quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

CRISE ECONÔMICA, INOVAÇÃO POLÍTICA E PROGRAMÁTICA

Raimundo Santos
Professor CPDA/UFRRJ
Fonte: Gramsci e o Brasil

O relatório apresentado por Walter Veltroni no encontro da Direção Nacional do Partito Democratico (PD), em 19 de dezembro passado, constitui peça discursiva das mais emblemáticas da esquerda democrática destes nossos dias. O presidente do PD abre o texto afirmando que para enfrentar a atual crise – “gerir a emergência, imaginando o futuro” – necessita-se de “muita e boa política”. A crise chega à Itália sob o governo de Berlusconi, um líder populista “em permanente campanha eleitoral”. Escreve ainda Veltroni que, com seu incessante ativismo de “oposição à oposição”, Berlusconi só contribui para erosionar – profundamente – a “credibilidade moral da política”, pondo a democracia italiana em “perigosa voragem”. Esse tipo de popularidade, esclarece o ex-militante comunista, cada vez mais acentua o desencanto e a desilusão.

É nesse quadro que o PD se porá à prova, relembra Veltroni a origem do novo partido e suas promessas de inovação radical na política, na forma-partido, no plano programático e o compromisso de provocar descontinuidade na classe dirigente italiana.

Lembrando o principal antecessor do PD, o Partito Democratico della Sinistra (PDS), formado em momento intenso da globalização a partir do PCI, não fugira dos desafios da nova conjuntura, agora, em nome do PD, Veltroni vem nos falar da atual circunstância de crise e também de um tempo promissor. Segundo ele, a alternativa com que ora se defronta a esquerda democrática na Itália se resume ao ultimato: “renovamento ou bancarrota”. Sob forte tensão, o PD terá que mostrar que é capaz de acelerar as inovações – sobretudo política e programática –, condição sine qua non para servir ao seu país como ator decisivo nos novos tempos de hoje.

Como o PDS não vira a circunstância globalista passivamente, no seu relatório Veltroni registra que agora o PD tampouco está diante de uma conjuntura qualquer. Será necessário afastar o Berlusconismo e o seu modelo, que é um modelo, esclarece Veltroni, antes que econômico e político, cultural no sentido de um modo de adaptar a Itália à hegemonia do pensamento neoconservador dos últimos trinta anos, posto em declínio irremediável pela crise econômica em andamento.

Em que termos o dirigente da esquerda italiana nos apresenta a circunstância que ora vivemos?

“As crises, diz ele, são fases do passado, duras e dolorosas, das quais não se sai como se entrou: nas formas e modo de produção e desenvolvimento, nas relações de forças, sociais e políticas; nos modelos culturais, na hierarquia de valores.” Recorda Veltroni que da grande crise de 1929, sobretudo depois da II Guerra, saímos com um grande compromisso entre capitalismo e democracia. Conhecemos o crescimento impulsionado pelo consumo de uma classe média em expansão (na qual entrava o mundo do trabalho, inclusive operário) e uma forte compressão da desigualdade graças a políticas salariais generosas e a fortes ações redistributivistas públicas. Vimos nesse período uma rápida expansão do Estado Social.

A crise petroleira e a estagflação dos anos 1970, continua Veltroni seu equacionamento das crises, obrigou o Ocidente a mudar de rumo: foram feitos grandes investimentos na inovação tecnológica (elevou-se a produtividade à custa dos postos de trabalho e do poder contratual dos sindicatos); a classe média se reduziu, as desigualdades tornaram-se a alargar e a ascensão social se bloqueou, inclusive devido ao redimensionamento do Estado Social. Essa é a época em que se teoriza sobre a auto-suficiência do mercado e se afirma o superpoder da finança sobre a economia real, “com graves conseqüências também para a democracia, forçada a renunciar a qualquer soberania sobre os fluxos de capital”. Conhecemos uma fase de crescimento econômico ao preço de grandes desequilíbrios e elevação da desigualdade.

Veltroni se refere a outros traços característicos dos anos subseqüentes de globalização. Vimos novos protagonistas – “milhões de seres humanos” excluídos do desenvolvimento – saírem à superfície em busca de reconhecimento e lugar num mundo moderníssimo. Diz ainda Veltroni que conhecemos o desenvolvimento do século XXI ao mesmo tempo impetuoso e insustentável.
No plano global, explica ele, tivemos um desenvolvimento marcado pelo alargamento entre o debilitamento americano e a ascensão asiática; no plano ambiental, um desenvolvimentismo tensionado pelas conseqüências que a transferência do modelo ocidental aos países emergentes provoca no clima; no plano interno, vimos o empobrecimento da classe média, em particular nos EUA, onde ela se endividaria buscando garantir casa, saúde e instrução. Essa é a época da pretensão americana em dirigir o mundo de modo unilateral, cujo paradoxo dramático se expressará na guerra contra o Iraque.

Veltroni resume o núcleo da sua narrativa dizendo que o “pântano iraquiano” e a crise financeira ora em curso despedaçaram a ilusão neoconservadora, dando passagem a “uma nova fase, um novo paradigma de pensamento e uma nova época política”.

É nessa circunstância complexa ainda se configurando que o povo americano, “com muita clarividência” – celebra Veltroni como este seu primeiro grande evento positivo , elegeu Barack Obama. Ao invés de fechar-se defensivamente, continua dizendo o ex-comunista, a América pôs-se caminho à frente, sinalizando possibilidades para um novo multilaterialismo nas relações internacionais, um novo New Deal com base na reconstrução da classe média, uma nova fase de igualdade social. Em curso nestes dias os desdobramentos da vitória de Obama -- registra Veltroni em seu texto de dezembro passado --, ao novo presidente “afro-americano” já lhe toca abrir “simbolicamente” uma fase nova, “uma terceira fase do desenvolvimento humano”.

É assim, a partir do binômio representado pela crise financeira e pela eleição americana, que Veltroni fala de um tempo promissor, dizendo que estamos diante de uma “extra-ordinária oportunidade e também de uma lição para aprender e meditar”. Segundo ele, na sociedade americana, a crise trouxe à tona o conflito social (por anos posto em segundo nível pelo uso ideológico das questões de raça, dos valores tradicionais, da segurança interna e externa), ativando o apoio ao programa eleitoral inovador de Obama. É como se a crise, acrescenta Veltroni, houvesse dissolvido a “névoa” que por três décadas levara setores populares e a classe média dos EUA a votar contra os próprios interesses e a favor de uma minoria privilegiada.

Veltroni retém da eleição de Obama aquele último ponto como tema de valor mais universal: é possível mudar a correlação de forças nas sociedades de estruturação altamente complexa. Se processo desse tipo abre caminho novo nos EUA nada impede que também possa ocorrer em outras formações “ocidentalizadas”, aludindo-se aqui ao termo não-geográfico de Gramsci. A lição americana mostra que a condição para se mudar a correlação de forças na sociedade consiste “em recolocar em primeiro plano, na competição política, a questão econômica e social e oferecer a esta questão saída realista por meio de uma proposta de forte inovação política e programática”.

Com tal referência, Veltroni nos leva a questão da “vocazione maggioritaria”, a um redimensionamento radical da questão da hegemonia, tema outrora clássico na esquerda. Para ele, agora essa questão não mais se funda na presunção arrogante da autoficiência. O ponto de partida para a esquerda democrática buscar ser governo está na convicção de que as relações de forças eleitorais “não são um destino inelutável”; mas podem ser alteradas, também em profundidade, “se muda a oferta política por meio da inovação da proposta que apresentamos ao país”.
Veltroni deixa mais claro este tipo de visão não-atávica ao dizer que o empenho para mudar a disposição de forças com base na política democrática exige recusar as teses da vocação “de direita” da sociedade italiana e da “insuperável minoridade” da esquerda. Significa romper com qualquer idéia naturalizada da correlação de forças e a idéia de que os reformistas e democráticos estão condenados a recorrer à “manobra política” e ao “jogo da aliança” como seus únicos meios para obter consensos majoritários.
“O PD, relembra Veltroni, nasceu com base no pressuposto contrário. Uma profunda inovação política e programática pode mudar, também significativamente, a orientação eleitoral dos italianos”. O dirigente da esquerda italiana se refere neste ponto à necessidade de sua configuração partidária reconquistar parte dos consensos sob hegemonia da direita (construindo-se “uma grande aliança na sociedade italiana, uma aliança com o país”). Nesta passagem ganha significado a proposição do renovamento da política e dos projetos programáticos, apresentada no Relatório de Veltroni como diretriz geral do PD.

Exigente de “generosidade, paciência e tenacidade”, prossegue Veltroni, certamente esse caminho passa por uma convergência política (“heterogênea”), construída não em termos de uma luta contra o adversário segundo a velha fórmula dos Novecentos da aliança entre “partidos de esquerda” e “partidos de centro”. Esta fórmula -- agrega Veltroni – não só é um projeto “incompatível” com o PD (“que é um partido de centro-esquerda”) como se tornou “anacrônica” por não conter “nenhuma potencialidade inovadora”. A aliança a ser buscada é uma aliança para a inovação e a mudança, cuja credibilidade se afirma mediante testes de competência para governar. E isso só será possível, diz ainda o ex-comunista do PCI, se o PD souber demonstrar “capacidade expansiva”, se não delegar a outros “a tarefa, que lhe é própria, de modificar as relações de forças políticas na sociedade italiana, por meio da mobilização de uma proposta renovadora e confiável”.

Como no passado recente outros líderes da “tradição do PCI”, dentre eles Massimo D´Alema, divisaram linhas de atuação – participando inclusive de governos reformistas de centro-esquerda -- que estimulassem a generalização dos benefícios da globalização, agora, espelhando essa “tradição”, por assim dizer, continuada no nexo PDS-DS (Democraticos de Sinistra)-PD, Veltroni também vê movimentos favoráveis forçando passagem nesta hora presente. “Com a crise da hegemonia do pensamento neoconservador, pode se afirmar o primado da política sobre a força e, depois da crise do unilateralismo, pode-se afirmar o multalaterialismo eficaz como única via para o diálogo entre os povos, pela paz e por um desenvolvimento equilibrado e sustentável”.
Veltroni chama a atenção para duas grandes percepções que se afirmam nos tempos conflituosos de hoje. De um lado, os perigos que pesam sobre o meio ambiente vêm impondo uma visão qualitativa do desenvolvimento que faz da pesquisa tecnológica e de novas fontes energéticas os setores básicos de uma “nova revolução industrial”. De outro, cresce um segundo grande entendimento: o de que, para além da contraposição entre religião e razão, afirma-se a idéia de uma sociedade pós-secular na qual a dimensão pública da fé religiosa é reconhecida e chamada a dar contribuição aos ligamentos sociais e à vitalidade da democracia, se fundada na autonomia da política e na laicidade das instituições.

No discurso aqui resumido (apenas em pontos bem gerais), o PD se propõe ser ator relevante na cena italiana de hoje ao se reivindicar possuidor de um projeto – relembra novamente Veltroni – nascido com base na intuição, antes que política, cultural. Projeto, diz ainda, gestado quando se começou a perceber que o novo mundo que estava emergindo vulnerabilizava a velha cultura dos Novecentos, cancelando sua pretensão de auto-suficiência. Tal circunstância exigia “um pensamento novo, novas categorias para se ler a história e novo alfabeto para com ela se dialogar”.
Requerimentos indispensáveis para afirmar – assim resume Veltroni a nova utopia -- o empenho do campo político-partidário dos reformistas por uma “sociedade aberta, livre e igual”, o PD ostentando – em sua interação com outros protagonistas, diz ainda o seu dirigente --, completa e irrenunciável identidade com a meta da democracia, “o único sistema respeituoso da dignidade de todos os seres humanos”.

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