quarta-feira, 6 de maio de 2009

O resto é boa gente

Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Mas que diferença faz – indaga Marlene Dietrich, no final de A marca da maldade, no tom afirmativo de quem dispensa resposta – o que se diz sobre as pessoas? Depende. Depois de mortas, não faz diferença. Vivas, porém, a diferença pesa. Que o digam deputados e senadores que pensavam manter longe dos eleitores o que praticavam às ocultas. A democracia estava devendo aos brasileiros a transparência, essa dimensão indispensável à nitidez nas abomináveis intimidades entre interesse público e interesses privados. Mas começou a pagar. Mandato parlamentar não é profissão e, portanto, não cabe enquadrá-lo nas leis do trabalho e reconhecer-lhe até o direito de greve (ainda que sob outra forma). No Senado, o suplente que substitui o titular do mandato já garante, em poucos meses, assistência médica e hospitalar pelo resto da vida. Onde fica a igualdade perante a lei? O eleitor investe 35 anos de batente para um benefício minguante na mão contrária ao fim da vida.O que mudou não foi apenas a forma de pagamento, mas o conceito de atividade profissional atribuído à representação política. Falta ainda a carteira do ministério do Trabalho, com direitos e vantagens exclusivos. Já se contabiliza como salário a ajuda de custo para transporte e hospedagem de quem vinha do interior para assumir a função legislativa na capital e, encerrado o período, voltava para a cidade onde exercia a profissão da qual realmente vivia e por onde se elegia.

As pesquisas já vinham emitindo sinais de que a opinião pública estava até o pescoço com a representação política interessada apenas no enriquecimento pessoal. Desde que o mensalão fez a ponte entre o Executivo e o Legislativo, a suspeita contaminou o primeiro mandato presidencial sob a guarda do PT. Deputados e senadores ficaram mais expostos à crítica, mas não deram importância à opinião pública (que não se limita à opinião publicada, como alegam os coniventes), e logo chegaram à conclusão segundo a qual, de qualquer ponto de vista, este é o pior Congresso de quantos a História do Brasil registra. Mas já entendeu que transparência não é apenas equívoco de aparências. Importa muito o que se comenta a respeito dos que querem levar a vida pública como se não fosse. O mensalão, além de premiar por fora a prestação de serviços parlamentares, patrocinou o caixa dois nas relações de desconfiança recíproca entre o Legislativo e o Executivo, como um sistema de esgoto subterrâneo para não empestear a democracia.

È este o saldo deprimente legado pelo presente ao futuro, à espera do que virá depois do que já está aí. O deplorável nível ético não deixa de ser descortesia, mais com os eleitores do que com os eleitos. Diante do escândalo das passagens aéreas com repasse aberto, senadores e deputados quiseram tirar proveito da observação segundo a qual um plebiscito equivaleria a um atestado de óbito do Congresso. Conduziram a discussão para fora do recinto e denunciaram a intenção de fechar a Câmara dos Deputados. A opinião pública entrou em cena e botou para quebrar com o que aprendeu, na condição de repetente, nas aulas práticas de democracia de rua e de tudo que somente ela é capaz de proporcionar.

A transparência de que a democracia se dotou não separa, apenas pela aparência, personagens do mundo e do sub-mundo da representação política, mas chegará lá. A Constituinte (1986/88) lavou a testada da República. Mas o que mudou? Luiz Inácio se tornou mais Lula da Silva: era presidente do PT e se elegeu constituinte com um pé atrás, por desconfiança instintiva. Ao fim de dois anos, enfarado da política, foi o primeiro a declarar que não apreciou o que viu e ouviu naquela oportunidade. Calculou por alto, entre os constituintes, uns 300 picaretas que “defendiam apenas seus próprios interesses”. Depois de vinte anos, o presidente (já então da República, pela segunda vez), saiu em defesa dos senadores e deputados apanhados em flagrante de desrespeito à indispensável separação entre o público e o privado no exercício do mandato parlamentar. Como se o passado fosse um amontoado de mentiras e o futuro nada tivesse a ver.
Na sua opinião, tirando os 300 da Constituinte, até hoje “o resto é boa gente”.

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