segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Mercados e cultura corporativa

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Confrontando em artigo na imprensa, em 2001, o Fórum Econômico Mundial de Davos e o Fórum Social Mundial, que se realizava então pela primeira vez em Porto Alegre, destaquei, a propósito de manifestações de políticos brasileiros em que se apontava certo esquerdismo ingênuo na promoção do FSM, que uma perspectiva "realista" sem dúvida favorecia Davos no confronto de ambos. O noticiário a respeito do encontro de Porto Alegre exibia de novo o conjunto variado de ativistas que se vinha tornando habitual nos protestos ensejados por reuniões de entidades como o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio: sindicatos trabalhistas, ONGs ambientalistas, defensores dos direitos dos consumidores, movimentos anti-imperialistas ou antiglobalização, feministas, gays, lobbies agrícolas... Davos era, naturalmente, o encontro do establishment do capitalismo mundial então dinâmico e vitorioso, onde se reafirmavam com força o receituário liberal, com suas asperezas hipercompetitivas, e as restrições ao Estado. Já os participantes do FSM não tinham em comum, ainda assim com reservas, senão o utopismo da referência algo desorientada a valores solidários e a instrumentos organizacionais, em particular o Estado, capazes de eventualmente assegurar a coordenação necessária à busca dos objetivos coletivos que se ligam àqueles valores.

Algumas observações, contudo, pareciam justificar-se. Em primeiro lugar, sejam quais forem as condições da realidade a que uma postura "realista" nos convida a atentar, não se pode pretender calar a expressão de valores que, como tal, se oponham a elas. Além disso, não cabe tampouco desqualificar sem mais as chances de que a afirmação de valores alternativos venha ajudar a alterar a própria realidade, como ilustrado pela história da socialdemocracia, no plano doméstico de diferentes países, ou pela difusão internacional da sensibilidade aos temas ecológicos em concomitância com a própria afirmação da lógica competitiva da globalização. Finalmente, há a ironia de algo destacado então em entrevista dada por George Soros em Davos: os países capitalistas centrais, onde mais claramente se afirmaram a globalização e os processos valorizados na perspectiva liberal, seriam aqueles a contar com Estados capazes de executar as políticas de coordenação de que, na verdade, não se poderia prescindir.

Parece claro, a julgar pelo que vimos em Belém, que o FSM segue utópico e marcado por radicalismos confusos. Mas é patente a necessidade de rever a idéia de "realismo" com respeito a Davos e ponderar suas dificuldades. "Realismo" sugere apreensão adequada da realidade, salientando em particular a capacidade de atentar para verdades desagradáveis. Se a busca do "outro mundo possível" do FSM tende a ser desatenta às constrições do mundo real, muitas das ideias liberais triunfantes de anos atrás que Davos sempre festejou se mostram agora como ilusões ideológicas, incluídos com destaque os supostos relativos ao papel do Estado. Nessa ótica, o que melhor resiste quanto à leitura do ponto de vista de Davos contida em meu texto de 2001 é o reconhecimento, expresso por Soros, da necessidade de coordenação estatal. Não obstante, é evidente, agora, o erro da aposta na capacidade de ação efetiva por parte dos Estados dos países capitalistas centrais: se a crise atual há de solucionar-se e se vamos poder evitar a repetição de crises análogas (ou o refluxo da globalização sugerido por medidas protecionistas que ameaçam difundir-se...), é indispensável que mecanismos de coordenação governamental venham a atuar no nível transnacional em que têm operado os mecanismos de mercado.

Do ponto de vista da afirmação de valores, porém, a crise atual traz algo mais, que surpreende pelo alcance do consenso que produz, juntando, na verdade, a turma do FSM à opinião pública mundial, incluindo sem dúvida a dos países centrais. Refiro-me à forte condenação da atuação dos protagonistas do mundo financeiro e, em geral, da "cultura corporativa" vigente, para tomar expressão usada no noticiário dos últimos dias para designar o que as iniciativas recentes do presidente Obama vêm procurando mudar. Naturalmente, trata-se, por um lado, da especulação gananciosa e inventiva que surge com realce entre as próprias causas da crise. Mas trata-se também, por outro lado, do que se revela, em especial, na naturalidade com que altos executivos de empresas beneficiadas por programas generosos de ajuda pública se dispõem a apropriar-se de bônus milionários ou a gastos empresariais luxuosos, em circunstâncias em que os contribuintes de que provêm os recursos são pesadamente afetados pelas decisões pouco prudentes, em muitos casos, dos mesmos personagens.

Que conexões haverá entre a "cultura" que aí aparece e o tema da corrupção, que tendemos a ver como dizendo respeito apenas a países institucionalmente menos desenvolvidos? Por certo, seria possível tratar de apontar matizes morais entre os dois casos distinguidos - e não há dúvida de que, em termos de legalidade, há matizes que os colocam a ambos à parte dos casos de fraude inequívoca ilustrados exemplarmente por Bernard Madoff. Mas é notável que o extenso repúdio a certo relaxamento que permite a todos florescerem já encontre reações conservadoras vocais, em que o mercado, com todas as assimetrias e desigualdades que traga, é simplesmente assimilado à democracia, e em que, como diz Thomas Frank no "Wall Street Journal" de 4 de fevereiro, citando David Brooks, a "ira populista" atual nos Estados Unidos não é senão "o ressentimento de washingtonianos de classe média que de repente se descobriram no comando do mundo".

De todo modo, assim como há Estados e Estados, há também mercados e mercados. Que os Estados melhorem (ou se expandam ao nível necessário), com boas leis, agentes e fiscais, e quem sabe melhorem também culturas e mercados. Quem viver verá.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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