sábado, 23 de maio de 2009

Benedetti, o poeta suave e indignado

Mario Benedetti
Eric Nepomuceno
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Escritor uruguaio, autor de mais de 80 livros, deixa órfã uma legião de leitores

O domingo 17 de maio foi um dia de céu encapotado e rajadas de chuva e ventania em Montevidéu, que ele chamava de ?cidade de todos os ventos?. Se tivesse olhado pelas amplas janelas de seu apartamento na Avenida 18 de Julho, Mario Benedetti constataria uma vez mais que nesta época do ano Montevidéu é um mundo de terna melancolia.

Mas ele não saiu da cama. Passou o dia todo alternando o sono sossegado com períodos de um despertar calado, distante. Pelo fim da tarde sua respiração tranqüila foi se fazendo mais suave, mais suave, até que, quando faltavam cinco para as 6, parou de vez. Assim, dormitando na penumbra e sem nenhum olhar de despedida, foi-se embora esse poeta cálido e bondoso, tímido e cordial como corresponde aos uruguaios de velha estirpe. Um homem de resistência e compromisso permanente, num tempo em que isso já não significa quase nada. Continuou sendo o militante de sempre, contra ventos e marés. "As causas nas quais creio me dão impulso, e por defendê-las durmo tranquilo. Não me sinto derrotado em minhas crenças ideológicas e vou continuar lutando por elas. Sem êxito, já sei", dizia.

Se tivesse ficado por aqui até o dia 14 de setembro, cumpriria 89 anos. Não quis esperar. Na verdade, Mario começou a ir embora em abril de 2006, quando morreu Luz López, com quem foi casado durante 60 anos. Continuou escrevendo, mas a vida já não tinha graça. Dizia ele, nesses últimos tempos: Acontece a noite e estou sozinho/ a duras penas carrego meu próprio peso/ a morte levou o bom amor/ e já não sei para quem continuar vivendo.

Deixou desolada uma multidão de leitores, e, nos amigos, um vazio sem fim. "Que será de nós sem sua bondade inexplicável?", escreveu Eduardo Galeano. "Mario foi, sobretudo, um homem bom", assegura o poeta argentino Juan Gelman, outro companheiro de longas jornadas. Ao saber de sua morte, o espanhol Fran Sevilla disse: "Há dias que não deveriam amanhecer." A lista de amigos que amargam essa dor é enorme, se espalha pelos mapas, vai de pintores a músicos, de escritores a poetas, de jovens esperançosos a velhos lutadores das causas perdidas, ou quase, nesta América Latina. Em silêncio, abrumados pela própria dor, ficam milhões de leitores em todo o mundo. De certa forma, saber dessa amplidão de gente que se deixou embalar e acalentar pela sua poesia serve de consolo aos amigos. "Mario ocupava um lugar muito maior do que ele mesmo achava", diz um deles, o escritor português José Saramago.

Foram mais de 80 livros publicados ao longo de 63 anos. Alguns, como os romances La Tregua e Gracias por el Fuego, tiveram mais de cem edições. Escreveu contos, romances, ensaios, crítica literária e obras de teatro. Mas foi sua poesia que fez dele um dos latino-americanos mais lidos nos últimos muitos anos. Seus versos estão em camisetas, bolsas, cartões-postais, xícaras, cartazes, e foram transformados em canções cantadas por gerações. Muitos desses versos, copiados por milhares de jovens que fingiam uma autoria imaginada, venceram amores esquivos. Cada vez que alguém dizia a Mario que tinha conquistado o grande amor graças aos seus poemas roubados, ele sorria feliz.

Seu livro de estréia, La Víspera Indeleble, vendeu exatamente nove exemplares. Foi seu presente de casamento para Luz, em março de 1946. Dez anos e cinco livros mais tarde, publicou Poemas de la Oficina. E com esses poemas de escritório ganhou prestígio. Não foi nenhum êxito de vendas, mesmo porque a tiragem era de 500 exemplares. Mas ele se tornou conhecido. Naquela altura, fazia parte do mítico semanário Marcha, dirigido por Carlos Quijano, e integrava a mais importante geração literária de seu país, a de 1945, ao lado da poeta Idea Villariño e de um mestre absoluto, Juan Carlos Onetti.

Filho de um farmacêutico e de uma dona de casa, foi batizado seguindo a estranha tradição italiana de nomes longuíssimos: Mario Orlando Hamlet Hardy Brenno Benedetti. Tinha 4 anos quando a família saiu de Paso de Los Toros e foi para Montevidéu viver uma infância de privações, que se estenderam adolescência afora. Trabalhou como vendedor de peças de automóvel, depois foi taquígrafo, mensageiro, contador, gerente de imobiliária, jornalista e funcionário público, entre muitas outras atividades.

Em seus contos e romances, estendeu sempre um olhar solidário e compreensivo para a pequena classe média uruguaia - a aridez da vida dos burocratas, a rotina amarga de um cotidiano de pouco horizonte e sonhos restritos. Traçou as distâncias entre esperança e realidade, e seus personagens eram gente comum, encontrados nos mergulhos na alma humana que Mario soube fazer tão bem. Com o romance La Tregua, de 1960, chegou ao grande público. O livro teve 150 edições em 24 países. Cinco anos depois, com Gracias por el Fuego, veio a consagração definitiva entre os escritores latino-americanos da segunda metade do século 20.

Sua poesia assegurou a ele a legião de leitores que desde o domingo, 17 de maio, ficaram órfãos. Foram 36 livros, sem contar antologias e compilações, de poemas em linguagem simples, espontânea, coloquial, ele que foi o poeta dos sentimentos, das emoções e das idéias, versos vivos que eram como conversas numa varanda entardecida.

Sua vida foi a de um homem de esquerda, de compromisso com seu tempo e sua gente - um compromisso que custou perseguições e ameaças, exílio, desterro, as dores das separações e das perdas. Acreditava num outro mundo possível. Foi um suave indignado, um doce iracundo. Aliou sempre o rigor da palavra escrita - "como escritor, meu primeiro compromisso é com a literatura" - com sua visão de mundo: "Como cidadão, tudo que afeta o homem me diz respeito, e se o cidadão é escritor é natural que a preocupação política apareça em sua obra", dizia.

Galeano nos apresentou na Buenos Aires de 1973, onde eu morava e ele chegou exilado. Ao longo desses anos todos o mundo rodou e nós também, e nos encontramos em Lima e Madri, no México e em Havana, em Paris e em Manágua, e dele guardo a memória de um humor ingênuo e tímido, uma esperança tranqüila e permanente, um olhar límpido, guardo a certeza de ter sido amigo de um homem bom, generoso e solidário. O tempo e as distâncias diminuíram nosso convívio mas não nos afastaram jamais. E o que mais me dói agora é nunca ter dito a Mario quanto eu gostava dele.

Um de seus poemas dos últimos tempos pede: quando me enterrem/ por favor não se esqueçam/ da minha caneta. Na manhã da terça-feira, dia 19, Mario Benedetti foi enterrado em Montevidéu. Milhares de pessoas o acompanharam ao longo de 30 quarteirões, seu derradeiro passeio pela cidade. Nenhuma delas jamais esquecerá sua caneta, nem as palavras que escreveu.

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