terça-feira, 12 de maio de 2009

O famoso Águia de Haia

José de Souza Martins
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ METRÓPOLE (ontem)

Eu fora convidado para dar um seminário a estudantes de pós-graduação no Rio de Janeiro, naquele dia à tarde. Seria um bate-papo informal sobre pesquisa que estava fazendo na Amazônia. Fui vestido informalmente: calça jeans, camisa de manga curta, sandálias e uma velha bolsa de couro que costumava levar nas viagens e no trabalho de campo com as coisas de que necessitava. Durante a pesquisa no Mato Grosso, primeiro, e no Pará, depois, muitos dos meus entrevistados, migrantes do Nordeste, diziam que estavam à procura das Bandeiras Verdes, terra mítica anunciada numa das profecias atribuídas ao Padre Cícero. Diziam-me que haviam lido sobre elas num dos romances sobre o Padim.

Conversei com especialistas e, finalmente, o escritor Orígenes Lessa sugeriu-me que procurasse o folheto na biblioteca da Casa de Ruy Barbosa, no Rio de Janeiro, que tem a nossa maior biblioteca de literatura de cordel. Aquela ida ao Rio era providencial pois aproveitaria para fazer a sondagem preliminar em busca do tal folheto. Desembarquei no aeroporto Santos Dumont ainda cedo. Naquela época, eu tinha uma cabeleira densa, desalinhada. Tomei um táxi, sentei-me ao lado do motorista e pedi-lhe que me levasse “à Casa de Ruy Barbosa, na Rua de São Clemente nº 134”.

Ele saiu dirigindo e de vez em quando me olhava de soslaio, a expressão indignada. Até que, finalmente, desabafou:

– Olha aqui, cara! Qué sabê de uma coisa? Eu acho que ele não vai te receber, não!

Achando que era gozação, entrei no jogo e respondi:

– Você acha? Por que?

– Pô, você tá todo esculhambado, sem paletó nem gravata! Você sabe quem ele é?

Eu quis, então, saber quem era Ruy Barbosa (1849-1923).

– Bem se vê que tu é paulista. Não sabe quem é Ruy Barbosa?! O maior jogador de futebol do mundo? O famoso Águia de Haia?

Fiquei pasmo. Era 1981 e estávamos na culta Rio de Janeiro. Em face de minha notória ignorância e da humildade que tive a prudência de mostrar, ele foi me explicando quem era Ruy Barbosa. Ele me descrevia um Pelé branco. Todos os atributos e habilidades eram os do competente e insuperável Pelé. Um jogador de futebol culto, dizia-me ele, que em campo xingava os outros jogadores em tupi-guarani. A isso fora reduzida a lenda de que Ruy Barbosa, na Conferência de Haia (1907), ao fazer seu primeiro discurso, perguntou ao presidente em que língua queria que falasse. Ao que ele concedeu-lhe que falasse em sua própria língua. Ruy teria, então, pronunciado denso discurso jurídico em língua tupi.

Chegamos à Rua de São Clemente pouco depois das 9 h, quando a casa-museu e a biblioteca já estavam abertas, janelas abertas, portão aberto.

– É, cara! Tu tá com sorte. Ele tá em casa!

*José de Souza Martins, Sociólogo, professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, é autor de Retratos do Silêncio, Coleção “Artistas da USP”, Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008; Sociologia da Fotografia e da Imagem (Editora Contexto, 2008); A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008); A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008.

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