segunda-feira, 18 de maio de 2009

De volta a Woodstock

Luiz Carlos Merten, Cannes
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2


Ang Lee exibe Taking Woodstock em Cannes, onde concorre à Palma de Ouro, mas ele prefere falar mais de Desejo e Perigo, já [br]em cartaz nos cinemas

Ang Lee tinha 14 anos em Taiwan e o país vivia sob proteção norte-americana quando ocorreu nos Estados Unidos o concerto de Woodstock. Lee lembra-se de ter assistido a algumas imagens pela TV daquilo que era chamado de invasão hippie dos EUA, mas ele confessa que só muito mais tarde compreendeu o significado daquele evento. Nunca foi seu desejo tratar do assunto num filme, até ler o livro Taking Woodstock, de Elliott Rider. Ang Lee está em Cannes exibindo o filme baseado no livro e participa da competição pela Palma de Ouro. É muito bom. Ang Lee, fascinado pelos mitos da cultura norte-americana, achou o tom exato para falar de um acontecimento que ajudou a mudar o mundo - os comportamentos pelo menos - numa perspectiva intimista, pela via da família. Ontem, no Hotel Carlton, em plena Croisette, ele conversou com um pequeno grupo de jornalistas. O assunto foi tanto Taking Woodstock quanto Desejo e Perigo, seu filme precedente, que estreou sexta-feira no Brasil.

Lee explicou que ambos os filmes correspondem a seu desejo de dar testemunhos sobre o mundo em que vive. A grande história fornece o pano de fundo em Taking Woodstock - a Guerra do Vietnã, a descida do homem na Lua, a utopia representada pelo sonho hippie, mas o concerto não aparece e a intenção era mesmo essa. Representá-lo de viés, por meio da relação de Elliott com seu pai e sua mãe possessiva.

No caso de Desejo e Perigo, a grande história domina o quadro, por mais que, no limite, o enredo continue sendo de razão e sensibilidade, ou de como as pessoas reagem intimamente às provocações da história. Baseado no romance de Eileen Chang, Desejo e Perigo se passa durante a ocupação de Xangai pelos japoneses e a protagonista é essa garota que aceita trabalhar para a resistência, seduzindo um colaboracionista para que ele se torne um alvo fácil aos que lutam contra o usurpador estrangeiro.

Ang Lee confessa que foi seduzido pelo ponto de vista da garota desde que leu o livro. Conseguiria abordá-lo? "Acho que o que se passa em seu coração é muito difícil de detectar e, ao mesmo tempo, fascinante de tentar entender. Ponha-se no lugar dela: como poderá ignorar o que se passa em seu país? E agora pense em outras coisas - essa garota é burguesa. Seus sentimentos são ambivalentes por que ela teve prazer sexual com esse homem? Será que ela o ama? Acho que a protagonista de Desejo e Perigo é mais confusa, intimamente, do que qualquer outra de minhas personagens, femininas ou não." Mas ele diz que isso era parte do fascínio de fazer o filme. "Acredite, falar dos sentimentos de uma mulher chinesa na época retratada não é menos complicado do que aceitar a relação das personagens de O Segredo de Brokeback Mountain: a guerra contra os japoneses é considerada sagrada na China. Existe todo o problema da mulher na sociedade. Não acreditava que Eileen tivesse encarado a tarefa de tratar tudo isso. Num certo sentido, era mais fácil para mim, como homem, mas meu desafio era permanecer fiel a ela, ao seu ponto de vista."

Lee admite que, durante muito tempo, não conseguiria transformar Desejo e Perigo num filme, mas foi isso que terminou por seduzi-lo e também a James Schamus, que assina a produção e o roteiro. "James facilitou as coisas, se posso falar em facilidade, a propósito de Desejo e Perigo. Mas ele surpreendeu como roteirista com a sutileza da escrita de Eileen Chang e, como produtor, ele se assegurou de que eu tivesse os recursos apropriados para filmar seu roteiro." Lee conta que o roteiro demorou muito tempo para ficar pronto, mas depois, outro desafio, maior ainda, foi encontrar os atores para os papéis, no caso Tang Wai e Tony Leung: "Afinal, o sexo é fundamental nessa história e ela simplesmente não iria funcionar se os atores não se entregassem. Ilusão e desilusão são temas muito fortes aqui. O teatro dentro do filme era uma forma de expressá-lo. Depois que ela perde a virgindade, como todo mundo responde? Os japoneses, o pessoal da resistência, o governo? Nada estava realmente escrito neste caso, mas eu tinha certeza de que trabalhando com os atores poderia construir o clima."

Em Brokeback Mountain, o tema do homossexualismo fez escândalo, principalmente associado a uma cultura machista como a do western. Aqui, a relação é heterossexual, mas o escândalo não foi menor no Festival de Veneza, por Ang Lee ter ousado filmar essa intimidade dos limites do sexo explícito. "Não conto essas histórias para escandalizar, mas porque são personagens que me tocam, com sua solidão e vulnerabilidade. As cenas íntimas são necessárias. Não as filmei para atrair o público, mas para que as pessoas reflitam, no espelho do cinema, sobre elas mesmas. Um diretor demora para se distanciar do seu material. Acho que, agora, finalmente, posso olhar para Brokeback Mountain e Desejo e Perigo com clareza. Foram esses filmes que me trouxeram agora a Taking Woodstock. O garoto oprimido pela família do novo filme não é diferente das personagens dos anteriores. Mas é assim, não? A gente trabalha sobre temas que nos interessam e eles tendem a ser os mesmos, embora em quadros diferentes."

Na Croisette

Diretor conhecido do público brasileiro por filmes como Um Homem Muito Discreto e De Tanto Bater Meu Coração Parou, o francês Jacques Audiard entrou pra valer na disputa pela Palma de Ouro com seu novo longa, Un Prophete (Um Profeta). A história do jovem árabe que vai para a cadeia e termina "adotado" lá dentro por um criminoso corso vai além da tradicional trama do pequeno bandido que faz sua escalada para poderoso chefão. O garoto analfabeto constrói uma identidade, adquire o domínio da linguagem e, no limite, ganha uma família, um lar. A cadeia vira metáfora do mundo. Audiard fez um grande filme e a França, um ano depois de Entre os Muros da Escola, é forte candidata a uma nova Palma de Ouro.

O diretor de Hong Kong Johnnie To mostrou ontem em competição Vengeance (Vingança). O filme estrelado por Johnny Halliday foi escrito para Alain Delon, que terminou por recusar o papel. O protagonista é um restaurateur francês que desembarca em Macau para vingar a morte do genro e dos netos (sua filha sobrevive por milagre ao massacre). To joga a carta do cinema de gênero e cria cenas de ação que impressionam como coreografia da violência. O filme, aposta de Cahiers du Cinèma para a Palma de Ouro, é a capa da edição que a revista dedica ao festival. É divertido, mas não possui densidade. E, se é para ser diversão, o próprio Johnnie To foi melhor em Eleição.

Ne te Retorne Pas é horrível e você fica se perguntando o que faz na seleção de um festival como Cannes. Mas as atrizes Monica Bellucci (foto) e Sophie Marceau enchem a tela (e os olhos). Uma recente pesquisa realizada na França revela que Sophie é a atriz preferida do público do país. O filme estreia esta semana nos cinemas. Cannes está sendo só uma vitrine. Pode ser bom para Ne Te Retorne Pas (e Sohie e Monica movimentaram o tapete vermelho), mas é ruim para a tradição de qualidade do festival.

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