sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Fome de cultura

Paulo.Carlos Augusto Calil
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

A fome de cultura poderá ser aplacada se recuperarmos o papel do Estado, por meio do investimento direto nas ações de interesse social

HÁ UM fenômeno marcante na cena cultural brasileira: a sociedade clama por oferta de espaços de lazer e convívio, pela universalização da expressão artística, correspondendo ao acesso à representação e à participação cultural. Paira uma fome de cultura no ar. Por anos, a Secretaria Municipal da Cultura, cuja origem ilustre remonta à criação do Departamento de Cultura em 1935 -intervenção pública pioneira em nível internacional-, permaneceu estagnada, numa posição de confortável irrelevância política.

Em 2005, a deterioração -e a progressiva paralisia- atingira a biblioteca Mário de Andrade, as 55 bibliotecas de bairro, os teatros distritais, enfim, boa parte da sua rede física. Tornara-se indispensável recuperar a iniciativa do governo, visando à prestação de serviço público de melhor qualidade e à preservação das coleções, dos edifícios e equipamentos. Era preciso sinalizar a mudança de atitude, contra o desânimo geral dos funcionários, descrentes de fantasias redencionistas, e ampliar o orçamento insuficiente. Em um sinal inequívoco de que a cultura alçava outro patamar na Prefeitura de São Paulo, seu orçamento foi de R$ 176 milhões em 2005 para R$ 383 milhões em 2008. A revitalização da biblioteca Mário de Andrade, segunda maior do país, foi priorizada. Ainda em 2009 deve ser entregue seu primeiro módulo, que prevê o restauro do prédio principal, com abertura para a praça que a circunda. Ao mesmo tempo, inicia-se a segunda etapa, com a incorporação de um edifício vizinho, que será habilitado a receber a imensa coleção de periódicos.

Reanimar as bibliotecas públicas foi o maior desafio. Abandonadas pela administração e pelos frequentadores, sua precariedade era chocante: muitas delas não dispunham sequer de banheiro em funcionamento. Para atrair novamente o público a esses espaços, implantamos o Projeto de Bibliotecas Temáticas -atualmente há sete em funcionamento- e atualizamos o acervo com novos livros e assinatura de periódicos. A descentralização dos espaços culturais é hoje inadiável. A implantação em 2006 do Centro Cultural da Juventude, em Vila Nova Cachoeirinha, respondeu em alto nível à demanda da comunidade. No coração de Cidade Tiradentes, inicia-se em breve a construção de um centro de formação cultural para prover a região de cinema, teatro, circo, biblioteca e salão de exposições, além de cursos de formação sequenciada em atividades como cenotécnica, iluminação e sonorização. Esse conceito inovador reúne no mesmo espaço condições para formação profissional e fruição cultural.

A partir da experiência libertadora da vivência cultural, está em curso um crescente processo de culturalização da sociedade. Só a impregnação da cultura na educação formal e nos programas de reabilitação social poderá devolver-lhes alguma expectativa de transformação. Nesse processo, a ação cultural mobiliza e estimula a participação dos jovens em busca de oportunidades de atuação e de afirmação das identidades individuais e de grupo.

Concentrada principalmente no centro da cidade, a Virada Cultural faz parte de um esforço de reocupação dessa área crítica, ainda deprimida após 40 anos de abandono. A cada nova edição, jovens descobrem as ruas e praças do centro velho à procura de sua atração, e tudo se passa sob a égide da relação direta entre poder público e população, sem a intermediação de bandeiras comerciais ou de patrocinadores do dinheiro público via leis de incentivo. O imposto recolhido pela prefeitura devolvido ao contribuinte no velho modo republicano. A Virada Cultural nos ensinou que o vetor que pode recuperar o centro histórico, mesmo na sua vertente construtiva, é o da valorização cultural. Fixada a vocação da região, cabe ao poder público criar condições para atrair atividades ligadas à cultura e às artes: escritórios de arquitetura, de design, produtoras de cinema, de teatro e dança, residências de artistas.

Associar recuperação concreta à simbólica, reurbanização física à humana é o caminho que se vislumbra. Basta observar, no entorno do vale do Anhangabaú, os movimentos espontâneos de abertura de novos bares e restaurantes, faculdades, requalificação de apartamentos em edifícios antigos, gestos inequívocos de convite ao investimento governamental. A fome de cultura poderá ser aplacada se recuperarmos o papel do Estado, por intermédio do investimento direto nas ações de interesse social. Ao assumir as suas responsabilidades, o poder público e seus parceiros darão respostas à altura das demandas vivas da sociedade.

Carlos Augusto Calil , 57, é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e secretário municipal da Cultura de São Paulo.

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