segunda-feira, 25 de maio de 2009

Obama, comandante em chefe

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Em janeiro, nas operações militares de Israel na faixa de Gaza, causou indignação ver o exército israelense menosprezar a segurança e a vida de civis, e mesmo de crianças, supostamente usados como escudos pelos terroristas do Hamas. Alguns dias atrás, foi o secretário de Defesa do governo Obama, Robert Gates, a recorrer de público à mesma alegação - uso de civis como escudo por terroristas - diante da notícia de várias dezenas de vítimas civis, incluindo muitas mulheres e crianças, causadas pelo bombardeio de aviões americanos em vilarejos afegãos. O noticiário subsequente, além de mostrar a irrelevância da alegação no episódio (o bombardeio ocorreu depois que os combatentes do Taleban tinham deixado o local, como informam minuciosas reportagens do "New York Times"), registra também manifestações de pesar protocolares, e algo reticentes quanto às responsabilidades envolvidas, por parte da secretária de Estado Hillary Clinton e do próprio presidente. E a mensagem que sobra é a de que, para o governo Obama, trata-se de fato de um incidente sem importância.

O episódio é apenas a irrupção mais dramática do lado "falcão" da complicada busca de equilíbrio em que Obama se acha empenhado como comandante em chefe: ao lado de iniciativas opostas, desde o primeiro momento (com destaque para a ordem do fechamento da prisão de Guantánamo), aos abusos cometidos com Bush em nome da segurança nacional, tivemos, há algum tempo, a adesão às restrições do governo Bush quanto ao direito de prisioneiros no Afeganistão, detidos há muito sem julgamento, de pleitear o processo legal devido junto à Justiça dos EUA; mais recentemente, o recuo quanto à decisão de liberar a divulgação de fotos de abusos cometidos por agentes do governo Bush no tratamento de prisioneiros, bem como quanto à manutenção das comissões militares para processar os detidos, alegadamente pelas "vantagens" que asseguram aos promotores e o aumento das chances de "ganhar condenações"; agora, a notícia de que se examina a detenção preventiva e indefinida em condições claramente deficientes do ponto de vista jurídico... Nas idas e vindas, Obama vem se expondo tanto à crítica da direita (mais vocal e insistentemente do ex-vice-presidente Dick Cheney), quanto à crítica e à resistência, ao que parece crescentes, de seus apoiadores "liberais" ou progressistas (com cujas lideranças, ou algumas delas, se reuniu "privadamente" na Casa Branca na quarta-feira, num clima que os vazamentos à imprensa caracterizam como constrangedor).

O elaborado discurso pronunciado na quinta-feira nos National Archives é notável e mesmo singular como tentativa de reflexão articulada e pública sobre as dificuldades defrontadas, especialmente nas atuais circunstâncias, pelo presidente dos EUA ao lidar com as relações entre segurança e guerra, de um lado, e valores democráticos, de outro. Naturalmente, a reflexão - bem como, a rigor, as próprias dificuldades políticas trazidas pela busca de equilíbrio - só ocorre dadas as singularidades da figura do próprio Obama. É difícil avaliar, porém, se a linha de atuação sugerida no discurso não acabará por surgir como definida por filigranas incapazes de garantir a nitidez necessária ao contraste entre Bush e Obama. Como formulou o deputado Tom Perriello, democrata da Virgínia, "a diferença entre a administração anterior e esta de agora é a diferença entre a noite e a aurora; mas queremos o dia".

Em livro originalmente aparecido em 2003 ("Estado de Exceção", lançado no Brasil em 2004), Giorgio Agamben se inspira em Walter Benjamin para apontar na guerra e no estado de exceção por ela justificado a origem do totalitarismo, a começar do Terceiro Reich, e o paradigma de governo dominante na política contemporânea, mesmo nos Estados "chamados democráticos". O 11 de setembro, como uma espécie de paroxismo do que foi designado como "guerra civil mundial", e as medidas adotadas prontamente pelo governo Bush em resposta (incluindo a "ordem militar" de 13 de novembro de 2001, que autorizava a detenção indefinida e o processo perante as comissões militares), bem como o "Patriot Act" promulgado pela Senado em 26 de outubro, são a referência mais imediata do autor. É provavelmente supérfluo lembrar a "segurança nacional" a propósito de ditaduras como a brasileira do regime de 1964.

Seja qual for a avaliação que mereça uma caracterização ambiciosa ao estilo de Agamben, os Estados Unidos, com suas singularidades e excepcionalismos, trazem por si só lições importantes. O fato objetivo da força econômica que o país logo evidencia o arrasta desde cedo para conflitos variados, e sua condição de potência econômica destacada se acopla há tempos com o poderio militar jamais visto. Não há como negar, porém, que isso resulta ou se associa com uma cultura militarista ou truculenta, da qual uma face peculiar surge no substrato sociopolítico do poderoso "gun lobby", que o noticiário dos últimos dias também mostra tirando proveito das iniciativas e dificuldades de Obama.

De todo modo, esse pano de fundo, compondo com o impacto do 11 de setembro, ajuda a explicar alguns aspectos salientes do quadro problemático de um presidente Obama como comandante em chefe (de passagem, em que outro país se fala tanto de comandante em chefe a propósito das responsabilidades do governante máximo?). De um lado, o fato de que, como candidato, mesmo um sofisticado e democrático Obama não possa escapar de tratar de moldar sua própria imagem pública de guerreiro decidido, e que haja logo na posse uma "guerra de Obama" a ser vencida. De outro lado, o risco, que também a campanha já evidenciava, de a própria sofisticação acabar por ser vendida com êxito pela oposição, nos comerciais de trinta segundos de que falou o presidente em seu discurso, como "fraqueza diante do terror".

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Nenhum comentário:

Postar um comentário