quarta-feira, 20 de maio de 2009

Famílias comuns e dolorosas surpresas

Beth Néspoli
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / CADERNO 2

Nas duas peças reunidas em Dueto da Solidão, o autor Sérgio Roveri aborda com rara concisão tragédias ocultas no cotidiano

Muitos espectadores e artistas brasileiros de teatro e cinema certamente ainda se lembram da Dona Solange. Solange Maria Teixeira Hernandes foi diretora do Departamento de Censura Federal e seu nome e assinatura apareciam no certificado de liberação obrigatoriamente exibido na tela do cinema, antes que a Constituição de 1988 acabasse com a censura prévia no Brasil.

Atores e diretor riem com a lembrança da temida senhora trazida à baila pela reportagem do Estado ao ocupar um solitário lugar na plateia durante uma tarde de ensaio do espetáculo Dueto da Solidão. Intimista, integrado por dois textos curtos de Sérgio Roveri, Ensaio para Um Adeus Inesperado, de 35 minutos, e A Noite do Aquário, de 45, a montagem estreia hoje no Sesc Vila Mariana para apresentações somente às quartas-feiras.

A peça de abertura foi escrita em 2008, a mais recente criação desse representante da nova safra de dramaturgos paulistas, autor de peças como O Encontro das Águas, Andaime e Abre as Asas Sobre Nós, que vem aprimorando sua escrita, já vencedor de um prêmio Shell, em 2007. No diminuto tablado da sala de ensaio, bastam as primeiras palavras da atriz Clara Carvalho para mudar o estado de atenção e dissipar de vez a imagem da censora do ambiente. Olhando diretamente para o público, a atriz/personagem começa por falar da aparência de um queijo, um detalhe à mesa, na manhã em que seu filho, de 22 anos, suicidou-se, no quarto, sem deixar um bilhete de despedida.

Sem dúvida um início impactante. E não ter medo do tema tabu da morte é o primeiro mérito desse espetáculo. O suicídio, a dor da perda e o ritual que a segue, tudo é tratado nessa peça de feliz concisão sem eufemismos, mas também sem morbidez. As recordações da mãe se alternam com as do filho (Leonardo Miggiorin). São apenas quatro narrativas de cada um.

"Gosto dessa peça porque fala de superação", diz o diretor da montagem, Sérgio Ferrara. Impossível não ficar comovido na última cena, na qual fica claro, sem pieguismo, que sempre é possível sorrir novamente. "O bom é que essa superação se dá de um jeito humano e cotidiano, sem ser banal. Ela não fica feliz porque escreve um best-seller ou faz um grande gesto", comenta Clara. "Construí essa mulher a partir de muitas mães que viveram situação semelhante", diz Roveri. "Na minha opinião, essa personagem se supera porque ela não nega a dor. Ela vive todos os rituais de despedida, chega a esquecer o filho mais novo, visita o inferno. Mas a vida continua."

Clara também é mãe na segunda peça, que tem curva dramática inversa, a tragédia no fim. De início parece que estaremos diante de uma variação da história do filho pródigo. José (Gustavo Haddad) volta à casa materna, situada numa ilha que abriga um porto em estado de falência, prestes a fechar de vez. A ação se passa em 1965 e ele volta para um resgate: quer salvar a mãe e o irmão (Chico Carvalho) da degradação e do isolamento. "Claro que há uma ilha também metafórica aí", diz Sérgio Ferrara. "Gosto especialmente desse estado de precariedade dos personagens de Roveri. "São pessoas em busca de felicidade, com atitudes surpreendentes."

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