A maldição de Illinois


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

NOVA YORK. O escândalo envolvendo o governador de Illinois, Rod Blagojevich, tomou conta da cena política americana, especialmente porque envolve indiretamente o presidente eleito, Barack Obama, cuja vaga no Senado estava sendo motivo de barganha não apenas política, mas, sobretudo, financeira. O endosso à tese de que o governador Blagojevich deve renunciar ao cargo foi uma exigência das bases políticas de Obama, que tentou, no primeiro momento, não se envolver no caso, apenas lamentando a situação por seu estado.

Ontem, ele teve que ir mais além, pois já começa um movimento entre os republicanos para tentar ligar os casos de corrupção em Illinois - vários dos últimos governadores acabaram tendo problemas na Justiça, e o antecessor de Blagojevich está na cadeia - ao partido democrata como um todo, embora Obama não faça parte do grupo político do governador, que não o apoiou quando concorreu ao Senado em 2004, nem teve o apoio do então senador Obama quando se candidatou ao governo em 2002.

Os republicanos começam a disseminar a tese de que Obama é o fruto de uma política tradicionalmente corrupta do estado, que é considerado o mais corrupto entre todos os demais estados americanos.

No entanto, foi uma conversa recente de Obama com o líder democrata na Câmara estadual, para forçar o partido a apoiar uma lei que combate a corrupção política com mais rigor, que fez as investigações federais andarem mais rapidamente. O governador de Illinois era contra a lei e acabou sendo derrotado com a pressão de Obama.

O que os democratas temem é que, a partir desse caso, os republicanos ganhem um tema para manter o futuro presidente sob pressão, assim como esteve durante bom tempo sob pressão o ex-presidente Bill Clinton, devido à investigação do escândalo imobiliário de Whitewater na sua cidade de Arkansas.

Embora nada tenha sido provado contra o casal Clinton, enquanto as investigações se desenrolaram sempre havia insinuações contra o então presidente.

A estratégia dos republicanos ficou clara quando, ontem, eles desafiaram Obama a confirmar no posto o procurador federal Patrick Fitzgerald, que está à frente das investigações no estado.

Um outro aspecto que pode ferir os democratas é a revelação de que Jesse Jackson Jr, deputado por Illinois, seria o "candidato nº 5" citado nas gravações pelo governador, de quem ele teria recebido uma oferta de US$500 mil pela vaga.

Filho de um dos principais líderes dos direitos civis dos negros, o reverendo Jesse Jackson, o deputado comandou a campanha de Obama no estado.

Envolvido na preparação de seu programa de governo para enfrentar uma das maiores crises econômicas já surgidas desde a Grande Depressão, Obama vê-se agora em meio a uma disputa política que deverá ser dura.

Também no Congresso os republicanos mostram que não estão dispostos a facilitar a vida do futuro presidente democrata.

Enquanto a bancada democrata na Câmara chegou a um acordo com a Casa Branca para liberar uma parte dos recursos necessários para salvar as montadoras de Detroit, os republicanos no Senado anunciam a decisão de tentar obstruir qualquer tipo de acordo, sob a alegação de que não há garantias suficientes de que as três grandes - Chrysler, Ford e GM - mudarão sua gestão para se tornarem mais produtivas e produzir carros menos poluentes.

Embora também esteja empenhado em extrair das montadoras americanas compromissos que levem a indústria a patamares mais modernos de gestão e à produção de automóveis mais econômicos e adaptados a uma política de proteção ao meio ambiente, tudo o que o presidente eleito Obama não quer é enfrentar uma onda de demissões em massa no setor automotivo.

Cada vez fica mais claro que a Petrobras é uma síntese da armadilha em que se meteu o governo do PT.

Para preservar e elevar os investimentos, que, de fato, é o que mais se precisa na economia brasileira no momento, foge de ajustar o custeio e, tendo atingido o limite da capacidade de se endividar junto aos bancos estatais, secando o rarefeito mercado de crédito, agora se prepara para entrar nas reservas internacionais do país com a criação de um "fundo soberano", que normalmente é usado por um país para investir em outro.

A tese original, do presidente do BNDES Luciano Coutinho, era usar o fundo como fonte para financiar a internacionalização das empresas brasileiras, mas a hora e o fluxo mudaram radicalmente e ninguém vai investir no exterior, quando falta investimento dentro do país.

Quem acompanha de perto a situação da Petrobras aposta que o ministro Edison Lobão, das Minas e Energia, deu a senha do que está por vir ao acenar com a possibilidade de a empresa receber parte das reservas internacionais do país para garantir a implementação de seu cronograma de investimentos, em meio às limitações de crédito impostas pela crise global.

Para sacar das reservas, o caminho já desenhado é o do fundo soberano, cujo projeto está no Senado. O governo quer votá-lo até o final deste mês.

Para convencer a oposição, está disposto a antecipar a escolha do próximo nome a ingressar no TCU, disputa em que o democrata José Jorge é hoje franco favorito.

Illinois é aqui


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Rod Blagojevich, governador de Illinois, foi preso não só, mas também, por pôr à venda a cadeira de senador do presidente eleito dos Estados Unidos, no conhecido mercado do toma-lá-dá-cá.

Corrupto de outros carnavais, há mais de um ano ele vinha sendo investigado pelo FBI, que não teve dificuldade para decodificar o significado das gravações de conversas em que o governador expunha abertamente seus propósitos em relação à vaga de Barack Obama no Senado.

“Eu quero é ganhar dinheiro. Essa cadeira no Senado vale muito. Não é o tipo de coisa que se dê para alguém em troca de nada”, dizia Blagojevich em uma das gravações.

Se não conseguisse um bom preço, planejava assumir ele mesmo o lugar do presidente eleito. “Você está escutando o que estou dizendo? Se eu não conseguir o que quero, vou ficar com essa vaga para que eu tenha uma possibilidade de barganha”, informava ao interlocutor, supostamente um dos candidatos à indicação, um pretendente a comprador.

Mais explícito impossível. Ousado até, para nossos padrões de conversas truncadas, mais ou menos em código, que de quando em vez aparecem nos grampos da Polícia Federal.

O preço incluía um salário de US$ 300 mil anuais em alguma fundação benemerente, um emprego em conselho corporativo para a mulher, financiamento de campanha eleitoral e um cargo no Senado para um afilhado político.

O governador Blagojevich já carregava em sua folha corrida a ameaça de cortar o acesso do jornal Chicago Tribune a verbas públicas por causa de reportagens críticas a ele.

Nessa altura do relato do episódio, o leitor já identificou familiaridades a mancheias: pressão (implícita ou explícita, financeira ou política) contra a imprensa, abuso de poder, manejo privado do patrimônio público, financiamento de campanha em troca de favorecimento mediante o uso das prerrogativas do cargo, solicitação de “boquinha” para si e para a mulher, além de uma sinecura para apaniguado.

Nada nesse rol ecoa extravagante aos ouvidos do brasileiro habituado ao convívio cotidiano com todas essas práticas - corporativismo, fisiologismo, nepotismo - às quais se acrescenta a similitude (parcial, porém) com o método de substituição de senadores que enseja negociatas e atos de lesa-representação.

Difere a maneira desabusada do governador, a rapidez da providência e a reação do Partido Democrata pedindo a renúncia do filiado. Por aqui os partidos costumam proteger os correligionários a despeito de todas as evidências e só em último caso (quando se põe em risco a agremiação) repudiam-lhe as malfeitorias. Se o réu for importante, um governador, um senador, o espírito de corpo não fala, grita.

No tocante à substituição do senador, a semelhança é apenas parcial, embora pareça igual por dispensar a participação do eleitorado.

Aqui, o substituto já vem acoplado ao titular, mas por escolha individual e exclusiva dele, sem o voto do eleitor que quase sempre desconhece a identidade do suplente. O candidato indica quem quiser: um parente, um aliado político, um funcionário, um amigo, um financiador de campanha.

Ou seja, o escândalo está embutido, camuflado. Se Rod Blagojevich pôs a vaga de Obama à venda no mercado, aqui quem cedeu a suplência para o financiador de campanha, por exemplo, fez a mesma coisa, mas de forma sub-reptícia e absolutamente legal.

Em Illinois, o governador indica o substituto quando a cadeira fica vaga. Isso, no mínimo, impõe alguma transparência ao processo. A escolha é de alguma forma acompanhada, o que reduz a chance de a negociata passar despercebida.

Os episódios, se não gêmeos, são primos-irmãos.

Antanho

O projeto que proíbe as empresas de demitir funcionários cujas mulheres estejam grávidas, aprovado na Câmara e remetido ao Senado, esgota-se na boa intenção.

Segundo o autor, o hoje presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, “nessa fase da vida, a tranqüilidade financeira e a segurança em relação ao emprego do chefe da família são de extrema importância para a saúde da gestante e do feto”.

Até aí, morreu neves. A partir daí, o que se têm é um Legislativo desprovido de visão coletiva, atento apenas ao benefício individual, desconhecendo as demais conseqüências.

Acrescenta amarra às relações formais de trabalho e não apresenta solução para problemas tais como o custo do exame de DNA, já que o empregador obviamente exigirá comprovação de paternidade.

Tudo soa antigo nesse projeto: do protecionismo inconseqüente ao conceito já revogado do homem como “chefe da família”.

Conserto

O governador Aécio Neves informa que, ao contrário do publicado aqui, jamais defendeu que os tucanos definissem o quanto antes a candidatura presidencial. “Por uma simples razão: isso não faz o menor sentido.”

A lei e a crise


Almir Pazzianotto Pinto
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)


Da lei se espera que trate a todos com igualdade, não faça distinções de classes, não pratique e coíba arbitrariedades, sendo tão útil nos anos de conflitos e crise quanto em períodos tranqüilos, de prosperidade.
A CLT foi concebida por Getúlio Vargas como espécie de constituição das classes trabalhadoras. Os juristas incumbidos de redigi-la deixaram-se, porém, dominar por estranha visão bipolar do sistema produtivo. Em um pólo foram arrebanhados os empregadores. Para o pólo oposto foram remetidos os empregados, estes sob a insólita marca da hipossuficiência.

Entre empregadores e empregados, o Estado paternal assumiu a posição de árbitro, com o objetivo de mantê-los em paz e a incumbência de solucionar os conflitos individuais e coletivos de interesses, normais no regime de livre iniciativa.

Por paradoxal que pareça, se na esfera do direito coletivo o modelo foi a Carta del Lavoro, fascista, no plano individual, ao se erguer o muro entre patrões e assalariados, prevaleceu a ideologia da divisão das classes, da espoliação do proletariado, e do inevitável conflito entre ambos.

Durante o governo Castelo Branco (1964 — 1967) a economia se encontrou abatida por forte crise de caráter recessivo, causadora de formidável onda de desemprego. Para remediá-lo, foi aprovada a Lei 492/65, conhecida como lei de crise. Nela foram prescritas medidas de defesa dos assalariados, uma das quais permitiria a redução dos salários, pelo prazo de três meses, até o limite de 25%, respeitado o mínimo regional. Com o tempo, o quadro recessivo refluiu, houve a fase do milagre brasileiro, e a possibilidade de redução salarial caiu no esquecimento.

A Constituição atual incorporou, no art. 7º, numeroso rol de direitos individuais. O inciso VI do artigo assegura a irredutibilidade salarial, “salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”. O XXVI, por sua vez, prescreve “o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”.

Que o Brasil se encontra às voltas com repentina e forte desaceleração econômica, nem mesmo o cândido otimismo do ministro da Fazenda põe em dúvida. Grandes e pequenas empresas acusam acelerada queda no faturamento; o mercado consumidor se encolhe; quebra-se o ritmo da construção civil e da venda de móveis e automóveis. Todos, enfim, tratam de economizar, diante do nebuloso futuro. Milhares de empregados foram postos em férias coletivas, administradores de pessoal traçam planos de desligamentos voluntários, ou partem de imediato para as demissões.

Por que, pergunta-se, empregadores e empregados ignoram as garantias constitucionais, não abrem negociações até se porem de acordo quanto à redução temporária de salários e de outros benefícios financeiros, com o propósito de manter empregos e evitar despesas com indenizações, avisos prévios, férias vencidas e proporcionais, além dos prejuízos com a perda de mão-de-obra experiente e treinada? Toda demissão sem justa causa (eis que a CLT considera a recessão mero risco do negócio) provoca, além de despesas, riscos imponderáveis. Afinal, os empregados contarão com o prazo de dois anos, contados da data do desligamento, para ajuizar reclamações trabalhistas destinadas à cobrança, por exemplo, de supostos danos morais, materiais ou à imagem.

A resposta à intrigante, mas oportuna indagação, apóia-se em três elementos: 1) a ficção da classe trabalhadora hipossuficiente como um todo; 2) a reduzida validade conferida ao recibo de quitação, mesmo passado sob assistência do sindicato profissional, ou do Ministério do Trabalho; 3) a baixa representatividade dos sindicalistas profissionais, cuja atuação, em momentos decisivos, sempre é encarada com reservas.

Em dias de calamidade econômica, o empresário sente-se diante de irrespondível dilema. Na hipótese de buscar negociações coletivas, destinadas à redução temporária dos salários, será acusado de tentar tirar vantagens da crise. No caso de celebrar o acordo coletivo, ninguém lhe assegurará que, restabelecida a normalidade, o documento não será submetido a juízo, sob a alegação de que os empregados, hipossuficientes, foram vítimas de coação irresistível, caracterizada pelo temor da perda do emprego. O desfecho de ação dessa natureza é imprevisível, mas a jurisprudência referente a planos de demissões voluntárias, previamente negociados, não sugere previsão otimista.

Governo, patrões e empregados se encontram em meio a grave crise. Como se sairão? Entre 2009 e 2010 saberemos.

Retratos numa exposição


Demétrio Magnoli
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Os partidos da esquerda tradicional ostentam panteões de ícones. Marx e Lenin são inevitáveis. Depois, tudo fica mais confuso. Stalin caiu no ostracismo, um destino que Mao tende a compartilhar; Trotsky sobrevive numa vertente minoritária; Fidel Castro e Che Guevara brilham nos partidos latino-americanos. A iconografia cumpre funções simbólicas delimitadoras, marcando as fronteiras de uma igreja política, e funções ideológicas norteadoras, identificando a trajetória de uma verdade que risca a história como um cometa. A inclusão de um novo ícone assinala o início de uma nova etapa, que desdobra e atualiza a verdade essencialmente imutável. Num ato público em Porto Alegre, semanas atrás, o PSOL introduziu em seu panteão implícito o retrato do delegado Protógenes Queiroz, que agora está exposto, depois de Marx, Lenin e Trotsky, ao lado do inefável Castro.

Há o óbvio, o não tão óbvio e o realmente importante. O PSOL busca empunhar a bandeira do combate à corrupção, outrora monopolizada pelo PT, num caso que envolve de formas não totalmente esclarecidas o núcleo duro do primeiro governo Lula. O banqueiro Daniel Dantas, pivô do caso, personifica há muito as relações perigosas entre dinheiro e política no Brasil. Ele entrou em cena bem antes que o ex-metalúrgico experimentasse a cadeira presidencial, mas sua influência deletéria chegou ao ápice com a disputa corporativa pelo controle do setor de telefonia, que se ramificou dentro do Palácio do Planalto e cindiu o governo nas alas dos ex-ministros José Dirceu e Luiz Gushiken.

A disputa corporativa terminou por um gesto de Lula, mudando a lei em benefício de grandes empresários que, casualmente, associaram-se a um negócio de seu filho e são seus financiadores de campanha. Dantas também se deu bem com o desenlace. Mas sobraram processos e densos mistérios. O banqueiro sabe de coisas que não sabemos - inclusive, talvez, sobre as fontes financeiras do mensalão. Há indícios de que Protógenes foi afastado a partir de uma decisão presidencial de natureza política. O óbvio: um PSOL que fracassou em se erguer como alternativa ao PT investe nessas hipóteses na tentativa de transcender o gueto em que agoniza.

O não tão óbvio é que, canonizando o delegado, o PSOL converte o combate à corrupção no refrão de um perigoso hino político. Ao mimetizar o PT de um passado que já parece tão distante, o partido dos dissidentes aposta suas fichas na repulsa generalizada à impunidade dos poderosos e fabrica um conto de fadas em que Protógenes e Dantas ocupam os lugares dos pólos dicotômicos do Bem e do Mal. Atrás da poeira dessa narrativa, a corrupção degrada-se numa entidade que flutua acima da política, como a gota de óleo na água. Pela mágica de um discurso vulgar, mas de apelo popular, oculta-se o sentido político das corrupções, no plural. Por que altos ministros petistas se envolveram numa guerra travada por empresas privadas em alianças com fundos de pensão de estatais? Qual é a ideologia que oferece legitimação para a intervenção ativa do governo na promoção de uma fusão entre grandes grupos econômicos? São perguntas cruciais que um PSOL seduzido pela doutrina do “capitalismo de Estado” não fará.

O realmente importante situa-se bem abaixo da superfície. Imbuído de um espírito de justiceiro, Protógenes atropelou as regras de conduta policial, inscreveu em seu relatório acusações sem provas contra jornalistas e, violando a lei, associou clandestinamente agentes da Abin a uma operação da Polícia Federal. Temos de escolher entre uma polícia com poderes extraordinários e a impunidade dos corruptores? Existem aqueles que, indignados com a impunidade, perguntam se a primeira alternativa não é o preço inevitável da “limpeza do Brasil”. Em outra esfera, existem os pistoleiros de aluguel, que participam da guerra suja travada por antagonistas empresariais imundos. No faroeste da internet, pautados pelos inimigos de Dantas, eles difundem a calúnia contra qualquer crítico dos métodos heterodoxos do delegado. Mas o PSOL, ainda que apenas por motivos egoístas, deveria pensar duas vezes.

Em nome da “guerra à corrupção”, a fim de erguer uma nova ditadura grão-russa, Vladimir Putin inverteu a ordem das coisas, subordinando o Estado aos órgãos de inteligência. Estamos a anos-luz de algo assim, mas as sementes do Estado policial devem ser extirpadas antes de germinarem. Precedentes pesam como uma montanha: se um policial pode agir como vigilante contra o poderoso Dantas, o que não se fará com quem só tem o poder da palavra?

Hugo Chávez, um aliado de Putin, escolheu o tema da corrupção como álibi para reprimir os opositores. O PSOL, que o aplaude com o entusiasmo dos néscios, parece interpretar as cuidadosas regras da democracia e do Estado de Direito como entulhos burgueses na estrada do futuro. Na ordem nova com que sonha, um Estado perfeito lancetará num só golpe glorioso, e de uma vez por todas, o cancro da corrupção. O seu Protógenes de hoje prefigura a perfeição estatal desse almejado amanhã. Fascinado pela polícia, o PSOL perambula como sonâmbulo à beira de um precipício.

A serviço de que governo estará um Protógenes do amanhã real? A inocência não é suficiente quando a lei se amolda à conveniência. O partido que saiu da costela do PT não tem o poder político de Lula, que induz à amnésia, nem o dinheiro farto de Dantas, que tudo compra. Bem longe do centro político, mas clamando contra os grandes, o PSOL figura como evidente vítima potencial numa futura campanha sem freios de “limpeza do Brasil”. O panteão de ícones do partido, que já não é inspirador, ficou bem pior com a canonização do delegado. Não estamos condenados, como pensa o PSOL, a uma escolha de Sofia. Temos o direito de querer os dois: a punição da corrupção e uma polícia subordinada ao império da lei.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

Um Anchieta que não merece o sobrenome


Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A união de interesses entre o governo do Estado de Roraima e cinco produtores de arroz, configurada na batalha jurídica, e até em conflitos abertos, em torno da reserva contínua da Raposa/Terra do Sol, fala pela boca do governador José de Anchieta Júnior (PSDB), na edição de "O Globo" da última terça (9/12): "Querem tirar os brasileiros da área de fronteira e deixar só os índios. É fácil comandar o índio. Se ele tiver febre, você dá um AAS ou uma Cibalena, resolveu o problema". Segundo ele, portanto, que aliás não merece o Anchieta que traz em seu nome, índios não são brasileiros e são facilmente manipuláveis, basta que não tenham território próprio e de preferência trabalhem para os fazendeiros de arroz - como, antes deles, trabalhavam para os fazendeiros de gado em regime de quase escravidão. "Os índios da região vivem harmonicamente com os não-índios. Aliás, eles precisam dessa integração para garantir a sobrevivência", diz o Anchieta de Roraima.

A história da fixação de arrozeiros na reserva indígena, cujo processo de homologação durou longos 20 anos e terminou em um decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2004, é um caso de má-fé que envolve poucos produtores rurais, sucessivos governos estaduais e muita terra pública. O território, de 1,7 milhão, foi demarcado para abrigar 18 mil índios de nove povos indígenas, das etnias de Macuxi, Wapixana, Ingaricó, Taurepang e Patamona, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1998. O decreto de 2004 homologou a reserva. Os arrozeiros ocupavam, quando da demarcação, 7.585 hectares de terra da reserva; até a homologação feita por Lula, as seis fazendas de cinco maiores produtores de arroz já somavam 25 mil hectares. Os pequenos agricultores foram retirados da área após a homologação e receberam terras maiores e legalizadas - eram apenas posseiros na reserva e, com as novas terras, com escritura definitiva, passaram a ter direito à crédito rural. Eles não são o problema e nem fonte de conflito. Os cinco grandes rizicultores que persistem na área, que são igualmente invasores de terra pública, foram considerados pelo Incra como ocupantes de má-fé, já que chegaram depois da demarcação, plantaram depois da homologação e fazem cultivos irregulares, sem licenciamento ambiental.

A expansão da cultura de arroz dentro da reserva, com o preço de desflorestamento e do envenenamento de rios por agrotóxicos, é um crime ambiental e contra o povo indígena que tem sido feito com a valiosa ajuda dos mandatários do Estado. Os arrozeiros grandes foram atraídos para a região com uma política de incentivos fiscais. Invadiram com apoio oficial. É o governo estadual que tem entrado na Justiça, como parte interessada, primeiro contra a demarcação, depois contra a homologação da reserva, invocando a segurança nacional - segundo o Estado, os arrozeiros que andam armados são um risco menor naquela área de fronteira com a Venezuela e a Guiana do que os índios desarmados, como se uma reserva indígena fosse um território estrangeiro.

O julgamento da homologação da Reserva Raposa/Terra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é mais um capítulo na estratégia de adiamento do governo de Roraima e dos arrozeiros da ordem de desocupação das "ilhas" ocupadas pelos fazendeiros. A demora na decisão resultaria em mais safras colhidas em terra pública por particulares de má-fé, que não têm compromisso com a lei, com as ordens judiciais de desocupação das terras ou com a biodiversidade da região.

José Dirceu

A autora do livro "Sem Vestígios: revelações de um agente secreto durante a ditadura militar brasileira", Taís de Morais, afirmou em e-mail ao blog do ex-deputado José Dirceu que manteve, de forma equivocada, uma nota de rodapé em que diz que o diário do agente sobre o qual o livro está baseado aponta Dirceu como o agente duplo que teria sido responsável pela queda dos integrantes do Movimento pela Libertação Popular (Molipo). "Eu me equivoquei ao deixar que a nota fosse publicada assim. O certo é: Segundo depoimentos de alguns militares e do Cel. Lício Maciel, Daniel (codinome de Dirceu) teria sido agente duplo", afirma. Matéria de minha autoria sobre o livro foi publicada no Valor do dia 27/11, e traz a referência ao rodapé, com a contestação do ex-deputado.

O advogado Ivo Shizuo Sooma enviou-me um e-mail argumentando que seria impossível a Dirceu ter agido como agente duplo. "À época da morte de Jeová de Assis Gomes (que, segundo o coronel Lício Maciel teria acusado Dirceu de ser delator, antes de morrer com um tiro nas costas), no início do ano de 1972, José Dirceu não se encontrava no Brasil. Nessa época, eu, que já residia em Umuarama-PR, recebia visitas periódicas de João Leonardo Silva Rocha, um perseguido político que estava radicado em Pernambuco. No ano de 1973, João Leonardo falou-me que estava aguardando o retorno de um companheiro que estava em Cuba. Em fins de 1974 ou já em 1975, João Leonardo chegou a Umuarama dizendo que o companheiro vindo de Cuba já estava no Brasil, e assim tive contato com José Dirceu, cuja identidade desconhecia e foi me apresentado sob nome de Carlos. José Dirceu fixou-se em Cruzeiro do Oeste, distante 25 km de Umuarama, onde permaneceu até algum tempo depois de promulgada a Lei da Anistia. Eu tinha contatos periódicos com José Dirceu, cujo identidade passei a conhecer posteriormente, e posso assegurar-lhe que não tem fundamento a insinuação de colaboração por parte dele com agentes da repressão, contida em sua matéria acima referida."

Que esse equívoco não empane as demais revelações do livro. Por razões óbvias, não existem registros oficiais de assassinatos de opositores do regime militar. Essa parte negra da história brasileira apenas será totalmente revelada se forem encontrados mecanismos para coletar e depurar os relatos dos agentes do regime que testemunharam, ou mesmo participaram, da tortura e assassinato desses brasileiros.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

PT retoma esquerdismo como tática anticrise e com olho em José Serra

Jarbas de Holanda

Atende a vários objetivos – de curto, médio e longo prazos - a forte retórica esquerdista adotada pelo grupo dirigente do PT, “Construindo um Novo Brasil” (sucessor do “Campo Majoritário” que se esfacelou após o mensalão), em seu encontro realizado no último fim de semana em São Roque (SP). Mas todos eles se vinculam ou subordinam à disputa da presidência da República em 2010. Dividem-se, a este respeito, em duas etapas: primeira, assegurar um papel relevante do partido na definição do candidato situacionista, em complicado confronto com o presidente Lula; depois, desdobrar tal papel numa campanha em que não contará com seu decisivo trunfo eleitoral – o nome dele. E incluem a alternativa da preparação de ferrenho combate a um governo eleito pela oposição, na perspectiva de um retorno ao poder, no pleito seguinte, do atual chefe do governo.

Reportagem da Folha de S. Paulo sobre o encontro mostrou como o presidente do PT, Ricardo Berzoini, e demais dirigentes regulares, além do líder informal, José Dirceu, vão usar os efeitos que a crise financeira global começa a ter em nossa economia, para o encaminhamento desses objetivos, com base no discurso eleitoral que preparam de fortes teores estatizante e populista: pressão sobre o Palácio do Planalto para que cancele a autonomia prática que o Banco Central conquistou e reduza a meta do superávit primário; duros ataques a privatizações, com citação especial da Vale, combinados com proposta de ampliação do papel do Estado e de mais gastos com o reforço do assistencialismo; responsabilização, pela crise, dos partidos oposicionistas e do “neo-liberalismo” dos governos FHC. E José Dirceu, tendo presidido a principal mesa de debates da reunião, anunciou em entrevista que vai relançar a campanha por sua anistia. Trechos da reportagem, intitulada “PT critica BC, pede Estado forte e culpa PSDB pela crise”: “Durante o encontro de seus comandantes, os petistas defenderam o fortalecimento do Estado, dos investimentos públicos por meio dos bancos estatais e o incremento dos programas de transferência de renda direta ao cidadão. Em contrapartida, queda dos juros e a intervenção na política cambial”. “Nós vamos retomar o desenvolvimento se fizermos mudanças no sistema financeiro, na política de juros, no superávit e na política cambial. Se nós abandonarmos o último bastião da ortodoxia no Brasil, que é o Banco Central, podemos dar um salto ...” afirmou José Dirceu”. O tesoureiro do PT, Paulo Ferreira, disse que o partido fará o debate eleitoral com o PSDB. ‘É a crise de um modelo do qual o governo FHC e o DEM foram os grandes defensores no Brasil. Foi a desregulamentação do Estado, da forma de trabalho, sem proteções, as privatizações. É esse modelo que está em crise’, disse”.

A ênfase nos ataques ao BC, ademais de representar um ingrediente natural do radicalismo tático da direção do PT, tem em vista uma função eleitoral, ligada ao cálculo de que o candidato oposicionista à sucessão de Lula seja mesmo o governador de São Paulo José Serra. Essa ênfase servirá para neutralizar e se possível desqualificar a postura crítica que este tem contra a política monetária que o BC pratica desde o primeiro governo FHC. Postura que Serra já tinha então, mesmo ocupando o ministério do Planejamento (do qual teria se afastado por isso, segundo declaração recente dele, em que explicitou ser também contrário à autonomia formal da instituição). E que, sendo candidato, poderá respaldar sua condenação aos juros altos aplicados no governo Lula. “Contra esse “oportunismo de esquerda”, segundo um dirigente petista, nada melhor do que “o esquerdismo sério do nosso partido”.

Duas outras evidências de fortalecimento do esquerdismo estatizante e populista do PT tornaram-se bem visíveis ao longo deste ano, mesmo depois de sinais claros de que a crise vai chegando. Primeira – o espaço maior ganho pelas demandas da CUT e da aliada Força Sindical de mais verbas públicas, bem como de mais empregos em estatais. Segundo – o avanço no Congresso de projetos de parlamentares petistas, com sérias implicações negativas para as contas públicas e para a economia, diante dos quais resistências e objeções inicialmente opostas por autoridades do Executivo são depois substituídas por negociações defensivas, concordância tácita ou omissão. Exemplos mais significativos de iniciativas do gênero: o projeto do senador Paulo Paim (PT-RS), que extingue o fator previdenciário nos processos de aposentadoria dos trabalhadores da iniciativa privada, cuja aprovação – já obtida no Senado e em vias de ser conseguida na Câmara (com forte pressão de sindicalistas) “fará crescer o déficit da Previdência dos atuais 7,4% do PIB para 26%, até 2.049”, como precisou o Estado de S. Paulo, em editorial de anteontem; e o projeto do presidente petista da Câmara, Arlindo Chinaglia, para a concessão de licença remunerada do trabalho também ao pai, a partir da gravidez da esposa ou de uma companheira, por tempo igual ao da licença maternidade. Ambos os projetos, configurando, um, absurda irresponsabilidade fiscal e, outro, intervenção grosseira e irracional nas relações de trabalho, têm de fato a finalidade de manipulação eleitoreira dos assalariados.