terça-feira, 3 de março de 2009

Ascensão e queda da inflação de ativos

Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Sob o comando da economia americana, os dois últimos ciclos de crescimento da economia global (1995-1999 e 2003-2007) foram impulsionados pelo efeito-riqueza apoiado na expansão do crédito fácil e barato.

Os gastos de consumo das famílias ampliaram a participação na formação do dispêndio agregado e se tornaram o componente mais importante da taxa de crescimento das economias mais desenvolvidas, sobretudo nos Estados Unidos e na Inglaterra. Em contrapartida, o consumo deixou de ter o comportamento relativamente estável previsto pela função - consumo keynesiana e passou a apresentar uma instabilidade típica das decisões de investimento.

Não se trata apenas de que uma fração do consumo deixa de ser proporcional à renda corrente, fenômeno que aliás se estabelece à partir da generalização do crédito ao consumidor. Significa, isto sim, que aumenta significativamente a possibilidade de "alavancagem" por parte dos consumidores. Esta alavancagem é fruto da percepção das famílias e de seus financiadores a respeito da valorização acelerada dos ativos financeiros e imobiliários que acumulam em seus portfólios. O efeito-riqueza, diga-se, não se realiza mediante a venda dos ativos, com a conversão do resultado monetário em consumo, senão mediante a ampliação da demanda de crédito por parte dos consumidores "enriquecidos".

Confiantes numa trajetória ascendente de valorização da sua riqueza, os consumidores tendem a elevar imprudentemente a propensão a consumir sobre a renda corrente, apoiados no aumento do endividamento. A perspectiva de enriquecimento acelerado passa a comandar as decisões de gasto de consumo: o nível de endividamento não é mais calculado sobre a renda corrente e sim sobre a expectativa de crescimento do preços dos ativos que compõem o portfólio das famílias. Assim, é possível observar aumentos na relação dívida/renda corrente, embora a relação entre a dívida e o estoque de riqueza possa se manter estável ou mesmo declinar.

A captura de grupos expressivos da população pelo efeito riqueza engendra um ciclo de valorização de ativos com força para excitar a demanda muito além das expectativas normais dos empresários que produzem bens de consumo e bens de capital. O arranjo sino-americano que comandou o espetáculo de crescimento global nos últimos anos dirigiu os efeitos da excitação do consumo dos súditos de Tio Sam para o déficit do balanço de pagamentos e deslocou as decisões de investimento das empresas para os emergentes em rápida graduação industrial , com poucas pressões sobre os preços. As elevações de preços causadas pela excitação da demanda ficam circunscritas aos serviços e aos demais bens não envolvidos no comércio exterior .

As decisões de investimento produtivo nas novas áreas, por seu turno, sofreram um tripla influência da inflação de ativos: 1) o superaquecimento do consumo, excitou a expectativa de lucros da indústria, com os efeitos conhecidos sobre a demanda de commodities ; 2) o aumento do valor do patrimônio líquido - via aumento do valor de mercado da empresa - e a consequente ampliação da capacidade de endividamento empresarial. Assim, apesar das empresas estarem envolvidas num esforço de investimento e no processo de fusões/aquisições, a relação dívida/ capital próprio se manteve estável, ou mesmo declinou; 3) a consequente redução dos custos de capital para a empresa melhor avaliada pelas agências de rating baixou a percepção de risco para prestamistas e para tomadores.

A aceleração da taxa de investimento nos emergentes asiáticos levou à rápida acumulação de capacidade produtiva em quase todos os setores ligados ao comércio exterior. São óbvias as conexões entre o investimento na indústria manufatureira da China e a taxa de crescimento das exportações. O bom desempenho das exportações e o investimento público em infraestrutura promoveram o crescimento do emprego , da renda da famílias chinesas e a manutenção de um alto nível de ocupação da capacidade produtiva.

O ciclo recente "internacionalizou" as informações que promovem a incitação ao investimento. Os índices que medem a confiança dos consumidores americanos e europeus se elevaram de forma persistente, devido à redução da taxa de desemprego e à continuada valorização de ativos. Os emergentes presenciaram o fenômeno "kalekiano" do reforço do círculo virtuoso: o aumento dos investimentos produz um aumento dos lucros. Nos Estados Unidos e na China, a elevação dos lucros induziu a uma maior valorização do patrimônio líquido das empresas, o que se refletiu numa ulterior valorização das ações. O sistema de crédito, com elevados níveis de liquidez, ajusta-se para atender de forma elástica a demanda por novos empréstimos.

Como em todo o ciclo expansivo, o preço de demanda dos ativos reais e dos ativos financeiros tendem a crescer conjuntamente. No ciclo recente, comandados pela inflação de ativos, o crescimento dos preços de mercado dos ativos foi muito mais rápido do que do fluxo de rendimentos. Uma das marcas registradas da capitalização das bolsas e da explosão dos ativos imobiliários foi a impressionante elevação das relações preço/lucro e preço/aluguel.

Como era de se prever, um colapso abrupto dos preços da "riqueza" levaria inevitavelmente a economia à beira da depressão, devido ao caráter cumulativo e de autorreforço imposto pela deflação de ativos. Diante alavancagem imprudente que sustentou seu "enriquecimento", as famílias e as empresas foram "surpreendidas" por um forte crescimento das suas dívidas. O grau de endividamento se elevou tanto em relação à renda corrente quanto em relação aos respectivos patrimônios. No caso das empresas não-financeiras, neste momento já se consolida a percepção de que a relação dívida/capital próprio cresce involuntariamente, com deterioração do rating, o que torna mais cara e difícil a tomada de novos empréstimos. Essa degradação do valor de mercado das empresas e de sua situação de endividamento provocará, com vem provocando, ulteriores desvalorizações de suas ações.

Não bastasse a montanha de lixo tóxico que os desvairados bancos americanos e europeus carregam em suas carteiras, a deterioração das receitas correntes e dos patrimônios não estimulam a retomada do crédito. À falta de uma intervenção mais incisiva dos governos, o bicho da longa recessão vai pegar.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.

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