiros sentem uma certa repugnância diante da idéia de serem divididos oficialmente em raças? Por coincidência, no mesmo dia em que vocês aprovavam uma lei que faz exatamente isso, divulgou-se uma pesquisa de opinião pública sobre atitudes diante do tema racial. Encomendada pelo Cidan, uma ONG racialista, a pesquisa fez perguntas viciadas, tendenciosas, a uma amostra da população carioca. Mesmo assim, 63% declaram-se contra as cotas raciais. Mais interessante é que as posturas diante das cotas raciais não variam em função da cor autodeclarada das pessoas. Entre os “brancos”, 63,7% rejeitam essa política; entre os “pardos”, 64%; entre os “pretos”, 62,2%. Eu interpreto isso como uma opção identitária: as pessoas, independentemente da cor da pele, querem ser cidadãos iguais perante a lei. Estou errado?

Não há motivo para imaginar que os demais brasileiros pensem diferente dos cariocas. Apesar da maciça propaganda racialista veiculada pelo Estado, os cidadãos percebem o mal que a pedagogia das raças faz aos jovens estudantes. A coincidência entre a divulgação da pesquisa e a aprovação por conchavo da lei de cotas coloca uma pergunta constrangedora: onde está a representação parlamentar da maioria que rejeita as leis raciais?

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

De mau a pior


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A Câmara dos Deputados passou o ano todo indo, voltando, virando e mexendo no projeto de emenda constitucional que altera o rito de tramitação das medidas provisórias. Embromando, seria o termo mais exato.

Na semana passada o presidente do Senado, Garibaldi Alves, deu um susto geral devolvendo de forma unilateral a MP de anistia às entidades filantrópicas, na terça-feira o Parlamento resolveu simular uma providência aprovando uma emenda que, na essência, não muda coisa alguma.

Ou, por outra, piora o que já estava ruim: conserva o poder de interdição da pauta do Legislativo nas mãos do Executivo, cria uma zona franca para o pedido de créditos suplementares e ainda livra o Congresso da responsabilidade constitucional de examinar os preceitos de relevância e urgência das MPs.

Hoje, uma medida provisória passa na frente de todos os outros projetos 46 dias depois de editada e paralisa a agenda até ser aprovada ou rejeitada. Pela nova regra, uma MP ganha prioridade no 16º dia de edição, mas pode perder essa condição se a maioria absoluta dos parlamentares (257 deputados ou 41 senadores) concordarem em inverter a ordem dos assuntos em pauta.

Em tese, o Congresso recupera a iniciativa e o poder sobre o andamento dos trabalhos. Na prática, fica tudo como está. O Executivo continua dono da chuva e do sol dentro do Parlamento.

Tendo a maioria e sendo ela ora subserviente ora fisiológica, de duas, uma: ou o governo sempre conseguirá mobilizar naturalmente sua base para impedir a inversão da pauta ou fará isso movimentando mais instrumentos de negociação caso a caso para assegurar a fidelidade da tropa.

Se o objetivo do Legislativo era reequilibrar a correlação de forças com o Executivo, o texto aprovado pela Câmara não dá motivo para comemoração. O Planalto ganhou mais uma vez.

Pode ser que venha a perder quando a emenda for a exame no Senado, onde a maioria governista é mais estreita e menos cordata. Mas, por enquanto está em vantagem.

No início, jogou duro contra qualquer mudança. A Casa Civil chegou a mandar uma proposta aumentando a validade de uma MP de 120 para 240 dias. Provocação pura.

Alertado para a necessidade de falar sério se não quisesse assistir a uma reforma para valer, o governo aceitou dar prosseguimento ao assunto, mantendo, porém, o trancamento da pauta como ponto de honra. Cláusula pétrea.

Pelo seguinte: se as medidas provisórias de alguma forma não paralisassem a pauta de votações não poderiam mais ser aprovadas em bloco e por acordo como ocorre atualmente. Nesse caso, o Executivo seria obrigado a tratar de cada medida em separado negociando a entrada na pauta e a aprovação do mérito.

Ou, então, diminuir o número de medidas provisórias. Como isso estava fora de cogitação, criou-se o inócuo atalho.

Essa é a parte, digamos, boa da história. A ruim impõe dois retrocessos: abre uma brecha para o pedido de créditos suplementares por meio de medida provisória para fugir das sentenças de inconstitucionalidade dadas pelo Supremo Tribunal Federal e extingue a exigência do exame de admissibilidade das MPs por uma comissão especial com poder de devolvê-las.

A comissão nunca se reúne, mas a prerrogativa de fazê-lo está lá, lembrando ao Congresso que ele não cumpre suas obrigações. Agora as medidas precisam de um parecer da Comissão de Constituição e Justiça que, seja qual for, não impede o curso da MP até o plenário.

Quer dizer, para o Executivo a situação é a mesma e para o Legislativo ficou bem mais confortável.

Honra da firma

O clima no governo não corresponde ao otimismo exibido depois da reunião ministerial de segunda-feira, da qual resultou uma "determinação" do presidente Lula para que os ministérios gastassem o dinheiro em caixa a fim de combater preventivamente os efeitos da crise econômica mundial.

A atmosfera tampouco é de pessimismo. Prepondera, na realidade, a incerteza. Ninguém sabe o que vem por aí em 2009. Por via das dúvidas, a ordem geral é manter o moral da tropa nacional elevado enquanto não se desenham com exatidão as conseqüências internas da crise externa.

O objetivo do encontro foi puramente virtual. Até porque os investimentos em questão não dependem da palavra do presidente. Quem não gastou recursos previstos no Orçamento (menos da metade até novembro) não o fez por falta de "autorização" de Lula, mas por insuficiência de desempenho.

É inócuo também o incentivo governamental ao consumo porque no cotidiano ninguém organiza as respectivas despesas conforme orientação do Palácio do Planalto.

Na política, contudo, o otimismo serve como antídoto ao baixo-astral que, como bem sabe o PT, quando se alastra pelo ambiente tende a desgastar o governo e favorecer a oposição.

E, se o ambiente é de mandato em reta final, com mais velocidade as más profecias se tornam o motor de sua própria realização.

Crise e oportunidade


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. A dívida externa americana, que chegou a US$10 trilhões antes da crise financeira iniciada no meio de setembro, está a ponto de atingir 100% do PIB com os sucessivos pacotes de liquidez já aprovados no valor total de cerca de US$2,5 trilhões, e mais um provável programa de US$700 bilhões para a criação de 2,5 milhões de empregos em obras de infra-estrutura a ser anunciado pelo presidente Barack Obama em seus primeiros dias na Casa Branca. E é previsível que outros pacotes de estímulos ainda virão. O outro déficit, o público, se ampliará para o recorde de aproximadamente US$490 bilhões no ano que vem, e caberá ao novo diretor de Orçamento, Peter Orzag, fechar o grande buraco orçamentário que será herdado.

Será possível à nova administração democrata montar uma arquitetura financeira que combine uma política monetária bastante frouxa no curto prazo, e que em longo prazo mantenha o interesse dos investidores nos papéis do Tesouro, diante de um déficit dessa magnitude? É real a possibilidade de os títulos do Departamento do Tesouro sofrerem uma desvalorização por conta do agudo crescimento do endividamento do governo?

As agências de classificação de riscos, das grandes culpadas pela crise financeira, considerarão rebaixar a classificação dos Estados Unidos, hoje considerados AAA? Se isso vier a acontecer um dia, o reflexo se verificará por toda a economia globalizada, já que os títulos do Tesouro americano são a referência internacional e o dólar é o padrão monetário.

O economista Paulo Rabello de Castro lançou um livro ontem cujo título já diz tudo: "A grande bolha de Wall St. - Como ela pegou o mundo, como ela pode afetar você". Ele está convencido de que "as autoridades estão perdidas diante de uma economia real que se dissolve". Paulo Rabello acha que "estamos diante de uma completa dissolução dos princípios econômicos. Será que serão torneiras de liquidez abertas que darão mais competição e competitividade à economia norte-americana?", pergunta, cético.

Ele vê "um excesso de questões mal respondidas pelo governo dos EUA", e ressalta que o "caminho para o qual estão levando a confiança no dólar é trágico". Por isso, ele diz que "é preciso acompanhar de perto a trajetória do Federal Reserve, com total atenção".

Os pacotes multibilionários de ajuda, neste caso, analisa Paulo Rabello, podem ter efeito contraditório, voltando-se contra o regime monetário dos países, expondo a fragilidade de suas moedas. "O grande desafio hoje é como reverter a grande fragilidade do regime monetário norte-americano. Para o resto do mundo, a pergunta é: haveria um substituto claro a ocupar o lugar de lastro internacional de transações?".

Ele diz que "o uso e abuso do suprimento de liquidez já tem sido a arma secreta desde Greenspan (Alan Greenspan, ex-presidente do Banco Central dos Estados Unidos), cuja escola é a mesma do (Ben) Bernanke e agora de (Tim) Geithner e Larry Summers".

Paulo Rabello ressalta que a liquidez abusiva até funciona enquanto a demanda por títulos públicos é grande e crescente, como ocorreu enquanto a China, Brasil, Índia, os países árabes "compravam literalmente trilhões em bônus dos EUA, os quais assim financiavam a guerra de 2003, a redução de impostos dos ricos, os programas eleitoreiros domésticos do Bush, etc etc". Mas ele crê, "com realismo", que essa demanda "secou ou vai secar feio" devido ao ajuste, "que demandará que os chineses poupem menos e que os americanos poupem o que nunca pouparam antes".

Para ele, existe em marcha "um choque de riqueza com sinal trocado que é monstruoso" com a percepção de todo americano de que "seu fundo de pensão foi parcial ou totalmente para o brejo". Paulo Rabello dá o exemplo da fábrica de carros GM, "que não consegue mais arcar com contribuições, ao mesmo tempo em que o valor dos ativos da reserva do fundo caem de valor drasticamente". E também o do Estado de New Jersey, que não poderá pagar as pensões integrais.

Para ele, este é o "efeito-pobreza", que é agravado pela noção do contribuinte de que "a torneira fiscal de hoje é o imposto amanhã, e que, assim, ele tem que poupar mais para enfrentar o imposto", anulando o esforço de convite ao gasto feito pelos pacotes de estímulos econômicos dos governantes.

O economista acha que a solução dependeria "de fazer os credores privados afoitos pagarem ao descontar seus créditos radicalmente, mas, se o governo estatiza o crédito, livra o prejuízo de credores e acionistas". Ele considera essa situação espantosa e intrinsecamente má, "pois prolonga o custo total do ajuste em cima das classes menos favorecidas, bem ao contrário do que faz crer a sabedoria e a mídia convencionais".

Paulo Rabello de Castro acha que, dessa crise, a preferência pelo dólar vai recuar e novos regimes monetários poderão surgir com papéis relevantes, e o Real poderá ser um deles, dependendo das decisões a serem tomadas pelo governo brasileiro.

Uma política de fortalecimento do Real teria que atender aos seguintes princípios, segundo Paulo Rabello:

1- Redefinição e contenção de despesas públicas.

2- Reforma tributária arrojada

3- Política fiscal neutra


Alguns objetivos de longo prazo deveriam também ser definidos:


1- Déficit nominal zero


2- Aumento de 10% da Produtividade Pública


3 - Meta de 30% de carga tributária em 2020


4- Fim da indexação pelo IGP


5- Aumento da Poupança Previdenciária


6 - Taxa de investimento de 25% do PIB em 2011.

Desastres conservados


Janio de Freitas
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Já falam nos bilhões do prejuízo com a atual calamidade. Mas o que valem em comparação com uma casa perdida?

HÁ EXATOS 25 anos, um dos governadores recém-vitoriosos na primeira eleição sem restrições, ao apagar da ditadura, irrompeu na notoriedade nacional com o espetáculo de sua ação em uma calamidade feroz. Era a nova figura de Esperidião Amin, que se deparou, mal estreara, com os horrores da enchente gigantesca no mesmo Vale do Itajaí e cercanias agora vitimados. As providências de engenharia, para prevenir o desastre das vazantes excessivas, começaram a ser definidas ainda antes de baixadas as águas e logo asseguradas pelo governo federal (Santa Catarina não teria recursos para tanto).

No quarto de século decorrido desde então, as enchentes cumpriram com regularidade a sua programação anual, concedendo apenas na intensidade variável das suas perversidades. Mas, sempre, cada uma delas configurando a advertência do que poderia vir no ano seguinte. Assim atravessaram os dois anos finais da ditadura com Figueiredo, os dois anos de Collor, o mesmo de Itamar, cinco de Sarney, oito de Fernando Henrique e, já se pode dizer, seis de Lula.

Os ministérios incumbidos das obras mudaram de nome, cresceram nos bilhões das moedas que mudaram de nome, o regime mudou de nome, mudaram dezenas de nomes de ministros como se não houvesse nem um. E o legado de tudo isso foi manter em perfeitas condições as características topográficas, geológicas, fluviais e habitacionais adequadas a novas calamidades.

Já falam, por aí, nos imaginados bilhões do prejuízo com a atual calamidade. Mas o que valem esses bilhões em comparação com a casa perdida por uma família que dedicou tanto da vida a consegui-la, a dar-lhe os bens simplórios que nunca se completam? O custo da orfandade daquela criança, de qualquer criança, cabe nos bilhões do prejuízo citados pelos técnicos e pelos governantes? E os filhos esmagados, sufocados na lama, sumidos nas águas, que valor os técnicos e governantes dão à sua perda pela mãe, pelo pai? Ou não pensaram nisso?

Em proporções que só representam calamidade para os atingidos, e apenas um registro rápido nos noticiários, os desatinos da natureza repetem-se pelo país todo, o ano inteiro. Grande parte seria evitável ou poderia ser atenuada, muitos são objeto de velhos projetos preventivos, mas seguem se repetindo como se fossem uma fatalidade acima do poder humano. É que estão abaixo do poder dos interesses. Eleitorais, comissionais, negociais. Lidam com vidas irreconhecíveis, por não terem presença social, como classe.

No atual desastre catarinense, duas ilustrações resumem o governo. O ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, a quem caberia rápida reação já aos primeiros sinais da calamidade, foi de uma lerdeza muito expressiva, digna de um garçom baiano como ele. É até improvável que soubesse o que é e onde é o Vale do Itajaí. Lula, por sua vez, só ontem se dispôs ao esforço de dar um pulo em Santa Catarina. E assim mesmo porque também ontem recebeu duras críticas por sua distância apática. Críticas acompanhadas da observação de que essa é a sua conduta costumeira nas calamidades e tragédias.

O "homem do saco" e a crise


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Quando do lançamento do Plano Cruzado (1986), o então deputado Antonio Delfim Netto produziu uma daquelas suas corrosivas frases: "Se inflação não tem causa, então o plano dará certo".

Como inflação tem causas, e como as causas não foram atacadas, o plano malogrou, depois de nove mágicos meses.

A frase de Delfim me volta à mente agora toda vez que leio sobre o tsunami de ajudas que os governos do mundo todo estão concedendo ao setor privado.

Se todos os problemas do mundo pudessem ser resolvidos nessa base, nunca haveria problemas no mundo. Bastaria, como agora, privatizar o dinheiro público e estatizar o risco. Bastaria botar para funcionar as máquinas impressoras das casas da moeda -e pronto, nunca haveria crise. Mas é como diz clássico refrão da economia que ninguém, a não ser por birra, é capaz de contestar: Não há almoço grátis.

Algum dia, os zilhões de ajuda serão pagos, ou na forma de déficit público cada vez maior, que, por sua vez, tende a gerar inflação, que tende a gerar contração da economia ou desorganização; ou na forma de endividamento desorbitado, que, não custa lembrar, é a causa original da presente crise.

O que torna a situação ainda mais dramática é a pergunta que James Horney, diretor de política fiscal federal do Center on Budget and Policy Priorities, de Washington, fez ao notável Sérgio Dávila: "Qual é a alternativa? Se o governo não se mexer para estimular a economia, o resultado poderá ser pior".

Quando era criança, me diziam que, se não me comportasse, viria o "homem do saco" e me pegaria. Hoje, vivem me dizendo que, sem esses pacotes todos, vem a "crise sistêmica" e me pega.

Nunca vi o "homem do saco". Alguém aí paga para ver se a "crise sistêmica" existe?

Em 2010, sob o império do cinza


César Felício
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Não resta dúvida sobre a influência de uma crise econômica de grandes proporções no resultado final de uma eleição, evidentemente um fator que ajuda a quem está na oposição. Mas na política o cinza impera sobre o preto e o branco e não existe uma variável que se imponha de maneira definitiva sobre todas as outras. Há exemplos que se deslocam no tempo e no espaço mostrando vitórias do situacionismo no contexto de graves crises econômicas.

Em 1998 o Brasil teve o menor índice de crescimento do PIB desde a introdução da nova moeda, com um percentual muito próximo de zero por cento. A taxa média de juros Selic foi de 31,2%. A fatia do desemprego aberto sobre a população economicamente ativa beirou os 12%. Quase 800 mil vagas no mercado de trabalho formal foram fechadas, número maior que a soma dos três anos anteriores. A única grande conquista que o então presidente Fernando Henrique Cardoso podia apresentar na esfera econômica era o estrangulamento da inflação - quase zero por cento - produzido pelo câmbio virtualmente congelado na paridade com o dólar. Não era pouca coisa, mas obviamente não estava na economia a razão que motivou a maioria absoluta dos eleitores a conceder ao tucano um segundo mandato presidencial já no primeiro turno, façanha não atingida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A reeleição de então foi construída no cenário político. O Palácio do Planalto minou o controle de Paulo Maluf sobre o então PPB - partido que chegou a reunir 88 deputados federais, embalado na perspectiva de o malufismo suceder Fernando Henrique - enquanto tucanos e petistas faziam vir à tona a ciranda dos precatórios na Prefeitura de São Paulo, que recolocou Maluf e seu à época herdeiro Celso Pitta na trilha dos escândalos. Os operadores de Fernando Henrique ainda conseguiram impedir que o PMDB lançasse a candidatura de Itamar Franco, em uma convenção movida a cadeiradas e palavreado chulo. E isolaram a oposição, ao cooptarem os governadores pedetistas Jaime Lerner (PR), Dante de Oliveira (MT) e até o petista Vitor Buaiz (ES), colocando a dupla Lula e Brizola caminhando sozinha pelo Brasil afora.

No começo de 2003, a crise do corralito ainda devastava a Argentina, então em "défault" e com a economia retrocedendo à razão de 10% ao ano. "Que se vayan todos" era um lema insistentemente repetido nas manifestações, em um sinal de repúdio à classe política. Na eleição presidencial, os dois principais candidatos que sinalizavam com mudanças radicais, o conservador José Lopez Murphy e a esquerdista moderada Elisa Carrió, ficaram em terceiro e quarto lugar. Nos dois primeiros lugares, classificados para um segundo turno que não chegou a se realizar, ficaram o ex-presidente Carlos Menem e o preferido do então presidente Duhalde, Néstor Kirchner.

Tanto o resultado no Brasil em 1998 quanto o da Argentina em 2003 não constituíram surpresas e se explicam pela conjuntura política própria de cada tempo e lugar. Indicam que a derrota do governismo em uma circunstância de crise econômica está longe de ser uma equação matemática.

Dilma Rousseff e José Serra, que hoje compõem a mais provável polarização em um segundo turno presidencial em 2010, possuem características semelhantes: radicalismo de esquerda na juventude, formação econômica e a imagem de que preferem a disputa política à composição. Um marketing eleitoral bem feito pode convencer os espectadores do processo de que estamos diante de duas pessoas preparadas para conduzir o Brasil em cenário adverso. Mas forjar alianças amplas talvez seja um atributo que falte a ambos.

Em nove eleições presidenciais democráticas realizadas no país, apenas em uma- a primeira, em 1945- houve a eleição de um ex-ministro do governo anterior, novato em disputas pelo voto: no caso, o marechal Eurico Dutra. Caso vença, Dilma seria o segundo caso em 65 anos. Serra conta hoje com um apoio à sua candidatura mais sólido dentro do parceiro DEM do que em seu próprio partido. Para a eleição de 2010, terá que se defrontar com o rival Aécio Neves. Na eleição municipal recém-terminada, precisou travar um embate surdo com o seu antecessor Geraldo Alckmin.

Se o agravamento da crise econômica diminuir o espaço de Lula para organizar a campanha de sua preferida, estará aberto o caminho para uma eleição pulverizada em 2010, em que não será impossível candidaturas próprias do bloco de esquerda e do PMDB.

Pode parecer desnecessário frisar a imensa quantidade de situações que ainda podem surgir nos próximos dois anos e direcionar o quadro eleitoral para um lado ou para o outro. Mas este é um exercício útil para exorcizar dois riscos: o de despolitizar um processo que é essencialmente político e de tornar a-histórico o que faz parte da história.

César Felício é repórter de Política. A titular da coluna, às quintas-feiras, Maria Inês Nassif, está em férias

Os “arranhões” da crise e os testes das disputas travadas no Congresso

Jarbas de Holanda

Em meio a dados contraditórios sobre os efeitos da crise global no Brasil – destacando uma melhora das operações de crédito no mês de novembro em relação a outubro e ignorando indicadores negativos, como a queda de 18% neste mês da rolagem de empréstimos para os setores privado e público e as férias coletivas de várias grandes empresas – o presidente Lula utilizou a reunião ministerial da segunda-feira sobretudo como cenário de campanha publicitária a ser lançada em dezembro com a dupla finalidade de motivar a população a continuar consumindo e de mostrar a eficácia das respostas do governo a tais efeitos. Apenas lembrando que poderá tomar novas medidas anticrise se ela se agravar (como a redução do IOF admitida como possibilidade pelo ministro da Fazenda), Lula reduziu a “alguns arranhões” as conseqüências que deverão ocorrer e voltou ao otimismo inicial reafirmando a crença num crescimento de 4% do PIB em 2009, ou seja, numa queda bem menor que a prevista pelo conjunto de analistas.

Disputas no Congresso – No aquecimento dos trabalhos dos senadores e deputados neste novembro pós-eleições municipais, destacam-se os seguintes temas ou questões: 1 – A ameaça de conflito entre o Legislativo e o Palácio do Planalto gerada pela devolução da MP das fi (ou pi) lantrópicas, que dá anistia a todas as entidades do gênero devedoras da Previdência. A inesperada devolução dela ao Executivo pelo presidente da Casa, Garibaldi Alves – um ato inédito de protesto do Congresso contra o uso abusivo de MPs – terá de ser submetida ao plenário. Paralelamente ao esforço que o governo faz para anular o ato de Garibaldi, o líder de sua bancada, Romero Jucá, prepara projeto de substitutivo que exclui anistia as entidades suspeitas de desvio de recursos públicos e de outras irregularidades. 2- A verdadeira declaração de guerra do governador de São Paulo,José Serra, ao projeto federal da reforma tributária, às vésperas da votação no plenário da Câmara do parecer do relator, Sandro Mabel, já aprovado na Comissão Especial que trata da matéria. “O que o relatório propõe – afirmou o secretário da Fazenda do governo Serra, Mauro Ricardo Costa, numa entrevista ao Estado de S. Paulo, de ontem – é a destruição da indústria paulista”. Enfrentando resistência também do governador mineiro Aécio Neves – embora menor e aberta a possível negociação -, o projeto (que inclui a fusão do PIS, da Cofins e do Salário-Educação no IVA, novo Imposto de Valor Agregado), terá ou teria a vigência de suas mudanças em janeiro de 2011, constituindo a única reforma econômica tentada no segundo governo Lula. Com forte empenho do deputado e ex-ministro Antonio Palocci, que preside a Comissão Especial. E 3– Por um lado, o aprofundamento das articulações do comando da bancada do PMDB no Senado com vistas à preservação da presidência da Casa no início de 2009 e, por outro, as reações da bancada e da direção do PT contra isso, e para a conquista do cargo, com apoio cauteloso do presidente Lula.

As tensões políticas em torno desses temas, além de relacionar-se a conflitos específicos neles contidos, constituem testes do equilíbrio ou do reequilíbrio de forças no Congresso – num plano, entre as bancadas governista e da oposição e, noutro plano, entre o Planalto e um PMDB tendente a terminar com o alinhamento automático ao governo Lula. Tudo, em crescente medida, voltado para a sucessão presidencial de 2010.