terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Democracia e socialismo

Carlos Nelson Coutinho
DEU EM O GLOBO


No GLOBO (16/12/2008), Ali Kamel publicou um interessante artigo, no qual comenta o livro "Memórias de um intelectual comunista", de meu querido amigo Leandro Konder. Ao evocar a trajetória intelectual e política de Leandro, Kamel se refere também à minha trajetória, detendo-se em particular num velho ensaio que publiquei há trinta anos, "A democracia como valor universal".

Kamel resume corretamente o contexto político-ideológico em que aquele ensaio veio à luz. Embora dirigido também a um público "externo", ele foi parte da luta travada então no seio do PCB, depois que a anistia permitiu o regresso de seus principais dirigentes e de alguns de seus intelectuais. Kamel recorda que nosso grupo, depreciativamente chamado de "eurocomunista" por nossos adversários, defendia uma tradição que provinha de Gramsci e, em particular, do saudoso Partido Comunista Italiano - tradição fortemente diversa daquela que inspirava o chamado "socialismo real" de matriz soviética.

Mas me surpreendeu a afirmação de Kamel de que meu velho ensaio "foi fundamental para que eu me afastasse da esquerda". Recordo apenas a passagem em que busco resumir os dois objetivos do ensaio: "Indicar como o vínculo entre socialismo e democracia é parte integrante do patrimônio categorial do marxismo; e como a renovação democrática do conjunto da vida nacional [é] elemento indispensável para a construção dos pressupostos do socialismo." Democracia, sim, mas no quadro da reivindicação do marxismo e da afirmação de que a democracia é parte integrante da luta pelo socialismo. Portanto, não foi a leitura do meu ensaio que levou Kamel a abandonar a esquerda e a adotar as posições conservadoras que hoje defende.

Kamel também não informa adequadamente o leitor sobre minha decisão de não republicar A democracia como valor universal em sua velha forma: ao contrário do que ele insinua, esta decisão não resulta de minha suposta passagem da "direita" para a "esquerda". Em meu livro "Contra a corrente", reeditado em 2008 e citado por Kamel, deixo claras as razões desta decisão: "Conservo minha convicção de que, no essencial, eu estava no caminho certo. Porém, relendo hoje o velho ensaio, percebo que ele era ainda tímido diante da revisão radical de alguns paradigmas analíticos que provêm dos bolcheviques e, sobretudo, da Terceira Internacional. Além disso, ele apresenta as marcas do contexto concreto em que foi escrito: estão "datados" não só muitos elementos da análise de conjuntura nele presente, mas também alguns dos alvos polêmicos contra os quais era dirigido. Foi por isso que decidi não republicá-lo em sua forma original." De resto, neste livro, num tópico intitulado precisamente "A democracia como valor universal", reproduzo quase literalmente a parte teórica do velho ensaio.

Kamel manifesta perplexidade diante do fato de que "a maior parte daquele grupo [de "eurocomunistas"] da "direita" do Partidão foi se deslocando para o extremo oposto: entraram no PSB, no PT e, hoje, estão no ortodoxo PSOL". Estou convencido de que permaneço, na topografia das opções políticas, no mesmo lugar onde estava na época em que escrevi "A democracia": o fato é que muitos dos que se supunham à minha esquerda (seja no velho PCB, seja no PT) foram paulatinamente se deslocando para o centro e até mesmo para a direita. Emblemático me parecem os casos do PPS e de muitas correntes hoje majoritárias do PT.

E não foi porque me "desloquei à esquerda" que decidi ingressar no PT. Quando tomei essa decisão, em 1989, o PT iniciava a saída do gueto político que marcara suas origens e começava a adotar uma estratégia de luta pelo socialismo baseada na conquista da hegemonia e no aprofundamento da democracia. Não hesito em dizer que, durante um certo tempo, a estratégia desenvolvida pelo PT foi a que mais se aproximava no Brasil das velhas propostas do eurocomunismo e do PCI.

Também não foi por um irresponsável "deslocamento à esquerda" que decidi participar da fundação do PSOL. Quando o PT, já antes de se tornar governo, abandonou a luta pelo socialismo, a política brasileira tornou-se "pequena política", ou seja, a mera disputa pelo poder entre dois blocos (agrupados respectivamente em torno do PT e do PSDB) que não diferem substantivamente em suas propostas programáticas e em suas práticas políticas. Diante disso, avaliamos - eu, Leandro Konder e Milton Temer, mas também intelectuais do porte de Chico de Oliveira, Paulo Arantes e Ricardo Antunes - que era preciso lutar pela manutenção na agenda política de uma alternativa de esquerda à mesmice imperante. Como continuo a crer na importância do partido político, aderi ao PSOL.

Esta adesão baseia-se numa aposta. Sei que nosso tempo não é favorável à esquerda. Ao contrário do PT, que nasceu num momento de ascensão dos movimentos sociais, o PSOL surge numa conjuntura de refluxo destes movimentos, muitos dos quais foram cooptados pelo governo Lula. Nada garante que o PSOL cumpra a função para a qual foi criado nem que venha a se tornar o herdeiro da política socialista e democrática que outrora foi encarnada pelo chamado "eurocomunismo". Isso vai depender não só do empenho de seus militantes, mas sobretudo das condições concretas em que irá se desenvolver a luta política em nosso país e no mundo.

Agradeço a Ali Kamel a oportunidade de esclarecer minhas posições - e também a de outros velhos intelectuais comunistas, como Leandro Konder e Milton Temer.

CARLOS NELSON COUTINHO é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Rosa Luxemburgo

Leandro Konder,
DEU NO JORNAL DO BRASIL / IDÉIAS & LIVROS
(27/12/2008
)

RIO - Há 90 anos, Rosa Luxemburgo e seu amigo Karl Liebknecht, ex-deputado, estavam refugiados em casa de um correligionário. Eram tempos tumultuados na Europa. Os operários alemães, aborrecidos com os baixos salários e com inveja dos trabalhadores russos, que tinham feito uma revolução, armaram barricadas nas ruas de Berlim. O partido de Liebknecht e Rosa Luxemburgo – a recém-fundada Liga Spartacus – tinha apoiado a revolta.

Rosa Luxemburgo se sentia eticamente comprometida com o movimento, mas sabia que ele não tinha chance de vencer. No dia 15 de janeiro de 1919, um grupo de soldados da divisão de cavalaria da guarda prendeu Rosa e Liebnecht, levou-os ao Hotel Éden, onde foram interrogados pelo capitão Pabst e espancados por seus capangas. Em seguida, o tenente Vogel levou os prisioneiros para um lugar pouco freqüentado à margem do rio, e seus asseclas os mataram. Foi aberto um inquérito que não apurou coisa alguma. No caso específico da morte de Rosa, a opinião pública ficou chocada pelo contraste entre a suavidade da vítima e a brutalidade de seus carrascos. Rosa tinha uma perspectiva política radical, porém divergia do modelo altamente centralizado de partido adotado por Lênin.
Ela dizia: “Liberdade só para os partidários do governo ou só para os membros de um partido, por maior que ele seja, não é liberdade coisa nenhuma. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente”.

Segundo ela, o envolvimento da Spartacus na violência daquela época decorria de uma contingência trágica: “A revolução proletária não precisa de nenhum terror”. Era culta, refinada, adorava Mozart e Beethoven, admirava Rembrandt. Hannah Arendt conta um episódio que mostra toda a elegância da ativista: durante uma sessão de um congresso socialista internacional, o francês Jean Jaurès fazia uma intervenção contra Rosa e ridicularizava as teses dela, quando o tradutor precisou sair. Rosa, poliglota, assumiu a função de intérprete e traduziu com absoluta fidelidade para o alemão o discurso mordaz que seu colega fazia contra ela.

Combatia a concepção da história determinista, e até mesmo fatalista, de alguns de seus companheiros. Para ela não havia nenhuma garantia da vitória final inexorável dos revolucionários. Estava convencida de que a humanidade tanto podia avançar para o socialismo, como podia regredir para a barbárie.

Era uma fascinante combinação de razão e afetividade. Às vezes, suas críticas eram bastante violentas. Presa em 1914, adotou a linha de ação de acusação a seus acusadores, sustentando que o grande criminoso era o governo. Em 1911, durante uma reunião do partido social democrático alemão, atacou seus companheiros, considerando-os excessivamente conciliadores. Aproveitou um intervalo para espairecer; saiu para passear em companhia de sua amiga, Clara Zetkin. As duas demoraram um pouco mais do que pretendiam e, no retorno, se desculparam pelo atraso. O deputado Bebel disse que todos ficaram preocupados, com medo de um atentado. Rosa sorriu:

“Se nós fossemos assassinadas, vocês poderiam gravar na nossa sepultura: 'Aqui jazem os dois últimos homens da direção da social-democracia alemã'”.

Quem lê hoje seus livros e sua correspondência fica inevitavelmente envolvido pela luta apaixonada da militante, que se recusava a renunciar aos seus sonhos mais pessoais e não admitia sacrificá-los no altar da revolução. Através das mais de mil cartas que escreveu a Leo Jogiches, o homem que ela amou ao longo de 15 anos e com quem queria partilhar a felicidade na vida privada.

O crime contra Rosa e Liebknecht foi tão bárbaro que, mesmo depois de vários anos, ao longo do período da República de Weimar, foram feitas tentativas de processar os assassinos. Porém, eles ficaram impunes, porque foi feita uma leitura bastante ampla dos direitos dos criminosos.


Invocaram aquilo que se poderia chamar de uma anistia amplíssima. Inconformado com essa impunidade, o amor da vida de Rosa, Leo Jogiches, empreendeu uma investigação por conta própria. Foi assassinado pelos bandidos de sempre.

O emprego no pano verde da crise

Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO


É intensa a agenda das centrais sindicais prevista para o início de 2009. Elas já estiveram no BNDES. Agora devem se reunir com os presidentes do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Querem convencer os organismos oficiais, pelo menos, a vincular os empréstimos às empresas à garantia da manutenção dos postos de trabalho. O que está em jogo é como evitar um choque de desemprego sem ferir direitos, como sugerem propostas surgidas na área empresarial.

No cardápio de alternativas para minorar o desemprego, até agora, já se falou na "flexibilização" dos direitos, no aumento do prazo e até do valor do seguro desemprego e o chamado "lay off", a suspensão temporária dos contratos de trabalho. À exceção da "flexibilização", proposta considerada "oportunista" pelo presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique da Silva Santos, as centrais estão dispostas a negociação, caso a caso, mas o foco primário da jornada dos sindicalistas é um só: a manutenção do emprego.

Esse foi o tema central da reunião com o comando do BNDES. O banco barrou a proposta de condicionar empréstimos à garantia de manutenção dos postos de trabalho, algo que considerou negativo, restritivo. Os sindicalistas, então, propuseram uma cláusula que prevê "empréstimo em condições mais favoráveis", se o empresário de comprometer a manter o trabalhador. O texto será analisado pela diretoria do BNDES.

Há mais em negociação com o BNDES, como a montagem de um gabinete de crise para avaliar os empréstimos do banco. As centrais, por meio dos sindicatos filiados, informariam sobre a situação de cada uma das empresas tomadoras. Nos atuais contratos já há uma cláusula que fala do compromisso das empresas com a manutenção do nível de emprego, que não é determinante. Mas é a brecha que as centrais encontraram para acompanhar os empréstimos do banco de fomento.

Após três anos de uma situação "positiva, com reajustes salariais acima da inflação, ampliação do espaço de negociação e a retomada de algumas bandeiras do trabalho", como diz Artur Henrique da Silva Santos, o novo momento exige das centrais sindicais administrar perdas. O perigo ronda a cada esquina.

De repente, por exemplo, o acordo para o reajuste do salário mínimo (variação do PIB do ano anterior mais a inflação) é visto como um risco a mais de aumento do desemprego. Esse acordo está sendo cumprido à risca pelo governo federal, mas não é lei - votado na Câmara dos Deputados, ainda espera pela deliberação dos senadores.

"É necessário o Congresso votar urgentemente o acordo do salário mínimo", diz Artur Henrique. "Nós defendemos outra tese: em vez de contribuir para o desemprego, o reajuste do salário mínimo aumenta a renda dos trabalhadores, o que aumenta o consumo e a produção, indispensáveis no combate a crise", argumenta. "Se você começar a olhar para a crise sem estabelecer que é preciso fortalecer o mercado interno, nós vamos ter problemas muito sérios".

Para o presidente da CUT a crise requer soluções diferentes para situações diferentes, pois nem todos os setores foram ou serão atingidos da mesma forma. "Não dá para trabalhar com uma proposta genérica de que é preciso flexibilizar ou reduzir direitos para poder manter o emprego".

Na ótica dos sindicalistas a crise não é geral. Há os setores voltados à exportação, como o automotivo e o de mineração, mais afetados e que "evidentemente tem uma situação mais delicada por conta da suspensão ou da possibilidade de países como a China suspenderem as compras de material do Brasil", diz o sindicalistas. Mas "há outros que continuam muito bem no Brasil, como o setor de comércio, que mesmo com queda em termos de valor, neste final de ano, do ponto de vista de volume de vendas continuam tendo um aumento".

Por essa perspectiva, as centrais acreditam que há um certo equilíbrio, com o impacto da crise sendo diferenciado nos diversos setores. E mesmo empresas afetadas diretamente pela tormenta teriam como manter os postos de trabalho, se aceitassem reduzir margens de lucro. Artur Henrique cita especificamente o caso da Vale, cujo presidente, Roger Agnelli, propôs a "flexibilização" de direitos trabalhistas na mesma entrevista em que anunciou que a empresa dispunha de R$ 14 bilhões em caixa para investir em 2009. "É uma incoerência. Trata-se, como se vê, de uma empresa que poderia ter uma redução das suas margens num momento de crise".

Para assegurar o emprego, os trabalhadores estariam dispostos a fazer contrapartidas, como já está ocorrendo nos setores mais afetados pela crise, segundo o presidente da CUT. No setor de autopeças, por exemplo, no qual o estoque das montadoras está muito alto e não há pedido de compras porque os automóveis estão no pátio, os estoques cheios. "No setor de autopeças o sindicato vai acabar fazendo uma negociação, seja no sentido de ampliação do seguro desemprego, seja de "lay off", como forma de tentar atenuar o problema", diz Artur.

Antes de conversar com os bancos oficiais e com o Congresso, as centrais avisaram o Palácio do Planalto sobre a estratégia consertada, entre elas, de focar na questão do emprego. Numa conversa anterior, os dirigentes da CUT disseram ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que não é verdadeiro o enunciado segundo o qual é preciso que os trabalhadores retomem a confiança para comprar produtos e manter alto o consumo, porque isso favoreceria a economia. "O trabalhador não vai trocar o carro, a geladeira e a televisão se ele tiver a ameaça do desemprego sobre a sua cabeça", diz Artur Henrique.

Para assegurar o emprego, as centrais afirmam que estão dispostas a negociar, desde que isso não signifique o sacrifício de direitos. "Não é uma proposta de cima para baixo, uma mudança de lei, como tem alguns empresários propondo, de flexibilizar para todo mundo. Não, aí não dá", diz o presidente da Central Única dos Trabalhadores.

Como em nenhuma outra crise antes dessa, os trabalhadores têm no Palácio do Planalto uma liderança legítima, e na qual confiam, para intermediar e avalizar as negociações.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

Governo quer arrombar o cofre

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

MP que altera a lei do Fundo Soberano permite a Lula criar uma conta de gastos sem aprovação do Congresso

LULA DISSE ontem que anunciará mais medidas anticrise em janeiro. Por ora, sabe-se que deve vir um plano de construção de casas mais populares. Há o rumor, no governo, de que haverá um projeto de obras de infra-estrutura de conclusão mais rápida, o anúncio de concessões de infra-estrutura para a iniciativa privada e medidas "setoriais" (talvez na área de caminhões, tratores, máquinas). Mas o primeiro dos planos anuais de 2009 foi mesmo o pacotinho de Natal, a MP 452, que alterou a lei do Fundo Soberano do Brasil (FSB) no mesmo momento em que ela era promulgada.

O Congresso deixou o fundo quase vazio este ano. A MP vai permitir que o governo faça uma dívida de R$ 14,2 bilhões a fim de encher o cofrinho do FSB. Como o governo já "poupou" esses R$ 14,2 bilhões, a dívida a ser emitida está coberta. Mas, a seu bel-prazer, o governo criou despesa em 2008 para uso futuro.

Ao editar a MP o governo disse mais do que "dane-se o Congresso". Na prática, subtraiu ao Parlamento o seu já escasso poder de decidir o que fazer dos impostos. Quanto ao varejo político-econômico, o governo afirma na prática que vai reduzir o superávit primário deste ano para gastar mais em 2009, evitando porém que o superávit do ano que vem caia muito abaixo da meta de 3,8%.

Em tese e em abstrato, um fundo de poupança pública faz sentido. Como dizem o ministro Guido Mantega e economistas, tal fundo permite ao governo executar "políticas anticíclicas". Isto é, economizar em anos bons para gastar em anos de crise econômica. O problema elementar é que o governo TEM DÉFICIT FISCAL -não economiza, está no vermelho, deve.

O déficit nominal do setor público deve ser de 1% do PIB este ano. E daí? Imagine-se o caso de um cidadão que tenha uma dívida no banco, a juros de uns 14% ao ano, e que gaste mais do que ganha num certo ano. Esse cidadão reserva então parte do seu salário para um "fundo" a ser gasto no ano seguinte. Isto é, o cidadão não abate sua dívida cara, ainda continua no vermelho e acha que está fazendo reservas para o ano seguinte. Isso não faz sentido. Comparar a economia doméstica à economia do setor público em geral dá em besteira demagógica. Mas, nesse caso, a bobagem do governo autoriza a tolice da comparação.

A pessoas sensatas a MP parece inconstitucional, pois permite ao governo criar despesa à matroca. Abre uma conta de despesas financiada por emissão de dívida sem aprovação do Congresso (no Orçamento ou por meio de crédito extra). O governo diz que vai regulamentar a excrescência por meio de decreto.

Isto é, reafirma o seu arbítrio autorizando-se a gastar por meio de uma norma inferior a uma lei. E vai gastar no quê? Em quase qualquer coisa. O FSB, diz a lei, vai "promover investimentos em ativos no Brasil e no exterior, formar poupança pública, mitigar os efeitos dos ciclos econômicos e fomentar projetos de interesse estratégico do país localizados no exterior".

Se o governo, como promete, investir mais e, por milagre, reduzir gastos de custeio (pois já contratou despesas enormes), terá contribuído para atenuar a crise. Mas arrombar a porta do cofre não é nem o meio legal nem racional de fazê-lo.

Se lá é assim...

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - Espionagem, às vezes (muitas vezes), é como o jornalismo: surge uma dica, uma "fonte de informação" ou um documento secreto, e, a partir daí, é preciso "preencher lacunas" e "criar um todo plausível". E é assim que se cometem as maiores barbaridades, como ensina um livro-reportagem sobre os inacreditáveis erros e absurdos da CIA e da DIA (EUA), do BND (Alemanha) e do MI6 (Inglaterra) que serviram de pretexto para a invasão do Iraque.

O livro "Curveball" (algo como bola de efeito), do norte-americano Bob Drogin, relata detalhadamente como um engenheiro iraquiano amalucado e viciado em internet manipulou os órgãos de inteligência dos três países até que Bush e Colin Powell caíram alegremente na esparrela de denunciar um rocambolesco projeto de fábricas móveis de bactérias.

Curveball, o iraquiano, inventou a história, traduzida do árabe para o alemão, do alemão para o inglês e, enfim, resumida. Em cada etapa, perdia ressalvas e desconfianças até desembarcar nos altos escalões com ares de veracidade. Sabe como é: a "fonte" precisa ser importante, o agente quer valorizar seu achado, o chefe tem que justificar a invasão de um país alheio. Cada um fala, vê, ouve e lê o que quer.

O livro não apenas destrói o endeusamento dos órgãos de segurança dos países ricos como vem bem a calhar no Brasil de hoje, em que todos grampeiam todos, chefes são chutados para o alto, "lacunas" são preenchidas ao gosto do freguês e os fins justificam os meios para "criar um todo plausível" -contra o seu inimigo, certo?

Ao ser despachado como adido policial do Brasil em Lisboa (?!), o delegado Paulo Lacerda leva o principal na bagagem: as gravações da operação Satiagraha e sabe-se lá quantos segredos -e de quem. Da oposição? Ou do próprio governo? No mítico mundo da espionagem, operam pessoas de carne, osso, ideologias e ambições. Saber é poder. Lacerda sabe muitíssimo.