terça-feira, 3 de março de 2009

"Consciência social de brasileiro é medo da polícia"

Arnaldo Jabor
DEU EM O GLOBO/ SEGUNDO CADERNO


Nelson Rodrigues previu a onda atual de neocanalhas

Uma das obsessões de Nelson Rodrigues era o canalha. Ele dizia: "Ninguém sai na rua e bate no peito berrando: "Eu sou um canalha"". O maior dos pulhas se achava um santo de vitral. Mas isso mudou muito.

Hoje, o canalha se orgulha de sê-lo. Veste-se de canalha, bigode e gravata de canalha, cabelo pintado, carantonhas ferozes. Antes, o canalha se ocultava pelos cantos, escondido da própria sombra. Hoje, os sem-vergonhas ostentam orgulho pelo que chamam de "realismo político" ou necessidade de alianças. Roubar são ossos do ofício. A pornopolítica tomou conta de tudo, e Nelson é que tem fama de pornográfico - logo quem... um moralista que corava diante de um palavrão. Mas, hoje, Nelson, revisto como estilo e como visão de mundo, traz uma lição política.

Filho do jornalismo policial com o fundo talento de Dostoievski caboclo, Nelson mostrava como um escritor deveria se posicionar diante do texto neste país. Uma vez ele me disse ao telefone que o "problema da literatura nacional era que nenhum escritor sabia bater escanteio". Ensolarada imagem esportiva para definir muito literato folgado.

Formado nas delegacias sórdidas, vendo cadáveres de negros plásticos e ornamentais, metido no cotidiano marrom do jornal do pai, Nelson flagrou verdades imortais que estavam ali, no meio da rua, na nossa cara, e que ninguém via.

Uma vez ele me disse: "Se Deus perguntar para mim se eu fiz alguma coisa que preste na vida para entrar no céu, eu responderei a Deus: "Sim, Senhor, eu inventei o óbvio!""

Sua literatura nos ensina o óbvio e isso é profundo numa literatura eivada de ambiciosos engajamentos "corretos" ou cheia de intenções formais desesperançadas que transformam o cinismo debochado numa visão de mundo.

Como criar (querem uns), sem denunciar o "mal latino", a miséria, como o chatola García Márquez, ou como criar (querem outros) sem babar o ovo de Joyce, Kafka ou Beckett?

Ele foi o primeiro a sacar o futuro dos marxistas de galinheiro do passado que hoje lutam por boquinhas e roubam no mensalão.

Até hoje, muita gente não entendeu que sua grandeza está justamente na sincronia com os detritos do cotidiano. A faxina que Nelson fez na prosa é semelhante à que João Cabral fez na poesia. Nelson baniu as metáforas a pontapés "como ratazanas grávidas" e criou o que podemos chamar de antimetáforas feitas de banalidades condensadas. Suas comparações sempre nos remetem a um "mais concreto" que denota comicamente a impotência da literatura.

Shakespeare tinha isso, Cervantes também. Suas frases famosas nunca aspiravam ao sublime. Exemplos: "O torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado", "A mulher dava gargalhadas de bruxa de disco infantil", "Seu ódio era tanto que ele dava arrancos de cachorro atropelado", "Seu peito se encheu de um ar heroico como anúncio de fortificante", "A bola seguia Didi com a fidelidade de uma cadelinha ao seu dono", "O juiz correu como um cavalinho de carrossel", "A virtude é bonita, mas exala um tédio homicida. Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera", "O sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura".

Às vezes, ele dá lições de arte e literatura: "Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol nenhum. E vem a grande verdade: a obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita. A partir do momento em que o Fluminense deixou de ser tão elitista, tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões".

Gilberto Freyre sacou sua "superficialidade profunda", assim como André Maurois entendeu que a genialidade de Proust era "a épica das irrelevâncias...". E isso é muito saudável, num país onde ninguém escreve um bilhete sem buscar a eternidade.

Em meio a esta crise, dominados pela mídia, sem projeto político claro, "somos uns Narcisos às avessas que cuspimos na própria imagem", "vivemos amarrados no pé da mesa bebendo água numa cuia de queijo Palmira", "hoje o brasileiro é inibido até para chupar um Chicabon". E uma das razões para estarmos "mergulhados em negra e cava depressão" é a visão épica, generalista, ideológica ou ambiciosa demais nos projetos e programas e utopias para o Brasil. Se bem que ele mesmo dizia: "Sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo".

A lição política de Nelson é de que talvez as coisas sejam muito mais simples. Não adianta nem nos "atolarmos em brutais euforias" nem vivermos com "complexo de vira-latas", atravessando a "aridez de três desertos".

O Brasil não se salvará com planos messiânicos ou ideias gerais de "epopeias de Cecil B. de Mille", sejam elas epopeias operárias ou epopeias neoliberais. O "óbvio ululante" é limpar a casa e cuidar do detalhe, do enxugamento do Estado, "chupando a carótida dos chefes das estatais como tangerinas" quando se mostrarem obviamente ladrões ou favorecendo correligionários, como vemos todo dia.

Salvar o Brasil é óbvio, tão simples e puro como a prosa do NR - é só pensar no presente e não sonhar com um futuro impossível. O PMDB, por exemplo, é um partido que extirpou o canalha e instituiu o pragmatismo dos delitos permitidos, de modo a nos anestesiar com a impossibilidade de solução ou de punições. A extraordinária entrevista de Jarbas Vasconcelos, fundamental para o país, teve até o sabor de algo arcaico, nostálgico dos parlamentos do Império. Seus colegas velhacos até riram da "inatualidade" de seu gesto - que coisa "antiga", denunciar ladrões...

O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-lata e protestar, como fez agora com sucesso na tentativa de assalto à mão armada do PMDB ao fundo Real Grandeza de Furnas.

Não conseguiram. Porque, como Nelson dizia: "Consciência social de brasileiro é medo da polícia." E, agora sabemos, da opinião pública também.

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