terça-feira, 10 de março de 2009

Exorcismos da contradição

Wilson Figueiredo
Jornalista


Não chega a ser exagero dizer, sem compromisso, que a classe média no Brasil prefere ser tratada no singular e, sem maior pretensão científica, reverenciada pela boa vontade democrática.Por mais que seja vária na aparência social, veio para conquistar lugar ao sol e fazer História, ainda que por linhas tortas. A caligrafia pequeno-burguesa é universal e quer desempenhar papel equivalente à congênere norte-americana. Dispensa argumento científico porque, no singular como preferimos ou no plural como gostam os entendidos, a classe média responde pelo que o Brasil tem de moderno com o exorcismo da contradição. Certas raízes são difíceis de serem extirpadas.

Num país que recorreu ao regime republicano de maneira improvisada, até que ficou barato o custo da primeira rodada. Ao fim de um ano já se dizia abertamente que não era a república dos sonhos dos seus arautos. As deficiências da classe média brasileira anterior à industrialização deixavam muito a desejar, embora fossem universais. No varejo falava-se de revolução, cujo conceito ainda era rústico e confinado aos quartéis. Essa confusão (melhor, esse atraso), entre uma coisa e outra, golpe de Estado e revolução, permeia páginas e páginas da História do Brasil. Mas já estamos no segundo volume. O modelo republicano que o brasileiro adotou em 1930 foi a mudinha tenra com viço de revolução, mas de espécie silvestre, puxada para a ditadura, e não para a democracia. Chegou a se apresentar como revolução liberal.

Empurrou com a barriga, por quatro anos (quase), o título de governo provisório para retardar o compromisso democrático e a limpeza geral pelas urnas. Ou, melhor, disfarçar o lixo sob o tapete.

É longa a história daquela classe média limitada a funcionários públicos, comerciários, pequenos comerciante, profissionais liberais. Assinou o ponto e, com o tempo, ganhou recheio menos volátil do que o ufanismo de país “essencialmente agrícola”, sem solução para 70% de analfabetos e com um mercado interno que era apenas, onde existia, o lugar de se comprarem hortaliças e frutas. Os paulistas chiaram para valer em 1932 e a paz foi selada com a eleição da Constituinte, dotada de efeito reconstituinte, uma espécie de biotônico Fontoura para a República. A Constituição de 34 honrou o voto direto e, por medo de melhorar, manteve as oligarquias, admitiu o voto feminino mas o cenário internacional não ia bem das pernas.A guerra fez a cabeça da classe média, que percebeu a possibilidade de fazer política fora dos partidos, e até a despeito dos políticos. Sem falar que saiu às ruas quando foi necessário.

A classe média começou a contar, por trás das primeiras novidades sociais e trabalhistas. O voto feminino deixou o Brasil à frente do que havia de mais avançado para a época, que já acumulava nuvens. Que adiantava o voto feminino sem eleição? O que se adotou em tese, falando relativamente, não foi pouco. Não se pode esquecer que maus eflúvios, de fora para dentro, e ventos desencontrados de dentro para dentro do país, em três anos descartaram a Constituição de 1934 e, sem o Congresso, a democracia foi aposentada à véspera da primeira eleição presidencial direta em 1938. Então o Estado Novo veio fazer reformas que os políticos, como de hábito, apenas discutiam. A conta, evidentemente, ia para a democracia, que é a avalista tradicional dos erros. O Brasil insistiu em mesclar atraso e progresso, e reeditou os lugares-comuns que, quando há democracia, sustentam os mesmos políticos. Dizia-se, mas não se escrevia, que o Brasil crescia de m adrugada, quando o governo dormia a sono solto.

Foi-se o Estado Novo e, com a democracia de volta, a classe média se apresentou melhor a cada eleição. Tem muito, entre erros e acertos, a ser selecionado. Duas ditaduras e dois períodos constitucionais depois, há muito para se encaixar. Ditaduras lidam mal com contradições, que fazem a fortuna dos negócios políticos tanto nelas quanto na democracia. Foi por aí que se consolidou a classe média, quando a industrialização deixou de ser retórica. O mercado interno foi mais do que operação de compra venda de bens duráveis, e já se considera a praça que a classe média ocupou. Começou aí outra ordem de dificuldades a serem consideradas à luz do tempo de cada uma.

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