quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Todos estão devendo

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


O triste espetáculo da eleição para as mesas da Câmara e do Senado, com mais um festival de traições e negociações por baixo do pano, demonstra mais uma vez como o processo político brasileiro se deteriorou, não havendo mais uma linha divisória entre os métodos do baixo e do alto clero parlamentar. O processo de impeachment do ex-presidente e atual senador Fernando Collor, em vez de colocar a política brasileira na rota correta, como se esperava na ocasião, deixou uma maldição que tem custado caro às nossas instituições: estabeleceu-se desde então a premissa de que é preciso fazer qualquer tipo de acordo político para viabilizar o que se convencionou chamar de "governabilidade".

Não no sentido de uma coalizão política que dê sustentação a um projeto de governo, mas simplesmente para a garantia de uma maioria parlamentar para que o governo da ocasião não seja inviabilizado, ou até mesmo derrubado, por um golpe parlamentar.

Por essa tese, Collor não teria sido impedido, se naquela ocasião tivesse dividido as benesses do governo com uma base parlamentar ampla. O baixo clero passou a ter uma dimensão maior desde então, e o PMDB a dar as cartas nesse jogo político.

Nos governos de Fernando Henrique, a parte fisiológica do partido ocupou lugares tão importantes quanto o Ministério da Justiça com o mesmo Renan Calheiros, que hoje é usado pelo PSDB para justificar seu apoio ao PT no Senado.

Lula começou seu governo tentando sair dessa armadilha e vetou um acordo que o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, fizera com o PMDB. Na primeira dificuldade que encontrou, porém, teve que voltar atrás e incluiu uma parte do partido no seu Ministério. No segundo governo, incluiu a outra parte, aprofundando a dependência fisiológica.

O resultado dessa mixórdia é que se tornou um axioma da política brasileira que ninguém consegue governar sem o PMDB, embora o PMDB não consiga nunca disputar a Presidência da República unido, em condições de vencer.

Não é possível saber, hoje, quem será com certeza o futuro presidente do Brasil na sucessão de Lula, mas já se sabe quem mandará no governo: o PMDB, que domina o Senado e a Câmara com suas duas faces e, pela primeira vez, está dividindo o poder e os cargos de um mesmo governo.

Lula conseguiu o prodígio de distribuir poderes equivalentes aos dois grupos em que se divide o PMDB, e agora tem a possibilidade de levar o partido unido para a sucessão presidencial, mas, para isso, não pode cair na besteira de oferecer a um dos lados a vice-presidência.

A outra parte cairá imediatamente nos braços da oposição, em que pese o distanciamento cada vez maior entre o ex-presidente Fernando Henrique e o governador José Serra e o grupo de Sarney.

Mas, se foi possível uma reconciliação política entre Collor e Sarney agora, para a eleição do Senado, por que não haveria chances de uma reaproximação entre Sarney e os tucanos, se vingar a idéia de dar a vice na chapa de Dilma Rousseff a um representante da Câmara, Michel Temer ou Geddel Vieira Lima, tradicionais aliados do PSDB?

Para Lula ter o PMDB ao seu lado, mesmo desunido, basta que seu governo se mostre capaz de continuar popular, mesmo com a grave crise econômica que está reduzindo o crescimento e comendo os empregos criados. Como constatou a pesquisa do CNT/Sensus de ontem, dando espetaculares índices de apoio.

Se, no entanto, a popularidade presidencial vier a se mostrar, como a de todos os políticos, vulnerável às consequências dos maus resultados da economia, veremos novamente o PMDB se dividindo para buscar na seara do PSDB um candidato com maior possibilidade de vitória do que a petista Dilma Rousseff.

Quem saiu derrotado claramente dessa disputa pelas presidências da Câmara e do Senado foi o PT, que já não é uma referência política para Lula, que deve se sentir mais seguro com Sarney do que com o senador Tião Viana.

Não foi à toa que Lula escolheu em seus quadros, mas fora de sua política mais tradicional, a candidata à sua sucessão, impondo o nome de Dilma Rousseff goela abaixo dos petistas.

E se ela não se mostrar viável, é possível que Lula saque da cartola outros nomes, mesmo fora do PT, como o do deputado Ciro Gomes do PSB, ou até mesmo tente patrocinar uma unidade peemedebista em torno do governador de Minas Gerais, Aécio Neves.

O PT se transformou em um clone do PMDB, afogado no fisiologismo, mas ainda sem dominar completamente suas manhas mais sutis, e já sem aquele manto de pureza que lhe dava um poder político que o PSDB equivocadamente tentou resgatar.

Se o surpreendente apoio tucano ao PT no Senado tiver sido entendido como uma reafirmação do apoio a Michel Temer na Câmara, a extemporânea manobra pode ter resultados colaterais positivos mais adiante.

Uma coisa é certa, porém: o PSDB, mesmo alegando imperativos éticos para apoiar a candidatura natimorta de Tião Viana, não conseguirá se livrar da fama de fisiologismo que o liga aos vencedores do momento: o ex-ministro da Justiça Renan Calheiros; o ex-ministro dos Transportes Eliseu Padilha e seus assemelhados peemedebistas.

Não há possibilidade de se prever com quem estará o PMDB na sucessão de Lula, e isso de repente não terá a menor importância, já que todos os lados na disputa usam as mesmas armas e partem dos mesmos pressupostos, que só incluem a ética política como um penduricalho para atrair os mais desavisados.

Qualquer governo que dependa de um acordo político com esse PMDB que aí está, dentro de um quadro partidário completamente desfigurado, já começa devendo.

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