domingo, 22 de março de 2009

A ira e o rei

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO(PE)

Os EUA estão indignados, há muito tempo que o gigante não se agitava desta maneira. O caso Watergate, no início dos anos 70, mexeu com a sociedade, tocou a consciência pública. O caso dos bônus milionários oferecidos aos executivos das instituições financeiras falidas vai além dos brios cívicos, multiplica a indignação pessoal por milhões. A sociedade de massas, geralmente amorfa e ponderada, de repente individua-se. Através da ira.

O cidadão sente-se roubado. O contribuinte – desempregado ou não, quebrado ou não, mais ou menos informado – sabe que o tremendo abalo naquela estrutura que lhe oferecia tanta segurança e orgulho foi causado pela incompetência e ganância de altos funcionários de empresas salvas pelo Tesouro e, não obstante, agraciados com generosos prêmios em dinheiro. Os americanos ultrajados pelos abusos praticados no mercado financeiro não se tornaram esquerdistas, ao contrário, estão furiosos com estes traidores do capitalismo, duplamente fracassados como depositários da poupança e da confiança popular. Congressistas republicanos de direita chegaram a propor que os responsáveis pela quebradeira fossem obrigados a cometer haraquiri.

A legislação aprovada nessa quinta feira em Washington é extremamente rigorosa com aqueles que até recentemente simbolizavam a ousadia pessoal e o sucesso rápido. Inusitadamente casuista, sob medida, tudo nela tem endereço certo: taxa em 90% os ganhos com bônus em empresas que receberam mais de cinco milhões de dólares em ajuda e, além disso, é retroativa, inclui os ganhos de 2008 quando a crise escancarou-se.

Acostumado a engolir gigantescas mentiras, altas doses de cinismo e imensas bandalheiras semiabertas, o cidadão brasileiro começou o ano sem oferecer qualquer sinal de mudança. Nada indicava que a recondução de velhas raposas para presidir a Câmara e o Senado seria capaz de produzir algum tipo de comoção numa república dominada pela modorra estival e a inapetência para questões morais.

Um deputado-castelão, esquecido da sua função de corregedor, proclamou as virtudes da impunidade e o vício da amizade. A recondução de José Sarney à presidência da Câmara Alta atravessou as fronteiras e foi repudiada pela imprensa internacional. O ex-presidente Fernando Collor, desmoralizado pelas fraudes que praticou no passado, foi escolhido pelos pares para chefiar importante comissão parlamentar.

A sucessão de escândalos, principalmente no âmbito do Senado, somada à percepção de que a sociedade já não dispõe de uma agremiação política capaz de empunhar a bandeira da decência e da dignidade, acionaram iniciativas individuais desesperadas – quase suicidas, como a do senador Jarbas Vasconcelos – que, por milagre, produziram alguma ressonância.

Enquanto nos EUA a indignação alimenta-se nos milhões de dólares em prêmios indevidos, nossa numerologia é mais modesta e nem por isso menos absurda: para 81 parlamentares, o Senado dispunha de 181 diretorias administrativas e, mesmo que diante da grita tenham sido sumariamente cortados cinquenta marajás, cada senador continua com pouco menos de um diretor e meio (alguns com direito a carro oficial). Isto sem falar no séquito de assessores, aspones e no número assustador de senadores-suplentes, eleitos sem votos, por osmose.

Por força de sua biografia e dos atributos que faz questão de ostentar, o ex-presidente da República José Sarney tornou-se símbolo das pequenas, médias e grandes mazelas que deslustram nosso panteão político. Intoxicado pelas próprias façanhas tornou-se menos cuidadoso, não se importa em deixar as impressões digitais em episódios pouco edificantes.

Senhor absoluto do Maranhão foi visitar seu segundo feudo, o Amapá, que o escolheu como senador. Recebido no aeroporto como "nosso rei" aceitou o agrado sorridente, certo de que o merece.

Está evidente que nossa ira, ao contrário da americana, ainda é precária, difusa, insuficiente. A sociedade brasileira ainda não se sente violentada nem roubada como acontece agora com a história dos bônus nos EUA. A ignorância, a distância, os conchavos e cumplicidades impedem que a indignação chegue ao Amapá. Todos sabem que o rei Sarney está nu. Só falta mostrar.

» Alberto Dines é jornalista

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