segunda-feira, 27 de abril de 2009

STF, universalismo e representação

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Há, a meu ver, diferença relevante entre a crise do Congresso, culminando com as denúncias relacionadas às passagens aéreas, e a aparente crise do Judiciário que o enfrentamento entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa no STF aponta. No caso do Congresso, é possível dizer que se trata de mais do mesmo, não obstante os indícios a sugerir que as coisas teriam alcançado um ponto extremo, com a insensibilidade revelada até por parlamentares supostamente "éticos" (e não obstante, igualmente, a necessidade de alguma concessão aos que enxergam exagero nas cobranças da imprensa e da chamada opinião pública no que se refere às passagens). No caso da briga no STF, contudo, trata-se de algo sem dúvida grave, cuja aspereza, à parte os ingredientes pessoais envolvidos, explicitou de modo dramático divergências doutrinárias sobre os próprios princípios a serem invocados na atuação de uma aparelhagem judiciária que se tem mostrado, em diversos níveis, francamente ativista.

Não sendo viável aderir sempre a um princípio "deliberativo" que remete ao debate entre os cidadãos e à produção racional de consenso, ou mesmo exclusivamente ao expediente da representação e da regra da maioria como substitutos mais ou menos precários para aquele princípio, a sociedade democrática trata de criar nichos em que se privilegia um critério de competência e em que as decisões são deixadas a cargo de pessoas vistas como qualificadas para, ao decidir, ponderar com acuidade os argumentos relevantes - ou seja, pessoas supostamente capazes de se envolver com sucesso num hipotético debate de desfecho unânime.

O Judiciário é a esfera institucional mais nitidamente distinguida, em princípio, por essa orientação.

Ocorre, porém, que ele não pode escapar à impregnação por um componente de "representação", e essa impregnação surgiu com força no bate-boca dos ministros. Não se pode esperar que o cidadão aceite que alguém mais decida em seu nome (ou o represente) em questões nas quais seus interesses ou valores se acham em jogo senão com base na suposição de que esse alguém de alguma forma se identifica com ele e terá seu "melhor interesse" diante dos olhos, o que prevalece mesmo sobre a exigência de que o representante seja um perito dotado dos conhecimentos relevantes na área em que ocorre a decisão: num exemplo negativo extremo, os conhecimentos médicos de um Josef Mengele dificilmente seriam razão para que o prisioneiro num campo de concentração se entregasse confiante em suas mãos. Mas como esperar que essa cláusula de "representação" seja bem servida por órgãos judiciais numa sociedade complexa, composta de categorias diversas e potencialmente antagônicas, ou, em particular, marcada por intensa desigualdade?

Em abstrato, há uma resposta de certa forma simples: a da "representação virtual", em que o juiz, como o parlamentar de Edmund Burke, supostamente servirá melhor ao interesse de cada qual ao identificar-se universalisticamente com a coletividade como um todo e buscar decidir de maneira imparcial com os olhos tecnicamente competentes postos na lei. Embora de maneira não de todo consistente com o reclamo de uma equívoca responsabilidade "política" para o STF e seu presidente, o ministro Gilmar Mendes, como já notei aqui, tem falado de uma "representação argumentativa" que iria nessa direção - e que ecoa numa das primeiras manifestações desagradáveis do bate-boca da semana passada, a de que "esse discurso de classe não cola".

Contudo, cabe contar aqui com divergências, e a conexão entre particularismo e universalismo se mostra mais complicada do que sugere a perspectiva da representação virtual. O ativismo do STF, que tem tido em Gilmar Mendes um agente empenhado e que Maria Cristina Fernandes passava em revista em coluna de 3 de abril no Valor, tem dado alguns bons frutos (liberação da pesquisa com células-tronco, proibição do nepotismo nos três poderes, distribuição gratuita do coquetel contra o vírus da Aids), ao lado de outros discutíveis. Mas o desafio de conciliar o universalismo com a atenção para a diferença e a desigualdade dá origem a ativismos de outra orientação, que o presidente do STF tem hostilizado, mas cujo alcance não se esgota no desfrutável sentido de missão e no tosco esquerdismo de alguns integrantes dos vários escaninhos de nossa aparelhagem jurisdicional. O próprio desenvolvimento da socialdemocracia, como, entre muitos outros, assinala Thomas Meyer em volume recente ("The Theory of Social Democracy", 2007), mostra o desdobramento da lógica do universalismo em termos que levam à redefinição dos direitos civis e políticos fundamentais em direitos sociais, num embate que envolve reconstrução legal (e que inclui, vale registrar, episódios dramáticos de ativismo judicial). Sem falar de experiências de convívio de diferenças étnicas e identidades diversas, menos ou mais associadas com relações de desigualdade, em que a bem sucedida resposta institucional do chamado "consociativismo" tem imposto a "discriminação" deliberada contida em lidar igualitariamente, em termos legais e de representação, com os diferentes e os desiguais.

De toda forma, trata-se de problemas difíceis e fatalmente envoltos em conflitos sociais potenciais ou reais. Não é de estranhar, assim, que as tensões que temos visto nas relações do STF com outras instâncias do poder judiciário e do poder do Estado em geral acabem irrompendo dentro do próprio STF. E, em vez da aposta claramente excessiva na competência e na capacidade dos juízes para exercitar o equilíbrio adequado entre isenção social e política e compromisso "representativo", é com certeza preferível apostar no recurso explícito ao debate baseado na representação direta dos interesses e identidades no Legislativo, tratando de fortalecê-la e de contornar, até onde possível, as limitações e distorções nela envolvidas.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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