sábado, 28 de fevereiro de 2009

O castelo, os príncipes e o rei nu

Marco Aurélio Nogueira
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Dizem que no Brasil tudo começa depois do carnaval. A convicção é em muitos aspectos verdadeira, mas não se aplica ao ano político, que costuma dar o ar da graça bem antes disso, se é que calendários políticos conheçam férias e interrupções.

2009 começou com a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado e, quase ao mesmo tempo, com a descoberta do castelo construído pelo deputado Edmar Moreira. Nada deveria chamar muito a atenção, não estivesse o deputado ocupando a segunda vice-presidência da Câmara (cargo que incluía a função de corregedor) e não tivesse "esquecido" de declarar o bem, avaliado em mais ou menos R$ 50 milhões. Com a agravante, como logo se soube, de que o castelo havia sido planejado para servir de cassino, num país em que o jogo é ilegal. A cereja do bolo coube ao STF, que revelou a existência de um inquérito para apurar a apropriação indébita, pelo deputado, de contribuições ao INSS. Os desdobramentos do caso são conhecidos, não há necessidade de voltar a eles.

Também seria normal a recondução do deputado Michel Temer e do senador José Sarney à direção do Congresso Nacional, não fossem os parlamentares vinculados ao mesmo partido e não fosse esse partido um operador político inteiramente dedicado a seus próprios interesses, sem ideias consistentes ou laços substantivos com qualquer força viva da Nação. Partido que inscreveu seu nome na história por ter conduzido, com realismo e inteligência, a luta pela redemocratização do País, hoje o PMDB é uma sombra de seu passado, ainda que continue ativíssimo. Faltam-lhe clareza programática e projeto nacional, sobram-lhe vínculos regionais e apetite por cargos. Passou a expressar o "atraso" político brasileiro, mas, curiosamente, ajuda a que se afirme "a tradição do público na sociedade", como observou o cientista político Luiz Werneck Vianna (Estado, 15/2). Faz isso, porém, por via eminentemente fisiológica, acabando por transferir ao sistema uma pesada carga de fatores degenerativos. Para ser contido precisa ser incorporado ao jogo político, mas ao sê-lo rebaixa a qualidade do jogo. Tê-lo na condução do Congresso funciona assim de modo paradoxal: amarra o partido à democracia e à institucionalidade política, ao mesmo tempo que o reforça como estrutura predatória.

Também anterior ao carnaval foi a entrevista do senador Jarbas Vasconcelos, que não poupou palavras para detonar seu partido, que estaria hoje definido por uma estrutura "coronelística" dedicada a explorar o governo e corroída pela negociata política. O tom foi de desgosto e decepção, mas o discurso foi calculado. Dize-me com quem andas e direi quem és pareceu ser o recado ao Planalto, à direção do PMDB e a todos os que flertam com o partido. Política pura, com muita dissimulação, drama e jogos de cena. O estrondo só não foi maior porque o PMDB engoliu em seco, fez-se de morto e esfriou o fato.

O período foi pródigo na reiteração de duas tendências da política brasileira recente. Lula deu prosseguimento ampliado ao estilo que lhe tem concedido altos índices de aprovação popular, que atingiram agora impressionantes 84%. O Encontro Nacional de Novos Prefeitos, por ele patrocinado, foi uma festa política, mas não um desfile carnavalesco. Serviu de palco para a campanha presidencial de 2010, que, a esta altura, já se tornou fato consumado. Mas também conteve um elemento de vida institucional e governo: nas palavras do cientista político Fábio Wanderley Reis (Estado, Aliás, 15/2), "a aproximação do governo federal com o municipal cria uma estrutura de Estado mais equilibrada" e reproduz a forma brasileira de fazer política.

A oposição não perdoou o que considerou uma antecipação da campanha presidencial. Foi, no entanto, bisonha e ineficiente na operação, reiterando a desgraça maior de sua fase atual. Exigir que um governante deixe de fazer política e de buscar extrair vantagens eleitorais de seus atos é tão sem sentido quanto achar que uma oposição de verdade deva atuar em tempo integral para demolir a situação. A denúncia foi somente uma demonstração adicional de medo e preocupação com os movimentos de Lula, quem sabe um reflexo da necessidade que têm os oposicionistas de ganhar tempo para arrumar a própria casa. Além do mais, veio embrulhada em paradoxos e contradições, como bem lembrou o professor Fábio Wanderley Reis: ganhou luz pela boca do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no mesmo momento em que convocava o PSDB para entrar firme na disputa.

Juntando-se os fios, o período pré-carnavalesco serviu de espelho para que mirássemos a real situação da política nacional. Refletiram-se nele diversos traços da nossa dificuldade de ingressar num ciclo virtuoso de vida democrática, reformismo e reorganização social. A persistência do flerte que o Congresso mantém com a desmoralização pública de sua imagem e de suas funções reflete um processo impulsionado pelo esforço compulsivo de políticos e partidos para maximizar interesses de curto prazo. A popularização banalizada da Presidência ganha embalo na figura carismática de Lula. O não-aparecimento de lideranças de novo tipo expressa a falta de uma oposição democrática suficientemente lúcida, unida e corajosa para abrir mão de ganhos imediatos e se apresentar como opção para a sociedade.

O ano começou dando transparência a uma situação cortada por dilemas, paradoxos e interrogações, em que não há nenhum príncipe (o estadista) ao estilo de Maquiavel e desapareceram os príncipes modernos de que falava Antonio Gramsci, os partidos políticos, dedicados a organizar ideias e interesses em torno de um projeto de sociedade.

Nunca o rei esteve tão nu.

Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp, é autor dos livros Em Defesa da Política (Senac, 2001) e Um Estado para a Sociedade Civil (Cortez, 2004)

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