domingo, 5 de abril de 2009

Na máquina do tempo

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Os historiadores estão interessados na Grande História, biógrafos (e também jornalistas) adoram a Pequena História. O encontro do G-20 em Londres foi uma rara confluência da "grand histoire" com a "petite histoire", pororoca do transcendental com o trivial.

O baile de egos na beira do abismo produziu magníficas decisões e intenções, a mais badalada foi a decretação do fim da era do sigilo bancário. Vão acabar os paraísos fiscais. O cidadão honesto nada tem a temer, ao contrário dos corsários – os santuários onde guardavam seus botins estão, aparentemente, com os dias contados.

O anúncio não chega a configurar-se com uma nova ordem econômica mundial, mas sinaliza com clareza para um consenso moral em relação a três pontos: I) O capitalismo selvagem e suas manipulações clandestinas podem estar chegando ao fim. II) A indomável corrupção poderá ser drasticamente limitada e III) o crime organizado está prestes a perder a sua ilimitada capacidade de infiltração e capilaridade.

Nos paraísos fiscais estão os ninhos onde se incubam os ovos das serpentes que ameaçam o mundo contemporâneo. A designação de "paraíso" é, em si, uma aberração porque confere uma indevida aparência bíblica à fabricação de perversidades e malefícios. Mais apropriado seria denominar estas lavadoras de dinheiro sujo como "infernos fiscais", dada a sua capacidade de corromper os conceitos de erário, democracia, isonomia, regulamentos e obediência cívica.

Outras manifestações logo virão à tona, mas a fala de Barack Obama ainda que desacompanhada de medidas concretas, deverá produzir alterações psicológicas muito além do grupo dos vinte países mais ricos: o mundo não deve contar exclusivamente com os excessos do consumo do Tio Sam. A febre comprista da sociedade americana convertida em paradigma do comportamento internacional deverá ser redirecionada para a poupança. No lugar do consumo conspícuo, o consumo consciente, a defesa do meio ambiente, o desenvolvimento de novas matrizes energéticas, o bem-estar público. Aos emergentes caberá atender as demandas dos seus próprios mercados, socialmente legítimas.

A reunião londrina do G-20 emitiu uma inconfundível atmosfera de austeridade. Se confirmada e mantida, poderá redirecionar o próprio desenvolvimento econômico mundial e estimular uma reversão cultural cujos efeitos podem ser comparáveis aos do Renascimento. Nas últimas duas décadas, graças aos efeitos perversos das tecnologias, assistimos à degradação dos valores que a humanidade levou séculos para aperfeiçoar e acumular. Talvez tenha chegado a hora de dar sentido e direção aos avanços que a ciência propiciou. Talvez tenha chegado a hora de pensar no ser humano e desatrelá-lo das exigências que ele próprio criou para distrair-se das suas missões.

O G-20 deu um belo empurrão no ego de alguns líderes mundiais. O do presidente Lula foi massageado algumas vezes e, merecidamente. Mas eventos são pontos no espaço-tempo, transições. Deixarão de ser eventuais para se transformarem em algo perdurável quando os líderes assumirem que representam nações inteiras, interesses nacionais conjugados e não, parcelas do todo.

Barack Obama, estrela da festa, não estava ali como o primeiro presidente negro dos EUA, ele era a reedição do sonho americano. Sem pele branca e olhos azuis. Gordon Brown, chefe do governo anfitrião, mais do que a China semicomunista, encarnou a tradição socialista inglesa que Margaret Tatcher, John Major e depois Tony Blair desfiguraram com tanta determinação.

A reunião do G-20 coincidiu com o 70º aniversário do fim da Guerra Civil na Espanha e a vitória do caudilho fascista Francisco Franco sobre as forças legalistas, republicanas.

O encontro londrino foi estritamente econômico, a política não foi convidada, porém ninguém pode nos impedir de entrar na máquina do tempo e lembrar panoramas passados.

Se entre 1936 e 1939 os países democráticos tivessem se reunido para evitar aquele banho de sangue na terra de Dom Quixote, a catástrofe da Segunda Guerra Mundial teria sido certamente evitada.

» Alberto Dines é jornalista

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