segunda-feira, 27 de abril de 2009

Lendo Gramsci no contexto chileno

Ana Amélia M. C. Melo
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL


Antonio A Santucci. Gramsci. Santiago do Chile: LOM, 2005. 110p.

A publicação este ano, no Chile, de mais uma biografia política de Gramsci tem um interesse que configura a necessidade de refletir sobre o espaço da política atual chilena. Não é desconhecida a vasta produção de Antonio Santucci, recentemente desaparecido, sobre Gramsci e menos ainda a reconhecida importância da contribuição por ele dada à interpretação do pensamento do marxista italiano. Este livro, mais uma vez, repete a fina interação entre a vida do homem, sua produção intelectual e atividade política. Sucinto, não deixa de interessar a iniciados ou familiarizados conhecedores de Gramsci.

Se nestes tempos de exaltada fé no triunfalismo, a vida de um homem como Gramsci pode parecer a de um derrotado, é ela, no entanto, que vem revelar sua extraordinária força moral e rigor intelectual. Foi ele capaz de enfrentar, com sobriedade, sua prisão em 1926, ousando reelaborar a teoria marxista na solidão do cárcere [1].

A publicação da biografia política de um dos maiores pensadores marxistas deve, mais uma vez, servir como uma chamada à reflexão sobre o mundo político, sobre o lugar da política, essa atividade que originariamente significava, de maneira honrosa, interesse pela coisa pública e que hoje se vê carregada de sentido pejorativo. O interesse pelo pensamento de Gramsci na América Latina esteve sempre vinculado à originalidade de seu pensamento, ao apelo a uma política convocatória das massas e ao papel da cultura. Não é por acaso que a primeira publicação em língua estrangeira faz-se em Buenos Aires entre os anos de 1958 e 1962 [2].

Para Santucci, é possível destacar dois enfoques em Gramsci. O primeiro, na pauta diária dos comunistas por largos anos, é composto pelos textos iniciais do jovem Gramsci voltados para a análise das questões do Partido Comunista Italiano; o outro, que hoje em dia ganha relevo, é a do pensador sobre a política em sentido amplo. Se os primeiros textos eram mais circunstanciais, os da segunda fase demarcam uma maturidade e amplitude de conceitos que despontavam no cenário de suas discussões partidárias de juventude. Claro está que, pela própria concepção de Gramsci, estes dois campos da atividade humana são inseparáveis. Porém, no marco atual, com a falência dos partidos comunistas aos quais o pensamento de Gramsci esteve sempre vinculado e que, por isso, serviam de filtro para a interpretação de suas idéias, os conceitos sobre o significado da política e o seu affaire adquirem relevância.

No contexto globalizado das sociedades contemporâneas – especialmente no caso chileno, onde a transição política da ditadura para a democracia fez-se de modo lento e negociado em prol de uma estabilidade institucional e com altos custos para a sociedade civil –, o pensamento de Gramsci faz-se notar como uma reflexão capaz de iluminar de alguma maneira o mundo da política, de propor uma maneira alternativa e mais democrática de participação social.
A tônica do governo atual tem sido a do crescimento econômico. O preço da transição para a democracia foi a sustentação de um processo de autonomia da economia, que o presidente Lagos tem referendado nestes últimos anos. Neste sentido, a política tem ocupado um lugar, antes de tudo, coadjuvante. O que se afirma constantemente é a necessidade de despolitizar as questões referentes aos destinos do país. Esta impropriedade é surpreendente quando surge de um governo socialista, que se propunha romper com essa fissura chilena entre a sociedade e a política, herança da ditadura pinochetista.

É neste sentido que o pensamento de Gramsci recobra importância. A proposta, em primeiro lugar, da política como espaço essencialmente humano e, em segundo, de uma política com ampla participação das massas, de “ascenso civil dos estratos desfavorecidos da sociedade”, deve ser relembrada. Da mesma forma, é preciso destacar a importância da categoria de sociedade civil como esfera de organização com base no consenso espontâneo.

A ênfase de Gramsci na inter-relação entre o Estado e a sociedade civil, recusando a noção de Estado estritamente como governo e ressaltando a necessidade de desenvolvimento da sociedade civil, não apenas aponta para a atualidade de seu pensamento, como também, e mais do que isso, ajusta-se ao modo de organização das sociedades globais, aos novos movimentos sociais, às organizações por categorias, por gênero, etnias, etc.

A busca de uma alternativa ao processo de despolitização da sociedade chilena – que reiteradas vezes vem revelando baixos índices de alistamento eleitoral de jovens, bem como descrença nos tradicionais partidos políticos – pode ser encontrada na promoção do desenvolvimento da sociedade civil, na sua organização e amadurecimento. É através dela que é possível revolucionar mais uma vez, agora em nova chave, a sociedade chilena, rompendo a herança de silêncio e conformismo da ditadura. O Estado aqui, seguindo as proposições gramscianas, pode ocupar sua função ética de “educar a opinião pública e influenciar a esfera econômica” no sentido de uma ampliação da democracia.

Na concepção gramsciana a sociedade civil está em articulação com o Estado. No entanto, no cenário atual da globalização, e no caso chileno, este Estado tem priorizado a dinâmica deste processo global e, mais do que isso, tem se tornado refém dele [3].

Assim, a política tem se transformado em uma atividade que, se por um lado releva a preocupação do governo Lagos “pelo social”, por outro reduz os pobres à mera função de objetos de programas de superação da pobreza. Neste caso, a qualidade de sujeito da política é irrelevante, já que o governo e seus técnicos conhecem perfeitamente o que as pessoas desejam e precisam. Conseqüentemente, aos políticos “profissionais” e tecnocratas é encomendada a tarefa de administrar e resolver os problemas dos mais desfavorecidos.

A leitura de Gramsci, neste contexto, é mais do que esclarecedora. Ela pode questionar o domínio quase dogmático do modelo de globalização, propondo uma via mais humana e democrática, com o fortalecimento da cidadania e com a participação das massas.
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Ana Amélia M. C. Melo é historiadora e doutora pelo CPDA/UFRRJ, professora.de história da UFC
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Notas
[1] Melo, Gilvan. “Gramsci: um inovador”. Jornal do Comércio, Recife, 8 maio 1988, p. 7.
[2] Massardo, Jaime. "Presentación". In: Santucci, Antonio. Gramsci, cit.
[3] Manuel Castells. Globalización, desarrollo y democracia: Chile en el contexto mundial. Santiago de Chile: Fondo de Cultura Económica, 2005, p. 22.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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