quinta-feira, 23 de abril de 2009

Uma descortesia do governo italiano

Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Após uma tempestade emocional, a discussão em torno do pedido de extradição, pelo governo italiano, de Cesare Battisti, militante, nos anos 70, do grupo de esquerda Proletários Armados para o Comunismo (PA), que espera julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), parece entrar no terreno da discussão racional. O parecer aprovado pela Comissão de Constituição da Ordem dos Advogados do Brasil, da lavra de José Afonso da Silva, é um sinal de que o maniqueísmo não monopolizou a discussão jurídica do caso.

É um fato político importante a OAB entrar nesse debate e da maneira como entrou: por meio de um parecer de um jurista respeitável, que ignorou o clima emocional que quase teve o poder de transformar um julgamento de um simples pedido de extradição num incidente diplomático.

Contra o "complexo de vira-lata" que tomou setores da sociedade brasileira, vexados com o fato de que o Brasil negava um pedido do Primeiro Mundo, o parecer da OAB considera que esse não apenas é um ato soberano do Brasil, mas um direito garantido inclusive pelo Tratado de Extradição assinado entre o Brasil e a Itália.

Afonso, em seu parecer, cita o artigo 3º, nº1, letra "e" do Tratado, que diz: "A extradição não será concedida: e) se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela Parte requerida, crime político". E, mais adiante, a letra "f" do nº1, vai mais além, para garantir a integridade da pessoa cujo pedido de extradição é feito: "A extradição não será concedida: f) se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivos de opinião pública".

Isto é: o pedido de extradição, pelo Tratado, não apenas deve ser negado se o crime for político, mas se a pessoa a ser extraditada pode vir a sofrer represálias políticas na volta ao seu país.

Isso quer dizer que o fato de o Estado brasileiro negar a extradição de Battisti não deve causar espanto ao Estado italiano, já que as situações previstas no Tratado assinado por ambos podem ser configuradas no caso do ex-terrorista italiano.

A lei brasileira, por sua vez, não foge a esses dois incisos do Tratado, ao definir as condições em que o Estado brasileiro pode conceder o refúgio. Segundo a lei, será reconhecido como refugiado político todo o indivíduo que, "devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupos sociais ou opiniões políticas, encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país" (Lei 9.474, de 1997, artigo 1º, inciso I). Nos dois casos, portanto, se garante a condições de refugiado não apenas por razões políticas, mas por "fundados temores". As manifestações políticas do governo italiano, agressivas não apenas a Battisti mas ao próprio ministro da Justiça, Tarso Genro, que tem legalmente o poder de reconhecer a condição de refugiado, e ao governo brasileiro, mostra que não é fora de propósito temer pelo ex-militante do PAC, caso ele seja extraditado.

"Se ao cidadão foi reconhecida a condição de refugiado, o pedido de extradição se revela, no mínimo, como descortesia em face da soberania do Estado brasileiro, e, se o pedido antecedeu à concessão de refugiado, as regras de cortesia nas relações internacionais aconselhavam a desistência do pedido", diz o parecer. Ou seja: Afonso inverte a impressão geral, de que um governo caipira, que não entende nada de política internacional, falou "não" ao "civilizado" governo de Berlusconi. Quem cometeu a descortesia foi o Estado italiano; Genro é que estava no seu direito.

Tanto na lei italiana como na brasileira, a autoridade administrativa da extradição é o ministro da Justiça, segundo Afonso. A extradição, pela lei brasileira, não é concedida sem um pronunciamento do plenário do STF sobre sua legalidade e procedências, mas não é o tribunal que a concede, e sim o Executivo, desde que autorizado pelo Judiciário. Assim, a Justiça pode impedir que o Executivo faça uma extradição, mas não tem o poder de determinar que o Executivo não a faça. "Isto é assim também na Itália, onde a doutrina reconhece que a decisão judicial só é vinculativa se a entender que a extradição seria ilegal", diz o parecer.

Assim, segundo o jurista da OAB, a única forma de o STF passar por cima de uma decisão administrativa do ministro da Justiça é declarar a inconstitucionalidade da lei que dá ao governo a prerrogativa de ser a última palavra num processo de extradição. É por isso que a defesa de Battisti agregou um constitucionalista, Luiz Roberto Barroso. A defesa de Barroso será um reforço a uma jurisprudência que já existe, a do julgamento do pedido de extradição do padre Olivério Medina, ligado às Farc, pelo governo colombiano. Há dois anos, no julgamento deste caso, o plenário do STF considerou a lei de refúgio constitucional por nove votos a um. O atual presidente do STF, Gilmar Mendes, foi voto vencido. Não consta que a Colombia tenha cortado relações com o Brasil por causa disso.

No final das contas, o adiamento do julgamento do pedido da Itália acabou dando tempo para que o clima emocional se amainasse - e está na racionalidade a maior chance de sucesso da defesa de Battisti, afirma o seu defensor Luiz Eduardo Greenhalgh.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

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