sexta-feira, 6 de março de 2009

Capitanias hereditárias

Chico Santos
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A gana com que o PMDB, ou um dos seus tentáculos, decidiu investir sobre o fundo de pensão dos empregados de Furnas (Real Grandeza) remete a uma velha e perniciosa prática da cultura política brasileira, a de confundir deliberadamente os limites entre o público e o privado. Talvez tudo tenha nascido lá por 1534, quando da decisão colonial portuguesa de dividir o país em capitanias hereditárias.

Na capitania, o donatário era ao mesmo tempo o público e o privado. O governo-geral (1548) se sobrepôs a ela, mas o mal já estava instalado. Ficou no brasileiro que chega ao poder um vírus, ainda não devidamente controlado pelas vacinas da ética e da cidadania. Ele tende a desenvolver um mal que faz o "doente" confundir as obrigações resultantes desse poder com o direito de avançar sobre o patrimônio que lhe é dado a gerir. Casos históricos não faltam e o dos bancos estaduais é emblemático.

Eles foram por muito tempo uma dor de cabeça nacional. Nasceram para dar suporte ao desenvolvimento local, mas, no geral, o que se viu foram gestões políticas, renovadas ao sabor das (saudáveis) trocas de poder, que privilegiaram tudo, menos as boas práticas de prudência bancária. Não raro, trajetórias salpicadas de escândalos.

Quando o Plano Real acabou com os ganhos inflacionários originários da aplicação dos depósitos dos correntistas, a situação desses bancos ficou insustentável. Sopravam os ventos privatistas e o clima favoreceu a que o governo federal estimulasse uma solução drástica para o problema, não sem custos consideráveis.

O Programa de Incentivo à Redução da Presença do Setor Público Estadual na Atividade Financeira e Bancária (Proes), criado em 1996, consumiu mais de R$ 50 bilhões de recursos públicos no esforço para sanear e vender os bancos estaduais. Como o programa era voluntário, nem todo mundo embarcou, embora os maiores, como o Banespa, o Banerj e o Bemge tenham passado à história.

O aperfeiçoamento dos controles pelo Banco Central (BC) melhorou a gestão nos bancos estaduais que restaram, embora exemplos, como o do Banestes (ES) em 2002, revelem que as coisas ainda dependem do efeito das vacinas sobre o gestor de plantão.

O caso dos fundos de pensão tem um aspecto que o diferencia das histórias de avanço político sobre recursos públicos: é o chamado "efeito Denorex". O dinheiro deles parece, mas não é público. Pertence aos participantes, ativos, inativos ou pensionistas, de cada fundo. Daí, não caber a solução de privatizar, como coube aos bancos estaduais e a muitas empresas estatais, e que ainda pode caber a outras, sem entrar aqui no mérito de todas as privatizações passadas. O caminho para os fundos de pensão é aumentar neles o poder dos seus donos, a regulação e a fiscalização sobre os gestores.

E é neste rumo que vem caminhando a história recente dos fundos de pensão fechados (criados para um público específico, geralmente os empregados de uma ou mais empresas), uma poderosa indústria que, segundo os dados mais recentes da Associação Brasileira de Entidades Fechadas de Previdência Privada (Abrapp), dispõe de R$ 415 bilhões para investir (cerca de 17% do PIB brasileiro), distribuídos por mais de 350 fundações.

Após sucessivos escândalos e três espumosas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) em 13 anos, a última (do mensalão) há pouco mais de três anos, o setor passou por aperfeiçoamentos que melhoraram em muito a governança dos fundos. Especialmente, o caso que aqui nos interessa, os fundos das estatais.

A Lei nº 6.435, primeira a regular o setor, preocupava-se mais com os direitos dos beneficiários e quase nada com a governança. Casos até anedóticos que aconteceram, como a compra de túmulos pela fundação dos empregados da Light (Braslight), resultaram em aperfeiçoamentos, como a imposição de limites de aplicações pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Mas foi somente em 2001, com as leis complementares 108 e 109, que foi atacado de verdade o direito dos participantes a terem maior controle sobre seus recursos em relação às patrocinadoras e, no caso das estatais, em relação aos governos e aos partidos no poder. Foram criados conselhos deliberativos, paritários, compostos por seis membros, três escolhidos pelos participantes e três indicados pelas patrocinadoras.

Os conselheiros definem as políticas das entidades, nomeiam a diretoria executiva e, entre outras coisas, não são demissíveis, exceto por condenação judicial transitada em julgado ou por processo administrativo-disciplinar. Têm quatro anos de mandato.

O presidente do conselho tem o voto de minerva e deve, obrigatoriamente, ser indicados pelas patrocinadoras. Aqui há um aperfeiçoamento a fazer para reduzir ainda mais o risco de manipulação política. O voto de minerva como está, ainda garante o controle da patrocinadora sobre o dinheiro que é dos seus empregados.

A diretoria da Real Grandeza só não foi demitida à revelia dos participantes por uma nuance do seu regimento interno. Uma saída global seria a legislação estabelecer, como já ocorre nas sociedades anônimas mais bem governadas, que questões essenciais exigiriam o voto da maioria.

A regulação e fiscalização do setor, feita hoje pela Secretaria de Previdência Complementar (SPC) do Ministério da Previdência, também vai passar por aperfeiçoamentos. O deputado federal Chico D"Angelo (PT-RJ) promete entregar até a próxima semana à Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara seu relatório sobre o projeto do governo de criação da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), criada por medida provisória em 2004 e morta no Senado três meses depois.

Será uma autarquia com recursos próprios (uma taxa sobre o setor), funcionário concursados, mais auditores e uma diretoria técnica e ilibada (aqui que mora o perigo) a ser indicada pelo governo. O projeto não prevê, mas o deputado está inclinado a sugerir que os diretores tenham mandatos fixos. Ele acha que o mandato dá "uma certa estabilidade". Mas não acha que, neste momento, seja o caso de criar a Previc como uma agência independente do Ministério da Previdência, o que seria um passo adiante.

Chico Santos é repórter da Sucursal do Rio.

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