segunda-feira, 6 de abril de 2009

Eleitoral e eleitoreiro

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Temos visto, no período recente, a imprensa a tomar com insistência o tema da "antecipação" da campanha eleitoral de 2010. Em conexão com ele, surge a questão de até que ponto esta ou aquela atividade dos candidatos potenciais ou dos titulares de cargos governamentais, com destaque para o presidente da República, seria atividade de campanha exercida fora dos prazos legais e passível de denúncia.

Na medida em que há leis que tratam de regular as campanhas, não é irrelevante se elas são ou não cumpridas. E é bom, em princípio, que disponhamos de uma Justiça Eleitoral guiada pela preocupação de assegurar que o processo eleitoral se desenvolva de modo apropriado. Mas são muitas as dificuldades envolvidas, e é duvidoso que nossos dispositivos legais a respeito sejam suficientes para contorná-las. Veja-se, em nosso vocabulário político, a fluidez da linha que separa o "eleitoral" supostamente legítimo do depreciativo "eleitoreiro" - e o fato de que este último é aplicado não só a práticas de campanha como tal, mas às próprias ações administrativas dos governos.

Ora, se temos democracia e eleições e se estas ocorrem com frequência, o empenho de separar o eleitoral do vil eleitoreiro é problemático. A democracia eleitoral requer que o eleitor seja informado do que faz o governo e possa usar essa informação como critério importante de sua decisão de voto. O grande argumento em favor da possibilidade de reeleição, inclusive no caso de cargos executivos, é justamente o de que o eleitor possa recompensar ou punir, com seu voto, o desempenho prévio dos titulares que se recandidatam. Embora possa haver bons motivos para restrições à possibilidade de reeleição para certos cargos, o princípio geral em jogo vale, de modo muito mais amplo, nas relações entre eleitores e partidos ou, em geral, entre eleitores e alternativas políticas diversas que se confrontem. Seja como for, é evidente a impropriedade de pretender que a comunicação relevante só venha a ocorrer em certo momento: num sentido importante, administrar democraticamente é, por definição, fazer campanha eleitoral.

Mas é também evidente que se acha em questão algo mais do que comunicação mais ou menos intensa, a saber, o conteúdo da comunicação e seu significado para os eleitores. Estudos sobre o funcionamento do Legislativo conduzidos nos Estados Unidos há tempos destacam o papel exercido pela "conexão eleitoral", envolvendo a suposição "realística" de que os parlamentares estão interessados antes de mais nada em sua própria reeleição e prontos, em razão disso, a favorecer o clientelismo e o chamado "pork barrel". O problema é como combinar a atenção realista aos interesses dos eleitores, dos quais se esperam retribuições eleitorais, com o empenho de evitar o estreito particularismo de tais extremos e seus correlatos negativos.

Vimos há pouco Jarbas Vasconcelos em denúncia veemente do caráter "eleitoreiro" de toda uma linha administrativa ou de política pública como tal, com a caracterização do programa Bolsa Família como "o maior programa de compra de votos do mundo". Qual a sugestão a depreender daí quanto à forma correta de conceber e executar políticas públicas e democráticas, em que a compra de votos não ocorresse? Certamente a de uma administração orientada com exclusividade por complexos programas de longo prazo, presumivelmente acompanhados do convite a que, ao tomar suas decisões de voto, os eleitores (em particular, é claro, a maioria de eleitores carentes, onde as eleições se ganham ou perdem) venham a situar-se sofisticadamente diante de tais programas, ponderando a articulação entre o curto e o longo prazo nas ações governamentais e em seus efeitos e apoiando os seus proponentes. Isso redunda em martelar de novo a velha tecla do anseio pela "política ideológica".

Mas as objeções são várias. Em primeiro lugar, essa demanda latente e meio surpreendente por ideologia como fator de decisão política sofisticada se choca com certa difundida avaliação positiva (justamente contra velha retórica ideológica de esquerda) do pragmatismo que supostamente leva, por exemplo, as eleições municipais a serem decididas por eleitores atentos aos ganhos imediatos que as diferentes propostas lhes oferecem. Além disso, o longo prazo não é senão uma sucessão de prazos curtos, e há urgências a serem atendidas até como condição de que se possam perseguir objetivos mais remotos (sem falar, quanto a um programa como Bolsa Família, das condicionalidades que a ele se ligam e de sua relevância direta para considerações de longo prazo). Finalmente, não há como deixar de reconhecer que os eleitores alcançados pelas políticas em questão e movidos eleitoralmente por elas são, de fato, como consequência de suas carências, os menos capazes de deliberação sofisticada sobre assuntos político-eleitorais: depois de séculos de produzir e manter uma sociedade desigual, cabe pretender cobrar sofisticação e paciência dos menos iguais, especialmente num quadro em que o que se vê entre os mais iguais é o oposto, com ganância, imediatismo e corrupção?

Anos atrás, Philip Converse resumiu em rica análise ("Popular Representation and the Distribution of Information", 1990) constatações reiteradas sobre a má distribuição da informação sobre política e suas consequências normativamente negativas para a ideia de representação. Usando a metáfora de "sinal" versus "ruído" nas relações entre representantes e bases eleitorais, Converse salientava a sugestão de que os sinais tendem a vir sobretudo das bases socio-economicamente favorecidas e mais informadas, com a implicação de que os menos favorecidos e informados seriam parcialmente "disenfranchised", ou excluídos da representação.

Mas há um sinal inequívoco a emanar destes últimos, justamente o que diz respeito a suas carências e urgências. Vale propor que tal sinal seja ignorado?

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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