segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Crise, inércia e cutucadas

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

A aprovação inicial na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos do plano de estímulo econômico de Barack Obama foi nitidamente partidária, apesar de alguns votos contrários de Democratas. Seja o que for que venha a ocorrer no Senado, a avaliação dos méritos do plano está longe de ser consensual. Matérias de Eamon Javers e Jim Vandehei no site "Político", por exemplo ("The Case for Doing Nothing" e "Go Big or Go Home"), ressaltam o forte contraste entre os que se opõem pura e simplesmente a que haja intervenção governamental na crise e os que acham, bem ao contrário, que serão necessários muito mais recursos dos contribuintes para superá-la. Não obstante as acusações de Paul Krugman sobre uma "economia de má-fé", a turma dos "Fazer Nada", como a denominam Javers e Vandehei, invoca tanto razões "técnicas" (riscos supostamente altos de que o estímulo seja mal sucedido, como nos US$ 168 bilhões injetados na economia por Bush já em fevereiro do ano passado) quanto razões culturais e morais, incluindo a ideia de que uma recessão penosa seria bem-vinda para afastar o país da cultura corrente de irresponsabilidade e endividamento. Sem falar, a propósito de perspectivas divergentes sobre a crise em geral e questões correlatas, da ilustração trazida pelas reuniões simultâneas do Fórum Social Mundial em Belém do Pará e do Fórum Econômico Mundial de Davos, o primeiro algo triunfante e o segundo marcado pelo tom pessimista e penitente.

Naturalmente, a crise e a resposta a lhe ser dada recolocam acima de tudo a questão das relações entre mercado e Estado. Apesar dos muitos equívocos, a defesa que cabe fazer do mercado em termos valorativos tem fundamentos claros: se a autonomia dos cidadãos é um valor democrático incontestável, não haverá como garanti-la se começarmos por negá-la na decisiva esfera econômica. Isso não anula, do ponto de vista dos valores, o reconhecimento da necessidade de que o Estado venha a ser capaz de exercer um paternalismo benévolo. O Estado democrático não pode ser mero instrumento dos agentes ou interesses suficientemente poderosos para pressioná-lo em qualquer momento dado. Ele tem antes de compensar ou mitigar, em sua ação, os desequilíbrios de poder, em particular de poder econômico privado - o que resulta, de certa forma, em reafirmar o próprio princípio do mercado, contra oligopólios e monopólios.

Há várias complicações. Em primeiro lugar, a atuação dispersa dos agentes do mercado produz, no nível agregado, mecanismos objetivos de causação social que frequentemente se chocam com os desígnios dos agentes e comprometem, portanto, sua autonomia - mesmo na suposição de que cada agente seja individualmente "racional" na busca do interesse próprio (a "mão invisível" nem sempre é benigna). Além disso, porém, não cabe supor que os agentes de fato ajam racionalmente. As muitas constatações nesse sentido da psicologia social e da chamada economia comportamental são o objeto de revisão recente por Richard Thaler e Cass Sunstein (no volume "Nudge: Improving Decisions about Health, Wealth, and Happiness", 2008), cuja mensagem geral é a da frequência espantosa, na ótica dos postulados da ciência econômica convencional, com que gente real se deixa levar por fragilidades e limitações que se revelam sobretudo justamente como fruto da interação com os outros, quer se trate do contato pessoal com gente próxima, quer da interação impessoal com os atores dispersos do mercado: a tendência a aderir, mesmo contra a evidência dos sentidos, à opinião supostamente dominante; a tendência ao comportamento de manada, a fazer o que "todo mundo" faz; a tendência à inércia, ou o viés em favor do status quo... E, vistas as coisas em termos de consumidores versus produtores, o fato importante de que, se os consumidores têm crenças pouco racionais, as empresas com frequência têm maiores incentivos para valer-se de tais crenças do que para tratar de erradicá-las.

O objetivo de Thaler e Sunstein é o de extrair dos fatos destacados a recomendação em favor de um "paternalismo libertário", em que as lideranças ou autoridades cuja posição lhes permita condicionar as escolhas (livres) dos demais se valham de estímulos ("nudges", algo como cutucadas) atentos àquelas limitações ou "irracionalidades". Do ponto de vista da crise atual, porém, o problema consiste em que a a indução suave que a perspectiva sugere pouco tem a ver com o supercutucão a que os governos em geral vêm tendo de recorrer. E fica, além disso, a questão de até que ponto as irracionalidades em questão não se mesclam com dificuldades no terreno propriamente moral que, por outro lado, podem redundar em comprometer a eficácia do cutucão: entregar dinheiro dos contribuintes a banqueiros para vê-los repartirem fartos bônus entre si?

Visão realista da dinâmica do capitalismo não tem como evitar, dada uma crise da natureza da atual, a ação governamental que socializa os prejuízos. Isso corresponde, afinal, à caracterização do Estado feita pelo próprio realismo marxista, em que aquele aparece como "capitalista ideal", a proteger o capitalismo dos capitalistas. A nuance crucial, porém, é que esse realismo não pode redundar em que se compre o pacote inteiro do discurso liberal há pouco dominante e se aceite a ideia do Estado como "o problema, não a solução". Ao invés disso, é preciso reconhecer que, além da proteção das pessoas em geral contra as asperezas e assimetrias do capitalismo, a proteção do próprio capitalismo como tal exige ação do Estado, exercida seletivamente, contra os capitalistas. Vale dizer, exige regulação, fiscalização e responsabilização por decisões erradas ou imprudentes. Como, aliás, Míriam Leitão andou lembrando por esses dias ter ocorrido no caso do nosso Proer, diferentemente do que, por enquanto, vemos agora nos EUA, à exceção de fraudes escandalosas ao estilo de Bernard Madoff.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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