segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Battisti e crimes políticos

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


O debate sobre o caso Cesare Battisti tem em seu foco a distinção entre crimes comuns e crimes políticos. Há alguns dias, o jornal "Folha de S.Paulo" publicou as opiniões divergentes de vários juristas brasileiros sobre a sentença do Tribunal do Júri de Milão que condenou Battisti à prisão perpétua. Destaco a posição de Janaína Paschoal, professora de direito penal da USP: "Crimes políticos não podem ser confundidos com crimes de motivação política ou ideológica"; "crime político deve ser entendido como ato de manifestação de pensamento, indevidamente criminalizado com o intuito de perseguição. Mas não se podem pretender políticos atos premeditados, deliberados, de matar, ferir, estuprar. Um grupo que se estrutura na prática de crimes, sobretudo contrários à vida, não é político".

Tecnicismos jurídicos à parte, o tema envolve problemas importantes de filosofia política, e creio que a posição da professora Janaína aponta, dessa perspectiva, na direção correta. Além da violência revolucionária que o marxismo, por exemplo, pretende justificar em nome da supressão da violência contida no próprio "sistema" a ser combatido, são famosas certas visões clássicas e hiper-realistas sobre as relações entre violência e política: a contida na fórmula de Claus von Clausewitz, em que a guerra surge como "a continuação da política por outros meios"; ou a de Carl Schmitt, em que a distinção entre amigo e inimigo seria a distinção política por excelência, com a guerra aberta como pressuposto sempre presente como possibilidade e determinando o comportamento especificamente político. Mas é justamente a presença perene dessa possibilidade extrema (de resto, tratada como tal pelo próprio Schmitt) que impõe a redefinição da política em termos que envolvem antes a solução para o problema da violência.

De fato, a situação de guerra ou violência aberta torna, no limite, irrelevante a ideia de crime, ao negar a existência de qualquer resquício de comunidade que ensejasse a comunicação e o recurso a normas comuns (embora até no "terreno baldio" das relações internacionais tenhamos, na verdade, as tentativas de regulação normativa que permitiriam falar de "crimes de guerra", o que significa que mesmo aí estaríamos aquém do limite de pura beligerância). Isso se desdobraria em que numa sociedade na qual se superasse com base na pura e simples coerção a violência caótica, ou a "guerra de todos contra todos" (uma sociedade de escravos, digamos, em que estivesse bloqueada para cada qual, de uma vez por todas, a possibilidade de afirmação autônoma), a rigor não haveria política.

A política se caracterizaria antes, como na clássica fórmula de Max Weber, pela existência de um estado capaz de deter o monopólio da coerção física legítima - destacando-se que na ideia de legitimidade está contida precisamente a de uma comunidade capaz de acatar normas e tradições compartilhadas e de dar, assim, assentimento a determinadas relações de poder e à ordem que nelas se funda ou que elas de alguma forma expressam. O que redunda em permitir a definição de certas condutas como criminosas.

Há, por certo, a complicação relativa ao fato de que a condição descrita pode corresponder ao que prevalece em comunidades tradicionais e eventualmente opressoras ou "sufocantes", na expressão de Ernest Gellner, por contraste com o modelo democrático-liberal e pluralista de sociedade, que recorre à tolerância como virtude e à ideia de um assentimento mais reflexivo e autônomo. Mas o que aqui importa destacar é que mesmo a sociedade liberal-democrática supõe a adesão (ainda que crítica, justamente porque reflexiva e tendencialmente lúcida) a normas compartilhadas que estabelecem direitos vários e, como contrapartida, os crimes envolvidos no desrespeito a esses direitos. É claro, tais crimes podem ter como autores os titulares do Estado, nos casos em que se apropriem violentamente dele, prescindam da legitimação democrática e usem arbitrariamente os recursos de coerção e violência que vêm com a máquina estatal.

Não há como negar, naturalmente, o direito do cidadão a resistir como possa, inclusive violentamente, à violência do Estado ditatorial, e a articular coletivamente a resistência como condição de eficiência. Contudo, tampouco há por que pretender qualificar como menos criminoso, ou como como menos torpemente criminoso (crime "político"), o crime do cidadão que, por ter na cabeça certa ideia a respeito de como melhor organizar a sociedade e o Estado, pretenda estar autorizado a por de lado os embaraços (ou recursos...) do Estado democrático e a recorrer à violência contra os demais.

Por outras palavras, na suposição de que se tenha o Estado democrático, mesmo a mudança de alcance profundo (a "revolução") se haverá de fazer com os meios legais. Como a história da violência revolucionária nos tem mostrado, não há razões para ver as dificuldades que isso eventualmente traga à realização dos objetivos de mudança como mais detestáveis do que os males trazidos pela arrogância autocomplacente dos que se veem como agentes da revolução. Se a violência do Estado ditatorial é crime, sem mais, também para o cidadão crime político fica de fato reduzido, de maneira afim ao que sugere Janaína Paschoal, àquelas manifestações e ações que o Estado liberal-democrático veria como simples expressão normal da cidadania autônoma e que regimes autoritários ou ditatoriais tratem como criminosas.

A matéria mencionada da "Folha de S.Paulo" ilustra os embates e meandros a que está exposta qualquer decisão judicial, mesmo nos Estados democráticos. Seja como for, sendo a Itália sem dúvida um caso de Estado democrático, a perspectiva acima torna claramente desejável, a meu ver, que o STF reitere sua disposição ativista e decida pela extradição de Battisti.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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