quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Do terrorismo político à delinquência comum

Marco Mondaini
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Há muito é clássica a afirmação do grande historiador francês Marc Bloch acerca do fato de que o historiador não é um juiz, muito menos um juiz que enforca. Suas palavras foram responsáveis pela formação de gerações de estudantes do curso de História, em todas as partes do mundo, que começaram a tomar conhecimento do trabalho que cerca a prática profissional do historiador por meio de um livro inconcluso escrito numa das tantas prisões nazistas.

Peço, porém, licença ao mestre francês para dizer que Cesare Battisti merece ser condenado no plano histórico, pois que no plano jurídico isso já foi pelo Poder Judiciário italiano, cabendo ao nosso Supremo Tribunal Federal (STF) a decisão de ratificar ou não a concessão do status de refugiado político feita pelo ministro da Justiça, Tarso Genro. Não se trata de uma condenação individual, mas sim de uma condenação coletiva que engloba significativa parcela daqueles seus companheiros da extrema esquerda que pegaram em armas, na Itália, entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1980 - certamente o período mais sombrio da História italiana depois da escuridão das duas décadas de poder fascista.

Um período que se inicia na esteira de um duplo processo de movimentação social: em 1968, seguindo a maré global, a movimentação estudantil; em 1969, no chamado "outono quente" italiano, a movimentação dos operários. Do cruzamento dessa dupla experiência ganharia forma um segmento político de extrema esquerda reunido em torno da necessidade de estruturação de organizações extraparlamentares voltadas para a formação de um poder operário autônomo em relação às instituições da democracia representativa.

Diante da reação terrorista da extrema direita neofascista aos novos ares que sopravam da parte do movimento estudantil e operário, não foi preciso muito tempo para que tal segmento político de extrema esquerda, do qual Cesare Battisti fez parte, se engajasse na reprodução da "estação das bombas" inaugurada em dezembro de 1969 com a explosão de uma bomba na Piazza Fontana, em Milão.

Assim, enquanto se realizava na mesma Milão, em março de 1972, o XIII Congresso do Partido Comunista Italiano (PCI), chegava a notícia de que fora encontrado um corpo dilacerado por uma bomba na base de uma torre elétrica de alta tensão localizada na vizinhança da grande cidade do norte italiano.
O estupor foi geral quando se descobriu que aquele corpo despedaçado era do intelectual, empresário e dono de uma das maiores editoras italianas Giangiacomo Feltrinelli, que, preocupado com a ascensão das ameaças golpistas de extrema direita, começara a construir uma organização clandestina - os Grupos de Ação Partigiana. Feltrinelli morrera ao tentar acionar os explosivos numa típica ação terrorista.

Dentro desse contexto, não é supérfluo relembrar que, no decorrer do referido congresso dos comunistas italianos, foi eleito secretário-geral Enrico Berlinguer, o mesmo líder que, no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos 60 anos da Revolução Russa de 1917, afirmou ser a "democracia um valor universal".

Ora, sob a liderança de Berlinguer, o PCI - o partido de Gramsci e da resistência ao fascismo - procurou, dentro da legalidade democrática, romper as limitações impostas por uma "democracia bloqueada" dos tempos da guerra fria (e não uma ditadura militar!), tendo ao seu lado cerca de um terço do eleitorado nacional, além de um número de filiados e militantes sempre contado na casa das centenas de milhares.

Com essa base sociopolítica, o PCI enfrentou os "anos de chumbo" apresentando-se como alternativa política democrática, aberto ao diálogo com o Partido da Democracia Cristã (DC) de Aldo Moro - o mesmo Aldo Moro que, na primavera europeia de 1978, seria sequestrado e assassinado pelas Brigadas Vermelhas, tendo o seu corpo sido deixado dentro da mala de um carro numa rua a meio caminho entre a Via delle Botteghe Oscure (sede do PCI) e a Piazza del Gesù (sede da DC), em Roma.

O recado deixado pelos terroristas de extrema esquerda (com a concordância não casual dos terroristas de extrema direita) era claro.

Com o assassinato de Moro, a "estratégia da tensão" venceu e os canais de diálogo entre PCI e DC se fecharam, tornando a democracia italiana ainda mais bloqueada. Não se interromperam, porém, os atentados a bomba patrocinados pela extrema direita (como a explosão da estação ferroviária da cidade historicamente comunista de Bolonha, em agosto de 1980) nem os assaltos, sequestros, rajadas de metralhadora na altura das pernas e assassinatos levados a cabo pela extrema esquerda.

Nessa difícil travessia, as ações de "justiçamento" implementadas por grupos como o Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) de Cesare Battisti (como aquela que vitimou o joalheiro Pierluigi Torregiani, deixando o seu filho até hoje entrevado numa cadeira de rodas) foram responsáveis pela pavimentação da estrada que leva da infâmia do terrorismo político à prática da delinquência comum - uma estrada equivocada desde o seu nascedouro e inaceitável para alguém que vê na democracia e nos direitos humanos o único binário possível a ser trilhado pelo trem em constante movimento da civilização contemporânea.

Marco Mondaini, bacharel em História, doutor em Serviço Social pela UFRJ, mestre em História Econômica pela USP, com pesquisas no Instituto Gramsci de Roma e pós doutoramento no Departamento de Teoria e História do Direito da Universidade de Florença, é autor de Escritos sobre o Pensamento de Esquerda Italiano (Suam/Fundação Biblioteca Nacional, 1999), Sociedade e Acesso à Justiça (Edufpe/Karós, 2005), Direitos Humanos (Contexto, 2006) e Direitos Humanos no Brasil (Unesco/Contexto, 2009)

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