domingo, 19 de abril de 2009

O rateio do saldo primário

Suely Caldas*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A redução da meta do superávit primário, anunciada pelo governo na última quarta-feira, tem aspectos positivos e negativos. Foram bem-vindas a desvinculação da Petrobrás da contabilidade global das contas públicas e a ideia genérica de usar a política anticíclica aplicando a sobra do superávit em investimentos. O problema está no varejo, nos detalhes, no destino que o governo dará aos R$ 40 bilhões liberados. Na entrevista em que anunciaram as novas metas fiscais, os ministros Guido Mantega e Paulo Bernardo não assumiram o compromisso de respeitar o conceito de ação anticíclica e aplicar esses R$ 40 bilhões em favor de toda a população, priorizando investimentos e aliviando a queda da atividade econômica e o desemprego decorrentes da crise.

Não garantiram para os brasileiros que, em nenhuma hipótese, esse dinheiro será usado para contratar mais funcionários, aumentar o número de cargos públicos e preparar a estrutura de apoio para o candidato do governo nas próximas eleições; que em nenhuma hipótese servirá para aumentar os salários do Executivo, Legislativo e Judiciário, que já recebem mais que o triplo da média dos trabalhadores privados e fazem de Brasília a cidade de maior renda per capita do País; que em nenhuma hipótese aumentarão os gastos correntes da máquina pública e que, para comprovar, apresentariam um plano com metas definidas de economia de despesas (infelizmente não há nenhum compromisso do governo com um plano desse tipo).

O problema não está na redução do superávit em si, mas na qualidade do uso da sobra de dinheiro. A tônica do governo Lula nos últimos anos foi a de gastar mais do que pode, contratar um número excessivo de funcionários, criar outras despesas permanentes sem chances de serem removidas, elevar gastos correntes a taxas acima do PIB. Abandonou as reformas e as microrreformas. Fez o que não deveria e não fez o que precisava para dar uso mais racional ao dinheiro público, aplicando em saneamento, habitação, portos, estradas, infraestrutura, geração de empregos, coisas que beneficiam a população e induzem ao progresso.

Enquanto a economia crescia e levava junto a receita com impostos, as consequências negativas de contrair crescentes despesas fixas eram disfarçadas. Mas agora, com a crise econômica derrubando a receita (a perda do primeiro trimestre foi de R$ 11,3 bilhões) e sem condições para cortar gastos fixos, o governo constata o erro de ter imaginado que a fase de prosperidade seria eterna.

É com o superávit primário que o governo paga os juros de sua gigantesca dívida de mais de R$ 1 trilhão. Como agora ele será reduzido de 3,8% para 2,5% do PIB, o estoque da dívida logicamente vai aumentar, mas não muito porque a queda da taxa Selic amortece sua expansão.

Nada preocupante e até justificável em momentos de crise. Mas, na entrevista de quarta-feira,
os ministros Mantega e Paulo Bernardo exibiram projeções fantasiosas para a trajetória futura da dívida. Segundo os dois, entre 2008 e 2009 o saldo da dívida sobe de 39,1% para 39,4% do PIB. Em 2010 cai para 36,9%, até chegar a 31,2% do PIB em 2012. Ora, se nos últimos anos de prosperidade, sobrando recursos, a dívida ficou patinando em 40% do PIB, como agora, com escassez de dinheiro, receita tributária em queda, superávit primário menor, ela reduzirá em quase três pontos porcentuais em 2010, justamente um ano eleitoral, e 8% em 2012? Estariam contando com um milagre? As projeções de especialistas discordam desse inexplicável otimismo.Como as novas metas fiscais alteram a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2009, o governo vai encaminhar ao Congresso um projeto de lei com as mudanças. Os dois ministros acham que senadores e deputados o aprovarão com facilidade. De fato, não há por que rejeitar.
Mas novamente o problema está no varejo, nos detalhes. Uma sobra de R$ 40 bilhões no Orçamento soa como música aos ouvidos dos parlamentares. Como de praxe, eles tentarão abocanhar uma parte da sobra para emendas parlamentares - aquelas que sustentam gastos paroquiais em seus Estados - ou em outros projetos de interesse dos partidos da base do governo. Afinal, por que entregar tudo para o Executivo gastar? E como fica o Legislativo? É triste, mas o raciocínio é esse. Uma vez atendidas as demandas de quem tem poder de fazer e executar leis (o Congresso e o governo), o dinheiro que sobrar pode vir a ser destinado a projetos de interesse do País.
*Suely Caldas, jornalista, é professora de Comunicação da PUC-Rio

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