domingo, 24 de maio de 2009

De Mário para Tio Pio. De Tio Pio para Mário

Ubiratan Brasil
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Livro traz cartas trocadas entre Mário de Andrade e Pio Corrêa, seu maior interlocutor

O escritor Mário de Andrade (1893-1945) instaurou na palavra o seu império - e na correspondência um canal vital para compartilhar sentimentos, alegrias e ansiedades. Ao longo de sua carreira literária, o autor de Macunaíma trocou um impressionante volume de cartas com pintores, pesquisadores, jornalistas e, principalmente, escritores, esparramando-se em textos que muitas vezes pareciam poema em prosa. Os destinatários tanto eram iniciantes, que buscavam (e recebiam) valiosos conselhos, como artistas já seguros em sua arte, cujos contatos apontaram novos caminhos estéticos.

O volume Pio & Mário - Diálogos da Vida Inteira, lançamento da editora Ouro Sobre Azul em parceria com Edições Sesc SP (424 páginas, R$ 96), aponta para uma nova vertente na correspondência andradina. Se os livros já publicados trazem as cartas destinadas a notáveis como Manuel Bandeira, Cândido Portinari, Fernando Sabino, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Luís da Câmara Cascudo, entre outros, Pio & Mário reúne as confidências trocadas com um interlocutor conhecido por poucos, o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa (1875-1957).

Homem de personalidade original, com um toque de excentricidade, Pio era um parente distante e proprietário da Chácara da Sapucaia, em Araraquara, na qual Mário buscava refúgio de sua rotina estafante. Foi ali, por exemplo, acomodado em um universo ordenado e protegido, que o autor escreveu Macunaíma em seis dias febris de inspiração. "Mas a obra não sofreu interferência do local", alerta o crítico Antonio Candido, também amigo de Pio Lourenço e autor do texto que traz traços biográficos do fazendeiro, presente no livro (leia entrevista na página 2).

"O impulso aconteceu lá", comenta ele, que vai participar do lançamento oficial da obra, amanhã, quando faz uma palestra, a partir das 20 horas, no Teatro Anchieta do Sesc Consolação.

Pio foi grande amigo do pai de Mário de Andrade e sua aproximação com o escritor aconteceu depois de dois momentos trágicos: a morte do irmão mais moço e do pai de Mário. Em carta a Manuel Bandeira, datada de 1931, o autor de Amar Verbo Intransitivo relata como foi o bom senso do fazendeiro que o salvou depois da primeira perda: tomado por uma séria depressão nervosa, ele foi deixado sozinho na fazenda, de onde saiu curado, dias depois.

"É esta a primeira vez que a mão amiga de Pio Lourenço intervém no seu destino", escreveu a pesquisadora Gilda de Mello Souza (1919-2005), autora de um detalhado estudo sobre ele, que era seu tio-avô - ela também era prima em segundo grau de Mário. "E a chácara transforma-se em seu vício, a sua Pasárgada, onde são satisfeitas a suas ?vontades rurais?."

Era o início de uma relação respeitosa e afetiva, em que o escritor passou a tratar o amigo de Tio Pio, ainda que tal parentesco não existisse. Embora distintos, o homem maduro do interior e o jovem intelectual urbano, que guardavam uma diferença de 18 anos nas idades, iniciaram uma improvável correspondência. E, ao contrário da grande maioria das cartas que Mário trocou com outros, aqui os detalhes de sua vida cotidiana estão em evidência.

O conjunto traz 105 cartas e bilhetes de Pio Lourenço e 84 cartas de Mário de Andrade, datadas de 1917 a 1945, quando o escritor morreu. Foi o mais longo período de correspondência trocada por Mário com seus vários missivistas. Um interlocutor culto, que não aceitava suas experiências com a língua portuguesa - detestou, por isso, Macunaíma, preferindo Amar Verbo Intransitivo.

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