sábado, 6 de dezembro de 2008

Um certo comunismo do Ocidente


Giuseppe Vacca
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: Gramsci e o Brasil


Togliatti percebeu tempestivamente a crise do centrismo [governos exclusivamente democrata-cristãos] e favoreceu a política de movimento de Pietro Nenni [secretário-geral do PSI], tendo em vista a “abertura à esquerda”. Ao contrário, não se pode dizer que tenha percebido o que acontecia na economia italiana e desembocaria no “segundo milagre econômico” de 1958-1962. O PCI teve de atualizar apressadamente sua análise do capitalismo italiano e daí extrair suas conclusões no período inicial do centro-esquerda. A mudança fora grande, e, ao intervir na conferência operária de 5-7 de maio de 1961, Togliatti reconheceu que estavam se transformando algumas características originais da economia italiana.

Era a primeira vez na história do nosso país, em toda a história da burguesia italiana, que ela conseguia alcançar níveis de competitividade internacional e podia, assim, apresentar-se na arena internacional em posição, se não sempre vantajosa, pelo menos de igualdade com as outras burguesias de estrutura econômica mais forte.

Partindo disso, o PCI procedeu a uma renovação programática, cujo eixo era — tal como em 1945-1946 — uma economia de altos salários e alto consumo. Mas, diferentemente de quinze anos antes, o objetivo parecia mais fácil de ser alcançado. A Itália encaminhava-se para o “pleno emprego”. A “programação democrática”, a industrialização do Sul, a reforma dos pactos agrários, a reforma urbanística, fiscal, da escola e da universidade, a realização do ordenamento regional e de um Welfare moderno constituíam os pontos de um programa compartilhado por um arco de forças muito amplo.

Tal arco compreendia todo o movimento sindical, os comunistas, os socialistas, os socialdemocratas, os republicanos e a esquerda católica. Com os dois encontros de Sanpellegrino e o Congresso de Nápoles [1962, secretário Aldo Moro], aquele programa foi também aceito pela DC e posto na base da “experiência de centro-esquerda”. Nascendo do pressuposto da “demarcação da maioria à esquerda”, segundo Togliatti a nova fórmula política podia redundar numa “manobra transformista” ou, então, “ser o início de uma renovação” destinada a desembocar “numa virada à esquerda da política nacional”: muita coisa dependia da iniciativa do PCI e, mais ainda, da ação das massas populares que compartilhavam aquele programa.

No plano parlamentar, o PCI, pois, decidiu exercer uma oposição “de tipo particular”: a nacionalização da energia elétrica foi aprovada com seu voto determinante. No plano da mobilização de massas, apoiava-se nas reivindicações operárias, que já iam além do salário e se estendiam à organização do trabalho, ao poder sindical na fábrica e às reformas sociais. Na iniciativa política, Togliatti esforçou-se por reforçar a unidade entre as forças que compartilhavam o programa reformador, enunciando com clareza seus objetivos: antes de mais nada — afirmava —, aquele conjunto de forças era o mesmo que, com sua unidade, permitira elaborar a parte mais avançada da Constituição relativa à programação econômica e aos direitos sociais; em segundo lugar, podia-se fazer referência ao precedente histórico significativo de que tal unidade não desaparecera, mas continuara a operar mesmo depois que as esquerdas haviam sido expulsas do governo, até 1948.

De todo modo, agora o PCI não visava mais à formação de governos de unidade antifascista, uma vez que não se tratava de “destruir as raízes do fascismo”, mas de realizar reformas de estrutura num capitalismo já avançado, maduro para a introdução de “elementos de socialismo”. Não era imaginável, pois, realizar aquele programa sem corroer “o monopólio político da DC”: vale dizer, sem provocar uma mudança de equilíbrios políticos e sociais tão amplo e profundo que colocasse em crise a unidade política dos católicos.

Esta perspectiva se baseava numa visão dos primeiros dois decênios da Itália republicana, segundo a qual, em 1947-1948, o movimento reformador desencadeado pela Resistência, pela vitória na guerra de libertação e pelos governos de unidade antifascista fora interrompido, mas não derrotado, graças sobretudo ao PCI, que, nos quinze anos seguintes, havia dirigido a ação das “classes populares” de um modo que não perdessem de vista a função nacional e a capacidade de iniciativa quanto aos temas essenciais do desenvolvimento democrático do país, conquistadas na Resistência e na fase constituinte da República.

Togliatti escreve no editorial do primeiro número de Rinascita semanal:

Há vinte anos que se combate na Itália. Há vinte anos que duas forças adversárias, uma de progresso e revolução, outra de conservação e reação, se enfrentam e se medem num conflito que teve as fases mais diferentes, nenhuma das quais, no entanto, se concluiu de um modo que pudesse significar o predomínio definitivo de um contendor ou do outro [...]. O gigante da energia popular não pôde ser derrubado, [porque as massas populares] se tornaram, num momento decisivo da história nacional e da vida do Estado italiano, protagonistas desta vida e desta história.


Foram as classes populares que fundaram o Estado italiano moderno. Elas, e não a velha camada dirigente e privilegiada, é que organizaram e dirigiram a Resistência, a guerra de libertação, a conquista de um regime de democracia e de progresso. Deste dado de fato parte e nele se baseia toda a situação do nosso país. E é um dado que não muda, que conserva todo o seu valor, não obstante as transformações profundas que a situação apresenta.

Retrospectivamente, estas avaliações pressupunham um confronto entre a Resistência e o Risorgimento, ao qual Togliatti aplicava a categoria gramsciana de “revolução passiva”. A ocasião lhe aparecera por ocasião de um seminário feito em Turim, num ciclo de palestras intitulado “O Risorgimento e nós”. Sua palestra fora dedicada ao tema “As classes populares no Risorgimento”, e então Togliatti desenvolveu uma ampla argumentação contra a tese historiográfica de Rosario Romeo, que atribuía a Gramsci a interpretação do Risorgimento como “reforma agrária frustrada”.

O argumento de Togliatti se encerrava acolhendo o paralelo entre o Risorgimento e a Resistência, mas, a propósito da definição desta como “segundo Risorgimento”, afirmava que, mais do que uma reiteração, a Resistência representara uma “correção” do Risorgimento, já que, com ela, pela primeira vez na história da Itália, as classes populares haviam assumido um papel predominante na fundação e na vida do novo Estado.

As questões enfrentadas pelo centro-esquerda diziam respeito a todas as forças políticas representativas do movimento operário e deviam ver a participação solidária de tais forças no governo do país. Por isso, no IX e no X Congresso do partido [1960 e 1962], Togliatti retoma, ainda que com muita cautela, o tema do “partido único” entre comunistas e socialistas, que constituíra o objeto de um relatório específico de Luigi Longo durante o V Congresso [1946].

Além disso, repropõe a comparação entre comunismo e reformismo, insistindo, como em 1945-1946, que o ponto central da discussão não se referia ao gradualismo ou à via parlamentar, método e perspectiva compartilhado por ambos, mas sim à concatenação das reformas “parciais” num único projeto e num único processo de reformas da sociedade e do Estado. Em seguida, avançando mais ainda na comparação, explicita os pressupostos reformistas da “via italiana ao socialismo”; e, no relatório apresentado ao X Congresso, esclarece que a perspectiva escolhida pelo PCI era a do socialismo–processo.

É evidente que, ao aceitar esta perspectiva, que é a do avanço para o socialismo na democracia e na paz, nós introduzimos o conceito de um desenvolvimento gradual, no qual é bastante difícil dizer quando, precisamente, se dá a mudança de qualidade.

Obviamente, uma evolução reformista do quadro político e econômico italiano não dependia só do PCI, mas sobretudo da disponibilidade por parte das classes dirigentes de reconhecer a legitimidade do movimento operário como força de governo, e esta possibilidade, que jamais ocorrera na história da Itália, nem mesmo naquele momento era tomada em consideração.


Como se sabe, tomando como pretexto uma inversão não muito grave do ciclo econômico internacional, no início de 1964 o Tesouro e o Banco da Itália interromperam o programa reformador do centro-esquerda, condenando esta fórmula política ao fracasso. O modo de desenvolvimento baseado em baixos salários e baixo consumo devia ser preservado; as características originais do capitalismo italiano não admitiam “reformas de estrutura”. Assim, no editorial de Rinascita Togliatti conclui sua reflexão sobre a história da Itália precisamente com esta questão, deixando em aberto perguntas fundamentais e extremamente dilemáticas:

Em que medida os grupos dirigentes da grande burguesia italiana, industrial e agrária estão dispostos a admitir até mesmo um conjunto de modestas medidas de reformismo burguês? Ou seja, em que medida é possível, na Itália, um reformismo burguês? Convidamos os estudiosos de história e de economia a aprofundar esta questão, que é de decisiva importância não tanto para julgar o passado quanto para traçar as linhas de uma perspectiva. A questão está estreitamente ligada à sorte de um partido socialdemocrata, que na Itália jamais conseguiu ter o mesmo papel desempenhado em outros países europeus, e dos outros partidos operários. [Ver também: A esquerda italiana e o reformismo no século XX]

Giuseppe Vacca é o presidente da Fundação Instituto Gramsci, em Roma. Este texto é parte de uma intervenção no seminário internacional Togliatti no seu tempo, realizado em dezembro de 2004, naquela cidade.

O que Lula diz, o que Lula faz


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tomado de aparente ira santa, em cerimônia-comício no Rio de Janeiro: "O que aconteceu com o famoso mercado onipotente?

Quando o mercado tem uma diarréia, quem eles chamaram para salvá-lo? O Estado que eles negaram durante 20 anos".

De texto assinado pelo mesmíssimo Lula, após a cúpula do G20 no mês passado em Washington:

"Nosso trabalho [dos líderes do grupo] será guiado por uma crença compartilhada de que os princípios de mercado, de livre comércio e regimes de investimento abertos, e mercados financeiros efetivamente regulados, estimulam o dinamismo, a inovação e o empreendedorismo que são essenciais para o crescimento econômico, o emprego e a redução da pobreza".

Não há, pois, o menor parentesco entre o que diz o presidente em público e o que assina no escurinho do cinema, bem ao lado do "eles", o sujeito oculto de sua primeira frase -no caso, os líderes mundiais que transformaram em religião a crença no livre mercado.

O comício do Rio é, pois, retórica vazia, engana-trouxa.

No comício do Rio, Lula deu a entender que está havendo uma recuperação do Estado, "negado durante 20 anos". Engano. O que está havendo é o de sempre: a privatização do dinheiro público e a estatização do risco. Nada que não tenha acontecido desde que os mercados se tornaram "onipotentes".

O Estado dá dinheiro, mas não tem o comando do que fazem com ele. Tanto que o próprio Lula se sentiu compelido a reclamar, também publicamente, de que os bancos não estavam soltando o dinheiro liberado pelo governo. Foi desmentido no dia seguinte por Fabio Barbosa, presidente da Febraban, e enfiou a viola no saco.

Enfim, nada de novo na retórica de Lula; apenas o retorno às bravatas do passado. Inócuas.

Soneto piorado


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A emenda constitucional que altera o rito de tramitação das medidas provisórias, recentemente aprovada na Câmara em primeiro turno, ainda precisa passar por outra votação antes de voltar ao Senado, de onde se originou a proposta.

Mantido o texto na segunda rodada, porém, a emenda não encontrará ambiente favorável à aprovação entre os senadores. Um parecer elaborado pela consultoria legislativa da Casa em resumo considera que a Câmara piorou o conteúdo da proposta apresentada com o objetivo de conter os excessos do Executivo e amenizar as carências do Legislativo.

De acordo com o parecer, o texto aprovado pelos deputados não faz uma coisa nem outra. Além de manter inalterado o poder do Executivo de obstruir a pauta de votações dos plenários da Câmara e do Senado, reduz o prazo de "trancamento", cria novos obstáculos aos trabalhos das comissões de Constituição e Justiça das duas Casas e acaba com a prerrogativa do Parlamento de impedir a tramitação de medidas provisórias que não sejam relevantes e/ou urgentes.

Esse trabalho vai servir de orientação aos senadores, que preferem deixar os deputados concluírem a votação antes de manifestar suas posições.

Pela regra de hoje, a MP chega ao Congresso e, em tese, passa por uma comissão especial para exame de relevância e urgência. Como na prática a comissão nunca se reúne, a Câmara resolveu que as medidas provisórias seguem para a CCJ, que teria 10 dias para se pronunciar. No sétimo dia, a MP tranca a pauta da comissão, cujo voto não tem caráter terminativo, o que permite à medida seguir direto para o plenário.

Diz a consultoria do Senado: "Os dois resultados imediatos dessa sistemática são a extinção da possibilidade do exame do mérito antes da votação em plenário e o ?trancamento? das pautas das CCJs, habitualmente já assoberbadas de trabalho".

Todas as propostas entram no Legislativo pelas comissões de Constituição e Justiça, que, instituída a nova norma das MPs, teriam raros momentos de pauta liberada para o exame de outros assuntos.

Quanto à pauta dos plenários, o "trancamento" não ocorreria mais depois de 45 dias de editada a medida, mas depois de 15 dias, com a possibilidade de a maioria absoluta aprovar a inversão de prioridade.

Na prática isso pode favorecer o governo, que terá a chance de mobilizar a maioria para assegurar a votação de temas de seu interesse, sem precisar revogar medidas provisórias para liberar a pauta e permitir a votação de propostas consideradas prioritárias, como ocorreu com a CPMF.

No entendimento da consultoria legislativa do Senado, "há outras críticas a serem feitas à técnica ou à redação da proposta, mas o fundamental é a percepção de que, novamente, a emenda pode sair pior que o soneto".

Senso comum

O presidente Lula é ao mesmo tempo o melhor tradutor e porta-voz do princípio ufanista segundo o qual "com o brasileiro não há quem possa".

A pesquisa Datafolha que registra 70% de aprovação mostra também que 42% das pessoas acham que a crise internacional arrasa quarteirões no "estrangeiro", mas no Brasil será apenas "uma marolinha".

Um produto de legítima fabricação nacional, resultado do complexo de vira-lata travestido de arrogância leviana.

Relações

Às turras com o partido por causa das acusações de corrupção e ineficiência na Fundação Nacional de Saúde, o ministro José Gomes Temporão ainda assim chegou a confirmar presença no jantar do PMDB quarta-feira, na residência oficial da presidência do Senado.

A assessoria do ministro da Saúde mandou perguntar se haveria discursos. Não necessariamente, informou o cerimonial.

Como Temporão não apareceu, seus companheiros de partido não entenderam se ele queria fazer ou ouvir discurso; na dúvida, acreditam que pretendia mesmo se livrar de ambas as hipóteses.

Espectador

No mesmo jantar, o senador José Sarney manifestou seu grau de confiança na chance de prosperarem as reformas política e tributária: "Em 50 anos de Congresso, nunca vi nenhuma das duas prosperar".

Guerra na floresta

O senador Renan Calheiros leva a fama, mas o maior combatente da candidatura do petista Tião Viana é o senador acreano Geraldo Mesquita.

Aparentemente um homem de maneiras amenas, quando o assunto é seu adversário regional, Mesquita vira uma fera ferida.

Já Calheiros tem dito que seu problema não é com Viana, mas com a bancada do PT toda.

Ou é um ingrato, já que o PT se expôs durante o processo de julgamento do então presidente do Senado no Conselho de Ética - em particular o senador Aloizio Mercadante ao defender abertamente a abstenção -, ou o PT na época quebrou alguma regra do combinado.

Lula nas alturas e o auto-engano


Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - Lula é o presidente mais bem avaliado da história recente. Bateu seu próprio recorde. Em setembro, 64% aprovavam sua administração. Hoje, 70% o consideram bom ou ótimo. É um patrimônio gigantesco para um ocupante do Palácio do Planalto em tempos de democracia e às vésperas de uma grande crise na economia.

Gráficos do Datafolha compararam ontem Lula a outros presidentes pós-ditadura militar (1964-1985). José Sarney (1985-90) nunca passou de pífios 11% de aprovação.

Fernando Collor (1990-92) foi a 36%. Itamar Franco (1992-94) avançou a 41%. FHC no primeiro mandato (1995-98) bateu em 47%.

No segundo período, o tucano foi uma decepção -sua taxa máxima caiu a 31%. Tudo somado, ninguém chegou nem perto do petista.

Mas as curvas das pesquisas do Datafolha contêm mais detalhes do passado democrático do Brasil. Em março de 1990, antes de Collor tomar posse (naquela época os eleitos assumiam nesse mês), 71% esperavam que ele fizesse um governo bom ou ótimo. Três meses depois, a aprovação da administração collorida era de apenas 36%.

Nos seus três primeiros meses de governo, Collor fez uma das mais catastróficas gestões políticas e econômicas da história do país. O dinheiro dos brasileiros ficou congelado nos bancos. A crise econômica foi brutal. O PIB (soma das riquezas do país) caiu 4,4%. A inflação de 1990 atingiu 1.639%.

Nada indica um ano de 2009 semelhante ao de 1990, embora seja certa alguma desaceleração da economia brasileira. O tamanho da queda determinará a extensão do recuo na popularidade estratosférica de Lula. O presidente sabe o que se passa e prefere recomendar um pouco de auto-engano. Nas suas finas palavras, ninguém fala "sifu" para um doente. Pode ser. Mas fingir não enxergar a crise não ajuda em nada na sua solução.

Lula perdeu o rumo na reta final


Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Vá lá que a sentença pessimista peque pelo exagero. Mas não tanto que invalide a especulação sobre as possíveis saídas do presidente para encontrar o caminho limpo e o apoio popular nos altos índices ascendentes das pesquisas, dos sucessos da política econômica com mais R$ 300 bilhões de dólares nas arcas do Tesouro, sob a sovina vigilância do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.

Na contramão, a bagunça na casa das mordomias, das mutretas do pior Congresso desde a queda do Estado Novo, viciado em levar vantagem na negociação do voto e que não dá segurança e tranqüilidade ao governo, mesmo com o alto preço da barganha de ministérios, autarquias, cargos de confiança, controle de obras de milhões de reais, desperdiçados na angústia da necessidade para adquirir o apoio e o voto das legendas que ornamentam o leviano bloco majoritário.

Por falta de experiência, de apreço pelo jogo parlamentar, Lula cometeu erros que passaram despercebidos no período de bonança e hoje mais atrapalham do que ajudam. Certamente, o presidente não precisaria espichar o atrito com o presidente do Senado, Garibaldi Alves, no final do mandato, com a teimosia de abusar das medidas provisórias para trancar a pauta das votações e disputar com o Supremo Tribunal Federal (STF) o controle dos votos e o direito de legislar atropelando o Legislativo. E era tal a segurança do presidente de que talvez não elegesse um poste, mas faria seu sucessor com uma candidatura feita em casa, que lançou numa seqüência de discursos, entrevistas e conversas com jornalistas a candidatura da chefe da Casa Civil, ministra Dilma Rousseff, com 8% na pesquisa divulgada no blog do prefeito Cesar Maia. Os resmungos dos frustrados do PT, que são muitos e com cacife, que sequer sustentam as pretensões a uma vereança municipal.

A ministra-candidata conquistou espaço no Palácio do Planalto e anexos. Um tanto sem jeito, procurou domar o seu temperamento, clarear com sorriso o rosto sempre sério e com a habilidade no manejo do esquema de publicidade oficial operou a mágica de, até agora, espaçar as pesquisas e manter o nome da candidata do presidente fora das listas de aspirantes. Alguns percentuais que furaram o cerco mereceram duas linhas de registros em colunas, e os sinos não bimbalharam. Um dígito não enche o bojo de um candidato a mandato majoritário, de prefeito a presidente.

Mas, sem concorrente em casa, com a oposição a brincar de pique entre as candidaturas do favorito, o governador José Serra, de São Paulo, e o obstinado Aécio Neves, governador de Minas, Lula decidiu apresentar a candidata ao eleitorado, incluindo-a em todas as suas viagens de um campeão de milhagens aéreas no Brasil e no exterior. Com o crachá de responsável pelo Projeto de Aceleração do Crescimento, o PAC de verbas milionárias e obras nas áreas carentes, alem de planos mais ambiciosos de recuperar a malha rodoviária em pandarecos, os portos abandonados nos seis anos dos dois mandatos.

Ora, tanto esforço, empenho, discursos, entrevistas, viagens pelo mundo foi de ladeira abaixo nas enxurradas que castigaram Santa Catarina, Espírito Santo e estado do Rio, com o horror de uma das maiores, senão a maior tragédia da nossa crônica de desleixo com a natureza, de omissão dos governos diante da ocupação de áreas de risco, com casas e favelas equilibradas em morros ou na beira dos rios que costumam inundar amplas áreas nos temporais de anos de enchentes, com mortos, desabrigados, casas destruídas e os milhares de famintos que tudo perderam, menos a vida e não sabem por onde recomeçar.

Lula não se omitiu, demorou a avaliar a dimensão da calamidade. De lá para cá, a corrente da solidariedade da população lota centenas de caminhões com a doação de roupa, calçado, cobertores e sacos de alimento, e complementa a gigantesca mobilização oficial de todo tipo de socorro. A sucessão saiu da primeira página dos jornais, da capa das revistas, do destaque dos noticiários das redes de TV. A ministra-candidata espera a hora de voltar ao palco. Seu lugar continua inabalável na cotação palaciana.

Mas, até que a água escoe, comece o mutirão para a construção de milhares de residências, se normalize o tráfego nas rodovias e na malha ferroviária e os portos retomem parte da rotina, a ministra-candidata terá que esperar.

Governo de união


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Com a situação econômica se deteriorando a cada dia que passa, e faltando ainda intermináveis 45 dias para a posse, o presidente eleito Barack Obama está se desdobrando para ocupar os espaços políticos que revelem uma tendência do que será o seu governo sem se envolver diretamente com a solução da crise, para não receber culpas indevidas nem atrapalhar o que resta de governabilidade na Casa Branca. Mas, justamente pela gravidade da situação, ele procura demonstrar que está em ação durante a transição, enquanto o presidente George Bush continua a cada dia mais se enterrando nas derradeiras declarações políticas.

Ontem, depois dos números trágicos das demissões em novembro, que chegaram a 6,7% dos trabalhadores e podem ir a 9% até o final do ano - perda de 533 mil empregos, o pior número desde dezembro de 1974 -, ele admitiu pela primeira vez que o país está mesmo em recessão, o que acontece há um ano e foi oficialmente anunciado esta semana pelo Escritório Nacional de Pesquisa Econômica, um instituto de economia dos EUA responsável por definir quando o país está oficialmente em recessão, e quando esta chegou ao fim.

Obama é o presidente que está definindo mais rápido seus principais assessores, já escolheu 13 dos 24 cargos de primeiro escalão. Antes dele, apenas Bush pai montara seu governo de maneira rápida - escolhera oito de seus ministros até esta data -, mas vinha de suceder um correligionário, o ex-presidente Ronald Regan, de quem fora vice por oito anos, e tinha uma equipe em atuação para sua escolha.

E a população está gostando da hiperatividade do futuro presidente. Uma pesquisa de opinião divulgada ontem pela CNN mostra que 75% dos cidadãos aprovam as escolhas feitas até agora para o primeiro escalão do governo, sendo que a escolha mais polêmica, a da senadora Hillary Clinton para a Secretaria de Estado, tem a aprovação de 70% dos pesquisados.

A preocupação, e até mesmo o desencanto de muita gente com as escolhas centristas do presidente eleito Barack Obama, não refletem a opinião da maioria da sociedade, que está aprovando essa postura mais equilibrada na nomeação de seu ministério.

A revista inglesa "The Economist" diz que as escolhas de Obama estão aliviando os grupos que temiam que o futuro governo fosse muito para a esquerda, mas muitos eleitores deles podem estar decepcionados.

Os que esperavam mudanças radicais, inclusive de nomes, estão frustrados, mas o próprio Barack Obama se encarregou de responder a esses, dizendo que a mudança de atitude do governo depende de suas orientações, e ela acontecerá com essa equipe de experientes servidores públicos.

A presença da senadora Hillary Clinton na Secretaria de Estado certamente não é uma mudança política, mas a maneira como a política externa americana será conduzida certamente representará uma mudança em relação à visão de mundo dos neoconservadores que dominavam a política externa dos Estados Unidos no governo Bush.

Com a montagem de um governo centrista e bipartidário, Barack Obama está conseguindo até se aproximar do Partido Republicano, que, mais que simplesmente aliviado com seu comportamento político, já tem uma parte se dizendo disposto a ajudá-lo no Congresso.

A permanência de Robert Gates à frente do Pentágono também ajudou a acalmar os republicanos, que vêem nessa escolha uma garantia de que a segurança nacional não será negligenciada.

Com a vitória do senador Saxby Chambliss na Geórgia, no segundo turno da disputa, os republicanos conseguiram barrar a possibilidade de os democratas atingirem 60% das cadeiras do Senado, o que lhes proporcionaria a rara oportunidade de impedir que a minoria fizesse qualquer tipo de obstrução, garantindo assim a aprovação das medidas econômicas com rapidez.

Mas é previsível que senadores do Partido Republicano se prontifiquem a votar com os democratas em determinados assuntos urgentes, como o futuro plano de estímulo da economia, que deve ser apresentado ao Congresso logo depois da posse, em 20 de janeiro.

A maneira como Obama está montando sua equipe também demonstra claramente que ele está pacificando internamente o Partido Democrata, a começar pela parte que tem a liderança da senadora Hillary Clinton. Barack Obama, aliás, está adotando a mesma estratégia para dentro de seu partido que o ex-presidente Bill Clinton, e os dois têm a mesma razão para isso: nem Clinton nem Obama eram as escolhas da cúpula partidária nas eleições que venceram.

Bill Clinton foi eleito presidente em novembro de 1992, acabando com 12 anos de gestão republicana na Presidência. Mas foi escolhido candidato depois que as principais lideranças democratas desistiram, especialmente o governador de Nova York, George Cuomo, por não acreditarem na possibilidade de derrotar Bush pai devido à sua popularidade após a Guerra do Golfo.

Desta vez também a preferida da direção partidária era a senadora Hillary Clinton, e as primárias eram consideradas apenas uma etapa para referendar sua candidatura.

Tendo vencido sem o apoio inicial do partido, Obama tratou de uni-lo, trazendo para dentro de seu governo todos os principais competidores: Joe Biden foi escolhido vice-presidente, Hillary Clinton será a secretária de Estado, o governador do Novo México, Bill Richardson, será o ministro do Comércio.

Unindo o partido, o presidente eleito tem o controle do Congresso, já que, assim como no primeiro governo Clinton, os democratas têm a maioria tanto na Câmara quanto no Senado.