sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Há dez anos, o último grande trauma

César Felício
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Em viagem do Rio de Janeiro para Petrópolis na quarta-feira, aproveitando a semana de pouco trabalho, o economista Gustavo Franco relembrava despreocupado um de seus piores momentos profissionais, epicentro de uma convulsão que marcou o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o Brasil para sempre: a troca do regime cambial administrado pelo de livre flutuação. O jargão econômico atenua a sucessão de acontecimentos que levou a duas demissões de presidentes do Banco Central, socorro a instituições financeiras que até hoje estão sob investigação e a uma perda de credibilidade popular do governo federal que o tempo revelaria como definitiva.

Franco anunciou publicamente a sua saída da presidência do Banco Central no dia 13 de janeiro de 1999, mas a sua demissão fora decidida alguns dias antes, no dia 8. Assumiu o cargo Francisco Lopes e o câmbio foi flexibilizado de R$ 1,21 o dólar para R$ 1,32. Uma semana depois, estava em R$ 1,71. No dia 29, quando Fernando Henrique chegou a temer uma corrida bancária, a cotação atingiu R$ 2,15. Nos três dias seguintes, saíram de cena Lopes e sua "banda diagonal endógena" e o comando monetário foi assumido por Armínio Fraga. Ao longo do ano, a cotação média do dólar ficaria em R$ 1,82. A inflação teve um repique, fatal no poder aquisitivo da população: o IPCA pulou de 1,7% para 8,9% e o IGP-DI de 1,7% para 20%.

"Na crise de agora, a variação cambial foi absorvida como um acontecimento dentro do livre jogo da flutuação do cambial. Em 1999, houve mudança inesperada de regras e um modo turbulento de conduzir esta mudança. A crise cambial se configurou em uma crise decisória. As crises podem ficar maiores ou menores, dependendo do que faz a autoridade máxima. E o governo de então experimentou coisas novas que não deram certo", diz Franco, que considera que as duas demissões seguidas no comando do Banco Central foram combustíveis para a crise. "Havia elementos fora da esfera estritamente econômica, uma disputa de poder. O erro foi consertado com a vinda do Armínio", comenta.

Se continuasse no cargo, Franco gostaria de reverter a tendência de queda na taxa básica de juros, adotada logo depois da eleição, para flexibilizar o câmbio a médio prazo. Até hoje o economista considera que a política cambial adotada em 1998 teve custos toleráveis. "O regime de flutuação acaba tendo mais intervenções que o do câmbio administrado. Eu levei as reservas a US$ 70 bilhões com compras de divisas em março de 1998. O BC comprou US$ 200 bilhões agora. E não estava errado", diz. Fernando Henrique não quis pagar o risco da aposta. E o Brasil teve três presidentes do Banco Central em menos de 30 dias, na última troca abrupta de comando da área econômica que o país teve desde então.

Aproximar as crises cambiais de janeiro de 1999 e a que se desencadeou a partir de setembro do ano passado é tentador, dado o grande contraste entre uma e outra. A desvalorização da moeda em ambos os casos foi brutal, mas diferiu no ritmo. A variação percentual entre a cotação do início da crise e do seu ápice em 2008 foi de 62%, em três meses. Há dez anos, atingiu 77%, em três semanas. Em todo o resto, contudo, o que está acontecendo agora é bem mais suave do que a crise de uma década atrás. A convulsão mundial traz aspectos que até colaboram para a manutenção da estabilidade interna. "O câmbio fez a inflação disparar há dez anos, e no mês passado o IGP-DI registrou deflação, graças à queda do preço internacional das commodities", exemplificou Franco.

Fernando Henrique Cardoso foi reeleito em uma conjuntura de crise. Lula navegava em alta popularidade, em pleno "espetáculo do crescimento" prometido desde sua posse.

Nos meses finais de 1998, após a moratória russa, o Banco Central elevou o teto da taxa de juros de 19% para 29% em 4 de setembro. Quatro dias depois, um pacote de ajuste promoveu um corte de R$ 28 bilhões no Orçamento, sem que se parasse a fuga de investidores. No momento em que Fernando Henrique apertava o torniquete econômico, a agência Moody"s rebaixava a classificação de risco do Brasil. Dois pacotes de ajuda sucessivas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, que somavam US$ 42 bilhões, foram liberados.

A casa caiu na primeira semana de janeiro, quando o governador de Minas Gerais, Itamar Franco (PMDB), anunciou a moratória mineira, fazendo com que o risco político solapasse a credibilidade externa do governo. É a segunda grande diferença: o porte e o vigor da oposição que cada presidente enfrentava no momento em que a crise econômica os encontrou. Fernando Henrique reelegeu-se no primeiro turno, mas tinha contra si governadores, movimentos sociais, sindicatos e partidos com bancada e militância. "A oposição que se faz hoje a Lula é muito diferente, para dizer o mínimo, do que a que Fernando Henrique sofria no momento da desvalorização", comenta o deputado tucano Arnaldo Madeira, que era o líder do governo FHC na Câmara. O parlamentar lembra a dificuldade para medidas de ajuste transitarem dentro da própria base aliada. A cobrança previdenciária dos inativos foi alvo de quatro tentativas. Quando o governo não foi derrotado no Legislativo, perdeu no Judiciário.

A reserva de poder sobre orçamentos de R$ 150 bilhões, somados os recursos de Minas Gerais e São Paulo, é o dado que separa a oposição tucana da petista. Fernando Henrique teve a sua legitimidade questionada 12 dias depois da desvalorização, quando o então ex-prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro, sugeriu a abreviação do mandato presidencial. Dez anos depois, com a crise no auge, Serra e Aécio estabelecem parcerias com o governo federal e os deputados tucanos esbravejam na página do partido na Internet contra os hábitos de leitura do presidente, ou a falta deles.

César Felício é repórter de Política.

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